COMO A DEMOCRACIA RECUA

 

8 de fevereiro de 2021

2020, o ano da pandemia, assinalou um forte recuo global da democracia. A conclusão emerge do estudo Índice da Democracia, publicado anualmente pela consultoria The Economist Intelligence Unit (EIU). A tendência declinante começou em 2016, acentuando-se nos dois últimos anos.

O ano que terminou marca a média global mais baixa desde o início da série, em 2006: numa escala de zero a 10, onde 10 descreve um estado ideal de plena democracia, a média mundial ficou abaixo de 5,4. A pontuação média identifica-se com regimes híbridos brandos.

 

Fonte: The Economist Intelligence Unit, fevereiro de 2021

 

A classificação utilizada no estudo distingue três grandes categorias: regimes autoritários, regimes híbridos e democracias.

Os regimes autoritários caracterizam-se pela concentração do poder no governo e pela supressão geral das liberdades políticas e civis. A China, que vive sob um sistema totalitário de partido único, ilustra esse tipo de regime. Mais de um terço da população mundial vive, hoje, em 57 países sob regimes autoritários.

Nos regimes híbridos, o governo impede a alternância democrática de poder, mas subsistem espaços residuais de representação da sociedade, como parlamentos eleitos, partidos políticos funcionais e organizações sociais independentes. A Turquia exemplifica o conceito. Mas, nessa categoria, encontram-se 35 países e 15% da população do planeta.

As democracias são sistemas fundados na soberania popular, expressa em eleições justas e livres, na ampla vigência das liberdades públicas, na pluralidade política e no respeito aos direitos das minorias. Nessa categoria, o estudo diferencia as democracias plenas, 23 países onde vivem apenas 8,4% da população mundial, das democracias frágeis, que abrangem 52 países e dois quintos da população global. As últimas são sistemas democráticos sob intensa pressão de governos populistas (como os EUA, o Brasil e a Índia) ou crivados por amplo desencanto popular com os partidos tradicionais (como a França).

 

Um declínio geral, mas diferenciado

Das 167 nações analisadas, nada menos que 116 conheceram recuo nos seus índices. As quedas maiores ocorreram na África e no Oriente Médio, regiões dominadas por regimes autoritários. A América Latina conheceu pequeno recuo, mas seu índice médio declinou pelo quinto ano consecutivo. Na Europa, França e Portugal regrediram do estatuto de democracias plenas, que haviam reconquistado em 2019, para democracias frágeis.

A região autônoma chinesa de Hong Kong, submetida à nova Lei de Segurança imposta pela China, regrediu do estatuto de democracia frágil para o de regime híbrido. Na direção oposta, a província rebelde chinesa de Taiwan avançou para a condição de democracia plena, somando-se ao Japão e à Coreia do Sul.

Já Mianmar, que atingira a condição de regime híbrido cinco anos atrás, com a ascenção do governo civil liderado pelo partido de Aung San Suu Kyi, regrediu ao estatuto de regime autoritário em função da criminosa perseguição estatal à minoria Rohingya. O golpe militar do início de fevereiro de 2021 provavelmente trará novo retrocesso na esfera das liberdades públicas.

Policiais patrulham as praias fechadas da Vendeia, durante o lockdown nacional francês, 5 de abril de 2020

A pandemia de Covid-19, com seu cortejo de lockdowns, marcou 2020. Diante da emergência sanitária, a opinião pública aceitou majoritariamente as medidas restritivas extremas, admitindo ceder liberdades civis para salvar vidas. Contudo, em diversos países, as autoridades procuraram silenciar os críticos dos lockdowns – e, em muitos outros, governos utilizaram a pandemia como álibi para endurecer os controles sociais, estender a vigilância sobre a população e violar a liberdade de expressão.

Os fracassos dos EUA e da Europa na contenção da pandemia tendem a acelerar as tendências anteriores de deslocamento global de poder rumo ao Oriente. Tais fracassos são, também, desastres de propaganda para as democracias ocidentais, que já sofriam as consequências da ascensão de governos e partidos da direita nacionalista.

Na Europa centro-oriental, continuam a predominar as democracias frágeis e os governos nacional-populistas da Hungria e da Polônia seguem desafiando as normas democráticas da União Europeia. A Ucrânia escapou à esfera de poder da Rússia, mas não conseguiu consolidar um sistema democrático. Na Belarus, com apoio de Vladimir Putin, o ditador Alexander Lukashenko segue reprimindo um levante popular iniciado na hora da fraude eleitoral de agosto de 2020.

Como a democracia recua

Forca erguida diante do Capitólio, sede do Congresso dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, por militantes fanáticos de Donald Trump que contestavam o resultado das eleições presidenciais

Sob Donald Trump, a democracia americana continuou a se deteriorar, experimentando baixos níveis de confiança nas instituições políticas, níveis elevados de polarização ideológica e crescentes ameaças à liberdade de expressão.

A negativa de Trump em reconhecer sua derrota eleitoral e o assalto ao Capitólio por militantes da extrema-direita, em 6 de janeiro de 2021, expuseram em cores dramáticas o desafio enfrentado pela mais poderosa democracia do mundo. Joe Biden, o novo presidente dos EUA, tem a difícil missão de restabelecer o tradicional estatuto de democracia plena da superpotência.

O Brasil, sob o governo de Jair Bolsonaro, seguiu enquadrado na categoria das democracias frágeis, mas com um índice de apenas 6,92, que o coloca atrás de países como a África do Sul, a Colômbia e a Argentina. O fraco índice democrático brasileiro decorre, principalmente, das disfuncionalidades de seu governo e de uma cultura política degradada pelas inclinações autoritárias do bolsonarismo.

A África meridional abriga África do Sul, Botswana e Namíbia, três das cinco democracias do continente (as outras são Gana e Tunísia). Mas dois países lusófonos da região, Angola e Moçambique, registraram declínio de seus índices e continuaram a ser definidos como regimes autoritários com governos disfuncionais, baixo nível de pluralismo político e generalizadas ameaças às liberdades civis. Já o Zimbábue, apesar da queda do ditador Robert Mugabe, permanece na categoria de regime autoritário.

Nas duas nações mais populosas do mundo, a China, um regime autoritário, e a Índia, uma democracia frágil, os índices sofreram retrocesso. 

Imagem de bio do Twitter escolhida por Narendra Modi, primeiro-ministro indiano, em 14 de abril de 2020, quando anunciou a extensão do lockdown nacional

A China conheceu algum avanço em meados da década passada, mas tornou-se cada vez mais repressiva desde a proclamação de Xi Jinping como “presidente eterno”, em 2018, e a deflagração da campanha institucional de “reeducação” dos muçulmanos uigures.

Já o índice da Índia declina continuamente desde 2016. Sob o governo de Narendra Modi, um líder nacional-populista, o país passou a violar sistematicamente os direitos de seus cidadãos muçulmanos. Durante a pandemia, o governo indiano estimulou decretou um lockdown nacional que produziu efeitos desastrosos para a massa de trabalhadores migrantes das grandes cidades. A emergência sanitária também funcionou como pretexto para a perseguição de muçulmanos por correntes hinduístas radicais protegidas pelo guarda-chuva do BJP, o partido de Modi.

 

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