NA ETIÓPIA, A PRIMEIRA GUERRA DA COVID

 

Demétrio Magnoli

16 de novembro de 2020

 

A pandemia de Covid-19 acaba de riscar o fósforo da guerra na Etiópia. No segundo país mais populoso da África, com mais de 110 milhões de habitantes, atrás apenas da Nigéria, o governo federal ordenou bombardeios sobre a província setentrional do Tigré. A operação deixou centenas de mortos e milhares de refugiados. A Anistia Internacional denuncia uma coleção de crimes de guerra.

A faísca foi o adiamento das eleições regionais pelo governo federal, sob alegação de que a crise sanitária da Covid não permitiria sua realização. No fim, o pleito ocorreu em setembro, mas o novo governo regional não obteve reconhecimento do governo central.

A marca do conflito étnico está impressa na tragédia, como acontece na República Democrática do Congo, em Ruanda, no Burundi, no Zimbábue e em tantos outros países africanos. De um lado, situa-se o governo federal do primeiro-ministro Abiy Ahmed, que não hesitou em bombardear civis. Do outro, a Frente de Libertação dos Povos do Tigré (TPLF), que venceu as eleições e governa a província rebelada. Em meio aos combates, centenas de civis “foram esfaqueados ou assassinados a golpes de machado” na cidade de Mai Kadra, perto da fronteira com o Sudão, entre a noite de 9 de novembro e a manhã seguinte, informa a Anistia Internacional. Provavelmente, a TPLF é responsável pelo massacre.

O Tigré encontra-se isolado do resto do país, com as comunicações telefônicas e digitais cortadas pelo governo federal. As informações baseiam-se na análise digital de “fotos horripilantes e vídeos de corpos espalhados pela cidade ou sendo transportados em macas”. As vítimas parecem ser trabalhadores sem nenhum envolvimento no conflito. Segundo testemunhos, as forças policiais regionais e milícias ligadas à TPLF conduziram a matança após serem batidas por tropas do Exército.

O conceito de conflito étnico geralmente conduz à falsa ideia de que as diferentes etnias da Etiópia nutrem ódios imemoriais. De fato, os choques militares em curso derivam de disputas de poder no interior da elite dirigente etíope. Abiy Ahmed, da etnia Oromo, tornou-se o principal dirigente da Frente Democrática Revolucionária dos Povos da Etiópia (EPRDF), que governa o país desde 1991. A TPLF constituía a espinha dorsal da EPRDF, até cindir com ela, depois da ascensão de Ahmed à chefia do governo federal, em 2018.

Ahmed ganhou o Nobel da Paz de 2019 por seus esforços vitoriosos para encerrar o conflito de 20 anos entre a Etiópia e a vizinha Eritreia. Agora, os choques militares na região do Tigré ameaçam lançá-lo à vala em que se encontra Aung San Suu Kyi, a líder democrática de Mianmar convertida em cúmplice da limpeza étnica dos Rohingya.

 

O “federalismo étnico”

A Etiópia nasceu entre 1889 e 1913, na época em que as potências europeias desenhavam o mapa dos Estados africanos, mas não por meio de um projeto colonial. As diversas entidades políticas da região foram unificadas sob o imperador Menelik II, que expandiu seus domínios a partir da base central de Shewa, onde se situa Adis Abeba.

A monarquia consolidou-se com o imperador Haile Selassie, que conduziu a modernização do país. A continuidade política só foi interrompida pelo breve período da conquista italiana, entre 1936 e 1941. Selassie anexou a Eritreia como província etíope e, em 1963, figurou como um dos fundadores e primeiro presidente da Organização de Unidade Africana (OUA). Caiu sob um golpe militar apoiado pela antiga URSS em 1974 e, no ano seguinte, foi morto pelo novo regime comunista.

Foto agraciada com o prêmio Pulitzer de 1985 que se tornou a imagem icônica da grande fome etíope

Mengistu Haile Mariam, o líder do regime de partido único, travou uma sangrenta guerra com a Somália em 1977, na qual recebeu auxílio em armas da URSS e a ajuda direta de forças cubanas. Durante o ano seguinte, deflagrou o chamado “terror vermelho” contra forças oposicionistas, um conjunto de massacres que podem ter deixado até meio milhão de mortos. Depois, entre 1983 e 1985, o país atravessou uma pavorosa crise de fome.

A EPRDF surgiu em 1989 e derrubou o regime em 1991. Mariam fugiu para o exílio no Zimbábue, onde foi recebido pelo ditador Robert Mugabe. A Constituição, aprovada em 1994, criou a atual república federal.

Meles Zenawi, eleito primeiro-ministro em 1995, enterrou a recém-nascida democracia pluripartidária. Sob seu governo, multiplicaram-se as violências, as perseguições de opositores e as violações de direitos humanos. A guerra contra a Eritreia, que declarou independência em 1991, perdurou entre 1998 e 2000, arrasando as economias dos dois países mas ossificando o poder da EPRDF. Tedros Adhanom, o atual diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) serviu como ministro do Exterior no governo autoritário de Zenawi.

Na coalizão governista, a elite do Tigré, organizada na TPLF, ocupava o lugar central. O panorama mudou com uma onda de protestos na região de Oromia, a província que abriga o maior grupo étnico etíope. Ahmed chegou ao poder no rastro daquela crise, que culminou com uma brusca mudança no comando da EPRDF e sua elevação à chefia do governo por decisão parlamentar.

O novo primeiro-ministro, oriundo de um partido étnico oromo, aliou-se aos chefes da etnia Ahmara, formando maioria na coalizão governista. A cisão com a TPLF está na origem do atual conflito.

O “federalismo étnico” de 1994 foi concebido como um pacto entre as elites regionais. De fato, tem funcionado como combustível para a emergência de nacionalismos étnicos. Ahmed abordou o dilema por meio da ferramenta mais tradicional dos regimes africanos: a formação de um partido dominante submetido a seu poder pessoal.

A ruptura com a elite do Tigré consumou-se no ano passado, quando o primeiro-ministro dissolveu a EPRDF e anunciou a criação do Partido da Prosperidade. Então, a TPLF recusou-se a integrar o novo partido dirigente e entrou em rota de colisão com o governo central.

 

As vítimas sem nome

A Etiópia abriga quase dois milhões de deslocados internos, que abandonaram suas casas e povoados ao longo da guerra com a Somália, da grande fome dos anos 1980 e da guerra com a Eritreia. O novo conflito no Tigré ameaça gerar mais uma onda de deslocamentos, com seu cortejo de fome e sofrimentos.

Na Etiópia, a primeira guerra da Covid

O Parlamento da Etiópia, em Adis Abeba, é o palco dos arranjos entre as elites étnicas que governam a república

O sistema do “federalismo étnico” conectou identidades étnicas a territórios, provocando diversas eclosões nacionalistas periféricas. Ahmed usa o discurso da unidade nacional mas sustenta-se sobre o pilar da lealdade étnica. A TPLF, por seu lado, não abre mão da hegemonia absoluta sobre a região do Tigré.

A guerra aberta não é inevitável. Tanto Ahmed quanto Debretsion Gebremichael, chefe da TPLF e homem-forte do governo do Tigré, alegam que estão prontos para o diálogo, embora suas ações só tenham servido para aprofundar o conflito. Um novo arranjo pactuado entre as elites étnicas do país provavelmente emergirá da crise. Resta saber quantos civis, essas vítimas sem nome e sem partido, serão imolados no processo.

 

 

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