COOPERAÇÃO PELA MORTE NO MEDITERRÂNEO

 

Álvaro Anis Amyuni

(Mestrando em Relações Internacionais e pesquisador do site 1948)
17 de maio de 2021

 

A Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex) está cooperando com a Líbia para impedir que imigrantes interceptados no mar Mediterrâneo, navegando rumo às ilhas europeias, consigam completar a travessia. Assim, a Frontex evita que eles pisem em suas praias, o que obrigaria a União Europeia a recebê-los, pelo menos enquanto são processadas as análises dos pedidos de refúgio e imigração.

A rota da Líbia é uma das mais mortais para imigrantes e refugiados, mas a proximidade com as ilhas italianas a mantém muito ativa. Mais de 90% das pessoas que cruzam o Mediterrâneo em direção à Europa utilizam essa rota. Lampedusa, situada a cerca de 100 quilômetros da Tunísia e 300 quilômetros da Líbia, é a principal porta de entrada para os africanos.

Segundo investigação da revista alemã Der Spiegel, para evitar a chegada de imigrantes à costa europeia, a Frontex estaria facilitando a interceptação de suas embarcações por presumidos funcionários do governo líbio. Mas a verdade é que esses imigrantes são levados para campos de detenção espalhados pelas cidades costeiras da Líbia, muitos dos quais controlados por milícias que exploram esses presos como escravos, extorquindo e matando por qualquer motivo.

Resgate guarda costeira líbia

Navio da Guarda Costeira da Líbia chega ao porto de Trípoli carregado de imigrantes interceptados no Mediterrâneo

Apesar de mais distante, a Líbia é o ponto preferido para os que desejam imigrar, dada a falência do Estado desde a morte do ditador Muammar Gadaffi, durante a Primavera Árabe. Desde então, o país se fragmenta em disputas entre facções e milícias, dificultando, por exemplo, o rastreio e bloqueio de pessoas vindas do Sudão, além dos próprios líbios que buscam refúgio na Europa.

Rapidamente as milícias entenderam a lucratividade de administrar esses campos de detenção de imigrantes, onde imperam a violência e a violação dos direitos mais básicos de um ser humano. Agora, ao que parece, as milícias se tornaram parceiras ocultas da União Europeia.

 

A transformação da Frontex 

A Frontex foi criada em 2004 com o objetivo de auxiliar os governos dos Estados-membros da União Europeia a controlarem as fronteiras externas da zona de livre circulação do Tratado de Schengen, que compreende a maior parte dos países do bloco.

Desde a sua criação até 2015, a Frontex teve pouca importância. Isso mudou quando se instalou a crise dos refugiados e imigrantes foragidos das guerras e conflitos civis na Síria, Afeganistão, Líbia e países da África. Diversos países passaram a contestar o princípio da livre circulação de pessoas no interior da União Europeia, decidindo unilateralmente pelo fechamento de suas fronteiras nacionais e estabelecendo até barreiras físicas à entrada dos imigrantes, como foi o caso da Hungria.

Agentes da Frontex em operação de resgate de imigrantes e refugiados no mar, ainda na época da crise síria

Diante disso, a Frontex foi expandida para auxiliar no “combate à criminalidade transfronteiriça” sendo reconhecida como “uma das pedras angulares do espaço de liberdade, segurança e justiça da UE”, segundo site da própria agência. Atualmente são 1,5 mil agentes, indicados pelos próprios Estados-membros, e a perspectiva é continuar se expandindo.

É impossível separar tal expansão da crise imigratória que atingiu a Europa a partir de 2015 sem chegar à conclusão que a “criminalidade” à qual a Frontex se refere são esses indesejados imigrantes. O fato de muitos deles pagarem “coiotes” para  atravessarem o Mediterrâneo em embarcações precárias não exime a Frontex da responsabilidade de acolher esse fluxo migratório, utilizando todos os meios – legais e ilegais – para isso.

 

Líbia, a interceptadora da União Europeia

Em 25 de junho de 2019, um bote com 69 imigrantes foi interceptado em alto mar por um navio da guarda costeira da Líbia. Testemunhas presentes no bote afirmam que um avião da Frontex realizou um sobrevoo sem oferecer qualquer ajuda. Desde então, observa-se que a política da UE para a crise imigratória tem sido não resgatar embarcações daquele tipo. Com o tempo, passou-se a suspeitar de um nexo entre a Frontex e a guarda costeira líbia para retornar os imigrantes interceptados no mar, o que a agência nega. A guarda costeira líbia mantém estreitas relações com as milícias que exploram imigrantes no país.

A Corte Europeia de Direitos Humanos definiu, em 2012, que os refugiados não poderiam ser devolvidos à Líbia, por conta da vulnerabilidade a qual estariam submetidos nos campos de detenção. Mas, de acordo com a Comissão Nacional para os Direitos Humanos na Líbia, 11.891 imigrantes foram interceptados e reenviados ao país em 2020.

Fonte: Frontex  

A terceirização do ato de interceptação dos botes pela Guarda Costeira Líbia dribla, portanto, a decisão judicial, que obriga os países membros da UE a acolher os refugiados. O contexto de absoluto caos nas águas do Mediterrâneo é utilizado pela UE como desculpa para não realizar a triagem entre refugiados e imigrantes indocumentados, que não têm direito de acolhida.

O chefe da Frontex, Fabrice Leggeri, afirmou ao Parlamento Europeu que a agência “nunca cooperou diretamente com a guarda costeira da Líbia”, insinuando que os líbios teriam agido por conta própria. Os dados colhidos pela reportagem da Der Spiegel e outros órgãos de imprensa europeus, no entanto, mostram o contrário: havia uma comunicação direta e constante entre membros da Frontex e oficiais costeiros líbios. Em pelo menos 20 ocasiões, desde o começo de 2020, repetiu-se o ocorrido em 25 de junho de 2019.

A investigação também indica que os agentes da Frontex não solicitaram auxílio de embarcações de organizações humanitárias ou mercantes para prestar socorro aos imigrantes e que poderiam chegar mais depressa do que a guarda costeira líbia. A Frontex teria permitido, inclusive, a entrada dos líbios em águas europeias perto da ilha de Malta, o que, segundo o direito marítimo internacional, configura uma violação de soberania territorial.

Cerca de 91 imigrantes morreram ou estão desaparecidos desde que a prática se iniciou, o que a Frontex justifica por “atrasos” na chegada do socorro. As provas da investigação consistem em documentos, trocas de mensagens via WhatsApp, depoimentos de imigrantes que foram interceptados e o acompanhamento de uma das missões de “salvamento” a bordo do navio da guarda costeira da Líbia, onde os repórteres tiveram a oportunidade de acompanhar de perto os procedimentos.

Fonte: Frontex

Por fim, há um nexo financeiro e tático entre a UE e a guarda costeira da Líbia. A UE financiou e treinou oficiais líbios para realizarem a interceptação de barcos no Mediterrâneo.

A narrativa oficial do bloco é de que financia a Joint Rescue Coordination Center (JRCC), uma organização voltada para o resgate no Mediterrâneo que, por sua vez, responde diretamente ao Ministério da Defesa da Líbia. Além disso, a Frontex constitui os olhos e os ouvidos dos líbios no mar Mediterrâneo, pois a tecnologia precária do país africano não permite sequer o monitoramento da sua própria linha costeira.

Dessa forma, enquanto os líbios bloqueiam o acesso de imigrantes aos países da UE, o bloco ajuda a alimentar os lucrativos centros de detenção controlados por milícias e para onde os resgatados são levados, estabelecendo um bom acordo para ambas as partes, mas cruel para os imigrantes e refugiados. 

 

O inferno é a Líbia

Segundo a ONU, em 2020 existiam cerca de 43 mil refugiados e imigrantes na Líbia, muitos vivendo nessas prisões precárias. Nos centros de detenção, os presos são privados do direito à alimentação, à higiene, à saúde e ao devido processo legal para eventual deportação. Em lugar disso, são torturados, espancados, deixados em locais sujos e úmidos, alugados como mão de obra em condições análogas à escravidão, sofrem extorsões para conseguirem liberdade e fuzilamentos sumários.

Há relatos de arregimentação forçada desses presos para ingressarem nas milícias, que controlam boa parte dos centros de detenção, sob risco de fuzilamento em caso de recusa; e há os vendidos como escravos. Esses casos tornaram-se recorrentes após a retomada do conflito líbio em 2019. A guerra civil envolve, de um lado, o governo provisório, reconhecido internacionalmente, do primeiro-ministro Fayez al-Sarraj, e de outro o Exército Nacional Líbio, composto por uma gama de milícias, liderado pelo senhor da guerra Khalifa Haftar, que controla os arredores da capital Trípoli e o leste do país. Imigrantes e refugiados são apenas moeda de troca em uma guerra que não é deles. “Trabalhamos por nada, lutamos por nada. Morremos diante dos olhos deles, na sua guerra” diz um imigrante sul-sudanês à Der Spiegel.

Diante do bloqueio terceirizado imposto pela UE, cada vez mais imigrantes e refugiados têm se aventurado a tentar a travessia do Mediterrâneo a partir da costa tunisiana. A Tunísia não é a rota preferida por imigrantes por possuir um Estado consideravelmente mais forte e vigilante à entrada e passagem de imigrantes por seu território. Em 2020, as partidas de barcos de imigrantes da Tunísia atingiram nível recorde, tendência que se mantém em 2021, segundo dados da ONU, que acompanha os naufrágios no mar. Nos primeiros dois meses deste ano, eles provocaram a morte de ao menos uma centena de imigrantes perto da costa tunisiana.

Por extensão, o tráfico de pessoas no país aumentou muito nos últimos anos. Muitos até tentam permanecer  no país africano e se adaptar, mas não são amparados pelas leis da Tunísia, forçando-os a buscar os serviços dos traficantes rumo ao continente europeu. Para piorar, desde 2019 a Tunísia assiste à deterioração da sua situação política, motivando seus próprios cidadãos a se juntarem ao fluxo de imigrantes da África Subsaariana.

A tentativa de estancar o fluxo de imigrantes partindo da Líbia contribui para espalhar o problema pelos países vizinhos. As autoridades europeias deveriam saber que o desespero absoluto de populações inteiras é o que motiva a perigosa travessia. Fazê-las sofrer ainda mais não deve ser a solução.

Imigrantes concentrados em um centro de detenção na Líbia. Superlotadas, suas estruturas são incapazes de prover o básico para os imigrantes e refugiados interceptados no mar

 

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