AFEGANISTÃO, TRAIÇÃO

 

Demétrio Magnoli

16 de agosto de 2021

 

Traição: a retirada das forças dos EUA e da OTAN entregou o povo afegão à sanha dos fundamentalistas do Talebã e de seus aliados jihadistas. As mulheres e as meninas são as vítimas principais da decisão do governo de Joe Biden, que seguiu os passos definidos por seu antecessor, Donald Trump.

Nos muros que circundam a embaixada dos EUA em Cabul, uma estrutura fortificada, painéis exibiam imagens de mulheres em universidades e cursos técnicos e de meninas nos bancos escolares. Era propaganda de guerra, claro, mas não era mentira. Nos últimos 20 anos, desde a queda do regime do Talebã, em dezembro de 2001, mulheres e meninas recuperaram direitos básicos. O retorno dos bárbaros ao poder representa uma catástrofe humanitária que afetará gerações.

Trump firmou o acordo de retirada das forças americanas com o Talebã em fevereiro de 2020. O álibi para o acordo tinha duas partes: o Talebã comprometia-se a não atacar as forças dos EUA durante a retirada e a participar em negociações de paz com o governo afegão. Os fundamentalistas cumpriram a primeira parte, concentrando suas atividades militares em confrontos com as forças de segurança afegãs. Ignoraram, previsivelmente, a segunda parte, enviando representantes para conversações vazias em Doha, no Qatar.

Biden não hesitou em dar seguimento ao plano de retirada de Trump. As forças dos EUA abandonaram a base aérea de Bagram no início de julho de 2021, encerrando as missões de combate em terra. O presidente americano declarou, então, que não havia risco de tomada do poder pelo Talebã. Na primeira semana de agosto, fontes do Pentágono alertaram para um possível triunfo final dos fundamentalistas no horizonte de 90 dias. Uma semana depois, as mesmas fontes admitiram a hipótese da queda de Cabul em 30 dias – e deflagraram operações de resgate do pessoal diplomático e de colaboradores afegãos. O Talebã entrou, triunfante, na capital em 15 de agosto, sem precisar combater. 

Saigon, 1975. Nos últimos dias de abril, helicópteros dos EUA retiravam, em operações desesperadas, funcionários americanos e colaboradores sul-vietnamitas da embaixada, enquanto as forças do Vietnã do Norte entravam na capital. Biden tem, em Cabul, o seu próprio Vietnã. Na iminência do triunfo militar do Talebã, o presidente da superpotência explicou que não se arrependia da decisão de retirada e conclamou os líderes afegãos a se unirem: “eles têm que lutar por si mesmos, por sua nação”.   

Traição: as palavras de Biden cairiam bem na voz de Trump. “America First” – cada nação deve cuidar de seus próprios interesses. Na voz de Biden, ela soam estranhas, especialmente depois que ele cunhou o slogan “Os EUA estão de volta” para marcar um compromisso internacionalista, em contraponto ao nacionalismo isolacionista do antecessor.

Contingente de 600 militares britânicos a caminho de Cabul com a missão de evacuar cidadãos britânicos e colaboradores, em 14 de agosto

A evacuação das últimas tropas americanas estava originalmente prevista para 11 de setembro, no aniversário dos 20 anos dos atentados terroristas de 2001. O presidente americano diria, então, que encerrou a mais longa guerra travada por sua nação – e que os afegãos estavam seguros, sob a proteção de um exército nacional treinado e equipado pelos EUA. A devastadora ofensiva do Talebã mudou os planos e a data da retirada completa foi antecipada. O 11 de setembro será, no fim das contas, uma celebração jihadista global.

O triunfo do Talebã propiciará a reorganização dos grupos jihadistas no Afeganistão. O IS-Khorasan, ramificação afegã do Estado Islâmico, já voltou a recrutar militantes no norte país, operando redes que cruzam as fronteiras com o Cazaquistão, o Quirguistão e partes do Tadjiquistão. Já a Al-Qaeda mantém laços mais estreitos com o Talebã, que abriga centenas de militantes da organização jihadista nos distritos sob seu controle ao redor da cidade de Kandahar, no sul do país.

 

Mulheres e meninas

O Talebã nasceu nas madrassas (escolas religiosas) do Paquistão, ao amparo das agências de inteligência e de setores do exército paquistanês. No poder entre 1996 e 2001, os “guerreiros da fé” desvelaram a face mais bárbara do fundamentalismo islâmico. As mulheres foram confinadas ao interior das residências. O regime impôs o uso compulsório da burca. As meninas foram proibidas de frequentar escolas. Autorizaram-se penas selvagens, como o apedrejamento. Ouvir música tornou-se ilegal.

A ocupação do Afeganistão por forças dos EUA e da OTAN e o longo conflito que se seguiu provocaram indescritíveis sofrimentos para os civis. O país tornou-se um foco de transferências populacionais em massa, engrossando as ondas de refugiados na Europa. No país, quase 2 milhões tornaram-se deslocados internos.

O presidente afegão Ashraf Ghani em pronunciamento televisionado, em 14 de agosto, diz que impedirá “mais mortes” causadas por uma “guerra imposta”. No dia seguinte, Ghani fugiu do país

Qual era o objetivo da guerra? No início, tratava-se de derrubar o regime do Talebã e suprimir as bases dos jihadistas da Al Qaeda no país. As duas metas foram alcançadas rapidamente, mas a persistência da guerrilha fundamentalista em bolsões do interior justificou a continuidade da ocupação. Sob as presidências do republicano George W. Bush e do democrata Barack Obama, os EUA prometeram que não permitiriam o retorno do Talebã ao poder, pois isso abriria caminho à reinstalação dos grupos jihadistas no país.

No percurso, Bush e Obama enfatizaram sem cessar que a ocupação propiciou a conquista de direitos e liberdades pelos cidadãos do Afeganistão. Não faltaram discursos presidenciais ressaltando a proteção da dignidade das mulheres pela nova ordem implantada no país. Trump e Biden justificaram a retirada argumentando que a meta de “construção da nação” (nation-building) não figurava entre os objetivos iniciais dos EUA. O argumento é enganoso pois, na prática, as duas décadas de ocupação somente poderiam ser plenamente justificadas à luz desse objetivo.

Desde o acordo de retirada, fontes dos governos Trump e Biden difundiram a narrativa de que o Talebã aprendeu e mudou. Hoje, supostamente, o grupo fundamentalista estaria disposto a respeitar os direitos humanos básicos e poupar as mulheres das indignidades extremas às quais foram submetidas no passado. Tudo indica, porém, que a narrativa conveniente é um conto de fadas para embalar o sono de crianças. 

Nas ruas de Cabul, imagens de mulheres eram apagadas, em 15 de agosto de 2021, às vésperas da transferência de poder para o Talebã

Nas áreas afegãs conquistadas pelo Talebã durante sua arrasadora ofensiva, sobram relatos horripilantes. As mulheres voltaram a ser caçadas nas ruas, presas em casa ou oferecidas a milicianos fundamentalistas. O medo está de volta.

“Antes, eu podia ir ao mercado sozinha comprar alimentos. Eu podia ir a cabeleireiros e mostrar meu cabelo”, testemunha Monira, 26 anos, da cidade de Shirin Tagab, no norte do Afeganistão. “Agora, as mulheres são oprimidas. O Talebã diz que só podemos sair de casa acompanhadas por um homem e que devemos nos cobrir”. Na cidade, já foi reimposta a lei de espancamentos públicos para mulheres que violarem as regras. 

A retirada de Biden equivale a queimar os painéis de mulheres e crianças que adornavam os muros da embaixada americana em Cabul. Se isso não é traição, o que é?

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail