Direitos para a História

A relação entre o “dever ser” das normas e o “ser” da realidade na qual incidem é sempre problemática, e mais ainda no sistema internacional, no qual o Poder, que torna o Direito realizável, está distribuído individual e desigualmente entre os seus protagonistas. No campo dos direitos humanos estas dificuldades se agudizam, pois se trata de um tema que naturalmente esbarra nas tradicionais suscetibilidades das soberanias ao representar uma intrusiva ação no campo dos valores, ou seja, sobre as formas internas de conceber e organizar a vida coletiva.

É por conta da complexidade destes desafios que se pode dizer que são três as modalidades por meio das quais se estruturou o como enfrentar a resistência que a realidade internacional coloca para a afirmação planetária dos direitos humanos: promoção, controle e garantia (1).

A promoção busca irradiar, para consolidar, o valor dos direitos humanos, por meio da difusão do seu conhecimento e da ação pedagógica da instrução, contemplada no art. 26 – 2 da Declaração Universal. A política da cultura dos direitos humanos se vê reforçada com o estabelecimento de padrões (standard setting), produto dos inúmeros instrumentos legais acima discutidos, sejam os de proteção geral, sejam os de proteção particularizada. Com efeito, além dos compromissos jurídicos neles contemplados, são parte da política da cultura dos direitos humanos, pois ampliam a compreensão dos direitos e liberdades, o que é importante para o seu pleno cumprimento, como observa o último considerando do Preâmbulo da Declaração Universal.

O controle, por sua vez, monitora o cumprimento, pelos Estados, dos compromissos por eles assumidos no campo dos direitos humanos. Uma vertente deste monitoramento passa por relatórios independentes, comunicações inter-estatais e também por petições individuais no âmbito dos Comitês de Peritos previstos nos grandes tratados de direitos humanos inspirados, como foi visto, pela política de Direito instaurada pela Declaração Universal. Os Comitês de Peritos, como órgãos de monitoramento, atuam na condição de terceiros independentes em prol do jus cosmopoliticum dos direitos humanos e exercem funções quase judiciais, em especial quando têm competência para examinar petições individuais.

Outra vertente do monitoramento passa pela ação das organizações não governamentais dedicadas aos direitos humanos que se multiplicaram e cresceram de importância nas últimas décadas. São uma expressão da política de cultura dos direitos humanos que a Declaração Universal contribuiu para adensar. Além da promoção, ONGs como a Anistia Internacional ou a Human Rights Watch têm um papel no monitoramento em função dos relatórios sobre a situação dos direitos humanos em distintos países, que preparam e divulgam com regularidade. Na estruturação da agenda internacional, estas ONGs assinalam o papel que hoje tem na vida mundial, no campo dos valores uma sociedade civil transnacionalmente organizada. Com efeito, a diplomacia dos Estados não pode, na conectividade do mundo contemporâneo, ignorar o peso da opinião pública.

Na promoção e no controle opera a vis directiva da influência que atua por meio da dissuasão, do desencorajamento e do condicionamento. Promoção e controle reforçam uma das funções que desempenha o Direito Internacional Público, que é o de informar aos protagonistas da vida internacional qual é o padrão juridicamente aceitável de conduta.

A garantia, em sentido estrito, é a que provém de urna autêntica tutela jurisdicional. Esta repara ou sanciona judicialmente as lesões de direitos humanos. A justicialização dos direitos humanos vem percorrendo um caminho de afirmação no plano regional – na Europa e nas Américas. No plano mundial, tem encontrado um espaço no campo penal com os dois tribunais ad hoc, e subsequentemente no Tribunal Penal Internacional, que foram acima discutidos e que respondem às fontes materiais que guardam estreita semelhança com as que levaram à Declaração Universal.

O Estatuto de Roma, texto fundador do Tribunal Penal Internacional, assinado no 50º aniversário da Declaração Universal, completou 20 anos em 2018

Como se vê, é expressiva a edificação dos andaimes e alicerces do templo dos Direitos Humanos. Prevalecem, no entanto, apesar do progresso verificado, significativas resistências ao processo de plena afirmação dos direitos humanos no plano internacional. Não se trata, em síntese, de um processo linear. Está sujeito a descontinuidades. Requer tempos longos. Enfrenta as seletividades políticas dos interesses da “razão-de-Estado”, interesses que são discricionários na avaliação e no peso atribuído ao descumprimento de normas por distintos países.

Daí problemas que, no correr dos anos, surgiram no funcionamento da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Estes problemas levaram à proposta institucional formulada por Kofi Annan, como secretário-geral da ONU em 2005, de substituição da Comissão por um Conselho de Direitos Humanos. Neste contexto das dificuldades, cabe observar que, apesar das mudanças institucionais, o novo Conselho, como foro diplomático, continua enfrentando problemas semelhantes aos da Comissão, no trato das seletividades.

Nos 60 anos da Declaração Universal, a multiplicação das tensões internacionais (de hegemonia e de equilíbrios regionais); a dinâmica da interação entre as forças centrípetas da globalização e as forças centrífugas dos particularismos, os unilateralismos, os fundamentalismos, a fragmentação do Direito Internacional Público – para elencar alguns ingredientes identificadores da primeira década do século XXI – contribuem para fazer do valor da dignidade humana o fruto de um consenso internacional frágil. Este consenso frágil é a expressão do que o filósofo norte-americano Walzer qualificaria de uma thin morality (moralidade tênue) (2), que requer adensamento axiológico e jurídico. Nesta tarefa de adensamento pode servir de inspiração um conceito de Guicciardini, o humanista contemporâneo de Maquiavel, politicamente mais bem sucedido que ele: “entre os homens normalmente a esperança pode mais que o medo” (3).

Notas
(1) Cf. BOBBIO, 2004, p. 58-60.
(2) WALZER, Michael. Thick and Thin – Moral Argument at Home and Abroad. Notre Dame, London, University of Notre Dame Press, 1994.
(3) GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi. Milano, Rizzoli, 1977, p. 126.

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