2023, RECORDE DE PESSOAS DESLOCADAS

 

Víctor Daltoé dos Anjos

(Geógrafo/UFSC, doutorando em Geografia/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)
1 de julho de 2024

 

2023 terminou com um novo recorde de pessoas forçadas ao deslocamento no planeta: 117,3 milhões, como revelam dados do recente relatório publicado pelo ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). O número aponta um crescimento de 8%, cerca de 8,8 milhões pessoas, em comparação com 2022, quando o patamar de 100 milhões de deslocados foi ultrapassado pela primeira vez. O número de pessoas fora de seus lares por conta de guerras, violência, perseguição política, étnica ou religiosa, e também por desastres climáticos, pode ter chegado a mais de 120 milhões em abril de 2024. 

O deslocamento forçado se espalha por todos os continentes, e diz respeito tanto a emigrantes e refugiados, que deixam seus países de origem, como aos deslocados internos, que continuam dentro de seu próprio país, mas em outras regiões. Segundo o ACNUR, os refugiados totalizavam 37,6 milhões no final de 2023, 1,3 milhão a mais que em 2022, enquanto o número de deslocados internos era de 68,3 milhões, um aumento de quase 8 milhões em relação ao ano anterior.

O ACNUR monitora esses fluxos populacionais tanto para auxiliar as pessoas em situação de deslocamento como para entender suas motivações e, por consequência, a que tipo de status legal estão sujeitos. Por definição, todo deslocado foi obrigado a abandonar seu local de moradia. Mas os motivos podem ser muito diferentes: uma coisa são terras invadidas por uma guerra, outra é um governo passar a fazer campanha contra uma determinada minoria nacional usando o poder estatal para persegui-la; outra ainda, é a pobreza aguda e a falta de perspectiva de vida no local de origem. Para cada uma dessas motivações, muda o estatuto do migrante e o tipo de ajuda recebida. Imigrante, refugiado, apátrida: é importante saber as diferenças entre eles.

2023, recorde de deslocados

Deslizamento no conjunto de campos de refugiados de Cox Bazar, em Bangladesh, que abriga quase 1 milhão de rohingyas de Mianmar, abril de 2024

Escalada de recordes

Em um mundo em que 1 a cada 69 habitantes é um deslocado à força, qual é a geografia desse drama?

Se 2023 sinalizou uma agudização das crises internacionais, contabilizada em vidas postas fora de lugar, o fato é que o fenômeno vem se avolumando e, há 12 anos, o número de deslocados à força cresce sem interrupção. A guerra civil na Síria, iniciada em 2011, desencadeou o maior fluxo migratório visto em décadas, enquanto a desorganização política da Líbia abria as portas para novas rotas migratórias da África para o sul da Europa. A partir de 2017, o colapso político e econômico da Venezuela e a perseguição aos Rohingya de Mianmar provocaram novas marés de emigrantes e refugiados, assim como o retorno do Talebã ao poder no Afeganistão, em agosto de 2021. A eclosão da guerra na Ucrânia detonou outro grande deslocamento forçado de ucranianos fugindo da agressão imperial russa.

2023, recorde de deslocados

Fonte: ACNUR

Por outro lado, existem países e populações que, apesar de estarem mergulhadas em prolongados conflitos, pouca atenção recebem da mídia internacional e, por extensão, dos órgãos internacionais. São casos como o do Sudão do Sul (2013-2018), do Iêmen (2014-2024) e da Etiópia (2020-2022).  Em 2023 foi a guerra civil no Sudão que alavancou os números de deslocados, sugerindo que os “recordes” serão o “novo normal”.

Mas o conflito que gerou, em termos relativos, o maior número de deslocados à força foi a guerra entre Israel e o Hamas. Cerca de 75% dos habitantes da Faixa de Gaza, de acordo com a ONU, tiveram de se deslocar num curto período, entre outubro e dezembro, de 2023. O deslocamento forçado de palestinos de Gaza prosseguiu em 2024.

 

Refugiados 

2023, recorde de deslocados

Fonte: ACNUR

Refugiados são as pessoas que fogem de seus países por sofrerem algum tipo de perseguição estatal. As leis internacionais priorizam a recepção dos refugiados por entenderem que suas vidas estão ameaçadas e eles não podem retornar aos seus países de origem (exceto se ocorrer uma mudança no status quo).   

O ACNUR aponta a existência de 6,9 milhões de solicitantes de asilo e outros 5,8 milhões que precisam de proteção internacional em função de uma situação anômala. É o caso dos venezuelanos, equiparados à categoria de refugiados.

Já os palestinos sob mandato da UNRWA, outra agência da ONU, são considerados deslocados forçados, o que inclui a população da Faixa de Gaza.

2023, recorde de deslocados

Fonte: ACNUR

Afeganistão, Síria, Venezuela e Ucrânia respondem pelos quatro maiores grupos de refugiados, e os números seguem aumentando. Os vizinhos dessas nações, por sua vez, estão entre os países que mais abrigam refugiados, como Irã, Turquia e Colômbia.

Na Europa, a Alemanha se destaca entre os principais destinos dos que buscam refúgio, por conta da política adotada pela ex-líder alemã Angela Merkel (2005-2021) durante a guerra civil síria e pela recepção de ucranianos, a partir de fevereiro de 2022.

 

Deslocados internos

A maior visibilidade dada às pessoas que se deslocam em busca de refúgio político em outro país, frequentemente oculta a gravidade de situações de alcance apenas regional, nas quais o deslocamento interno dos cidadãos é a tônica. Eles são os IDP (pessoas internamente deslocadas).

Entre 2020 e 2022, a pandemia de Covid-19 abriu espaço para a xenofobia disfarçada sob argumentos sanitários. O fechamento de fronteiras fez com que o número de deslocados internos se ampliasse mais do que o de refugiados.

Algumas dessas crises seguem ignoradas pela comunidade internacional, como a da Somália, que vive uma instabilidade crônica desde 1991 e possuía 3,9 milhões de deslocados internos em 2023. Durante o último ano, o número de refugiados somalis aumentou de 177 mil para um milhão, em geral se abrigando nos vizinhos Etiópia e Quênia. Pelo menos 15 países possuem mais de um milhão de deslocados internos, sendo oito deles localizados no continente africano, como Sudão, Nigéria, Burkina Faso e Etiópia. 

2023, recorde de deslocados

Fonte: ACNUR

O Sudão é o atual líder em deslocamento interno no planeta. A guerra civil sudanesa, que estourou em abril de 2023,  fez com que o número de IDPs saltasse de três para nove milhões no país, além de gerar 1,2 milhão de refugiados. No fogo cruzado do Sudão, onde sofre principalmente a região de Darfur, cerca de 400 mil de refugiados sul-sudaneses, que tinham o Sudão como abrigo, retornaram ao seu país de origem, o qual ainda possui regiões atravessadas por violência intercomunitária.

Países sem guerra, mas desestruturados pela violência, também têm aparecido nas estatísticas de deslocamento forçado. Além da Venezuela, o pequeno Haiti registrou 311 mil IDPs no final de 2023, ao mesmo tempo em que o número de solicitantes de refúgio e asilo disparou nos EUA. E, no Cáucaso, a pequena Armênia recebeu 141.900 refugiados de origem armênia oriundos de Nagorno-Karabakh, região conquistada pelo Azerbaijão em 2023.

Em 2023, 1,1 milhão de refugiados puderam retornar ao seus países de origem enquanto cerca de 5,1 milhões de deslocados internos voltaram aos seus lares. Dos retornos de refugiados, três quartos ocorreram entre sul-sudaneses (527 mil, a maioria deles deixando o Sudão em guerra civil e a Etiópia recém-saída de um conflito interno) e ucranianos (324 mil, principalmente retornando da Alemanha e da Polônia). Dos retornos de deslocados internos, as maiores quantidades foram na República Democrática do Congo, Ucrânia, Etiópia e Moçambique.

 

Apátridas 

O ACNUR estima a existência de, no mínimo, 4,4 milhões de pessoas em condição de apatridia no mundo, sendo que 33% desse grupo também engrossa as estatísticas de deslocados à força. A apatridia é grave pois o indivíduo não detém cidadania, o que o definiria como ente jurídico, violando o direito à nacionalidade previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Segundo o ACNUR, desde 2014, 565.900 apátridas conseguiram adquirir uma nacionalidade. Ao longo de 2023, foram 32,2 mil.

Os maiores contingentes de apátridas envolvem refugiados Rohingya de Mianmar, sendo 971 mil sem nacionalidade vivendo no superpopuloso conjunto de campo de refugiados de Cox Bazar, em Bangladesh, e mais 155 mil confinados em Mianmar.

A realidade é que, independente da palavra usada para descrever os deslocados à força, essas pessoas constituem a parte mais fraca dos arranjos políticos e militares transacionados por aqueles que detêm o poder e não se importam com o custo humano de suas ações. Novos recordes virão.

 

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