Victor Daltoé dos Anjos

(Geógrafo pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor de Geografia em Florianópolis/SC)

2 de maio de 2023

 

O Sudão, país de 46 milhões de habitantes, está à beira de uma guerra civil. A capital, Cartum, encontra-se sob fogo cruzado desde 15 de abril. Naquela manhã, tanques começaram a circular nas ruas da metrópole de 6 milhões, uma das maiores da África. Aviões a jato cruzavam os ares enquanto foguetes caíam sobre a cidade. Em duas semanas, o número de mortos chegou a 512, principalmente civis, além de 4,2 mil feridos.

De um lado dessa disputa pelo poder, que corre o risco de se espalhar pelos países vizinhos, está o general Abdel Fattah al-Burhan, governante de facto desde o golpe militar que encabeçou em 2021, contando com a lealdade das Forças Armadas do Sudão (SAF). Do lado oposto está o general Mohammed Hamdan Dagalo, chamado Hemedti, chefe das Forças de Apoio Rápido (RSF), oriunda da milícia janjawid. A janjawid, de raízes jihadistas, foi usada pelo ex-ditador Omar al-Bashir para conter os rebeldes no conflito de Darfur, o que resultou em condenações por crimes contra a humanidade. 

A queda de Bashir, em 2019, gerou um equilíbrio de poder instável entre os dois generais, em uma região marcada por violência miliciana. Guerras civis atingiram o Sudão do Sul (2013-2018) e a Etiópia (2020-2022), e prosseguem, ao longo de uma década, na Líbia e na República Centro-Africana. O território do Sudão é fronteiriço a todos esses países e tem como vizinho setentrional o Egito, comandado pelo general Abdul Fatah al-Sisi há uma década.

As histórias entrelaçadas do Sudão e do Sudão do Sul fazem com que os dois sirvam como válvulas de escape para refugiados, um do outro. No fim de 2021, o Sudão abrigava 1,1 milhão de refugiados, 70% vindos do Sudão do Sul e 11% da Eritreia. Ao mesmo tempo, o próprio Sudão era a sétima principal origem de refugiados no mundo: 800 mil, dos quais 300 mil viviam no Sudão do Sul.

A latência dos conflitos no Sudão também condena centenas de milhares de pessoas ao deslocamento interno. O golpe militar de outubro de 2021 gerou um pico momentâneo de meio milhão de deslocados internos. Segundo relatório lançado do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), no final de 2021, o Sudão contava a oitava maior população de deslocados internos do planeta, cerca de 300 mil.

 

Sudão, Estado militarizado

Desde a independência frente ao domínio britânico, em 1956, as Forças Armadas possuem enorme poder político e econômico no Sudão. Em parte porque interromperam os breves experimentos de democratização do país, em 1964 e 1985, em parte ao se associaram à elite árabe de Cartum, organizando uma nação dividida entre um centro privilegiado e diversas periferias marginalizadas.

No final dos anos 1980, a elite militar respondeu à ascensão do radicalismo islâmico com a acomodação, culminando no regime teocrático e militaresco de Bashir (1989-2019). O ditador fomentou a criação de uma miríade de milícias, principalmente as RSF. O objetivo era diminuir sua dependência do exército e do serviço de inteligência, enquanto utilizava o comando sobre todo esse aparato militar para cometer crimes contra a humanidade. Os principais casos foram a repressão aos sul-sudaneses, que se tornaram independentes apenas em 2011, e aos povos não-árabes da região de Darfur, que se rebelaram em 2003.

Para enfrentar os rebeldes de Darfur, na fronteira com o Chade, Bashir fomentou os janjawid, responsáveis por outros massacres na região. O conflito em Darfur causou cerca de 300 mil mortes e deslocou cerca de 2,5 milhões de pessoas. Em 2008, o ditador sudanês foi condenado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra, de genocídio e contra a humanidade. No ano seguinte, o TPI emitiu uma ordem de prisão contra Bashir.

Enquanto isso, o ditador continuou alimentando as janjawid, que se institucionalizaram como as RSF do general Dagalo. A atuação do grupo como força mercenária ganhou escala internacional, chegando a receber apoio da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos para lutar na guerra do Iêmen, iniciada em 2014, contra os rebeldes houthis.

 

A queda de Bashir

Nos primeiros meses de 2019, milhares de ativistas pró-democracia tomaram as ruas de Cartum exigindo a deposição de Bashir. O exército tratou de controlar o processo, derrubando o ditador em abril e mantendo a transição política sob seu comando. Em 3 de junho, integrantes das RSF, do general Dagalo, invadiram um acampamento de manifestantes em Cartum, em frente ao quartel-general da cidade, e mataram 100 ativistas. Dezenas de corpos foram encontrados boiando no rio Nilo, que se forma na cidade pela confluência dos Nilos Branco e Azul.

Os generais Burhan e Dagalo haviam se unido contra o enfraquecido Bashir e se tornaram o “número 1” e o “número 2” do país. Eles prometeram eleições livres em dois anos. Contudo, em outubro de 2021, a máscara caiu: Burhan e Dagalo lideraram um golpe militar e reforçaram suas posições no poder. No final de 2022, voltaram a prometer eleições livres em até dois anos. Mas as expectativas recaem principalmente sobre a promessa de unificação entre Forças Armadas e Forças de Apoio Rápido (RSF), com a submissão de um corpo militar nacional ao poder civil.

Meses depois, instaurou-se a briga entre os dois generais superpoderosos. Dagalo não quer entregar o controle das suas RSF para o general Burhan, que também não deseja se submeter as Forças Armadas oficiais a qualquer comando civil.

 

Democracia longe do horizonte

A tensão entre Burhan e Dagalo estourou em 13 de abril, quando integrantes das RSF cercaram a base aérea de Merowe, no norte, controlada pelas Forças Armadas. Nos dias seguintes, a força aérea bombardeou bases da RSF pelo país, enquanto o grupo paramilitar mirava a base aérea de El Obeid, no sul.

A agência de refugiados da ONU estimou que até cem mil pessoas podem buscar refúgio no Chade nas próximas semanas, enquanto outras 170 mil, poderão fugir para o Sudão do Sul. Já a Ordem dos Advogados de Darfur, um grupo da sociedade civil, denuncia ataques deliberados contra alvos civis, de acordo com reportagem do jornal britânico The Guardian.

Um conflito no Sudão pode transformá-lo em campo de batalha dos interesses de outros Estados. De um lado, Burhan possui o apoio do general ditador do Egito. De outro, Dagalo tem como aliado Khalifa Aftar, o general rebelde que comanda boa parte da vizinha Líbia. Existe também um papel ativo da Arábia Saudita, que tem investido bastante no Sudão e feito as principais gestões diplomáticas para convencer os dois generais a entregarem o poder a um civil. Em conjunto com outros países árabes, a Arábia Saudita investe em agricultura irrigada nas terras férteis do Nilo, pois o escoamento se dá pelo Mar Vermelho. 

Em meio às sanções da comunidade internacional, o regime sudanês já vinha se aproximando da Rússia. Em 23 de fevereiro de 2022, o general Dagalo foi a Moscou visitar Vladimir Putin, apenas um dia antes das tropas russas invadirem a Ucrânia. Em dezembro, o general Burhan, que visitara a Rússia em 2019, declarou que se discutia a possibilidade de instalação de uma base naval russa em Porto Sudão, no litoral do Mar Vermelho.

Os moradores de Cartum já sofrem com a falta de suprimentos básicos, como água, alimentos e medicamentos. Nos últimos dias, foi negociado um cessar-fogo para permitir a retirada de milhares de estrangeiros que vivem no país, mas nenhum dos lados parece realmente disposto a respeitá-lo.

Os generais Burhan e Dagalo sufocaram a revolta popular de 2019 e puseram fim à ditadura de Bashir. Agora, a disputa entre ambos ameaça arrastar a nação toda para o caos de uma guerra civil. O conflito tem potencial para incendiar o país, já que tanto o exército regular quanto as tropas janjawid contam com redes de apoio baseadas em milícias locais, quando não se espraiam pelos territórios vizinhos.

Já boa parte dos civis sudaneses, sobretudo os que se envolveram ativamente nos protestos de 2019 pedindo o fim ditadura e eleições, relatam imensa frustração. Eles sabem que, seja lá quem for o vencedor da guerra, liberdades civis e democracia continuarão a ser palavras estranhas ao vocabulário político do país.