SILÊNCIO ROMPIDO NA BELARUS

 

Demétrio Magnoli

17 de agosto de 2020

 

Um longo silêncio rompeu-se na Belarus. O ditador Alexander Lukashenko foi, como sempre, declarado vencedor nas eleições rigidamente controladas de 9 de agosto. Mas, antes e depois delas, seu poder conheceu o protesto das ruas.

Svetlana Tikhanovskaya em campanha. A candidata casual cindiu o edifício do poder de Lukashenko

A candidatura independente de Svetlana Tikhanovskaya nasceu com a prisão de seu marido, o ativista dissidente e blogueiro Siarhei Tsikhanouski, em maio. Em torno dela, comícios de massa desafiaram o ditador. As urnas jamais refletiriam a vontade popular e, por isso, ninguém se surpreendeu com os resultados fabricados, que conferiram 80% dos votos a Lukashenko. Contudo, a fraude evidente intensificou os protestos.

No dia seguinte às eleições, sob ameaças, Tikhanovskaya permaneceu escondida. Na sequência, exilou-se na Lituânia, enquanto a repressão abatia-se em Minsk, a capital bielorrussa, e dezenas de outras cidades. Balas de borracha e munição real riscaram os ares. As forças de segurança espancaram os manifestantes e prenderam cerca de 6 mil pessoas. Nos cárceres, prosseguiram os espancamentos. Nas ruas, mulheres vestidas de branco tomaram a linha de frente, denunciando a violência.

As aparências trazem à memória a Euromaidan, a revolução popular de 2014 que derrubou o governo pró-russo da Ucrânia. A Belarus, porém, não é a Ucrânia.  

 

À sombra da “Grande Rússia”

Desde a implosão da URSS, a Ucrânia manteve um sistema político aberto, com eleições livres periódicas e respeito às liberdades de expressão, organização e manifestação. A Belarus, pelo contrário, fechou-se num sistema ditatorial assentado no poder pessoal de Lukashenko.

O presidente bielorrusso ocupa o cargo desde que ele foi instituído, em 1994. Antigo diretor de uma fazenda coletiva (kolkhoz), único deputado do parlamento bielorrusso a votar contra a dissolução da URSS, Lukashenko sempre agiu como vassalo do Kremlin. Sob o seu regime, firmaram-se os acordos da União com a Rússia, entre 1996 e 1999, que prevêem a união monetária, uma cidadania comum e uma política unificada de defesa.

A dependência econômica bielorrussa em relação à Rússia é quase absoluta. Belarus é uma ponte crucial na geopolítica dos gasodutos russos. Por seu território, passa um quinto do gás fornecido pela Rússia à Europa. O duto Yamal-Europa transporta combustível extraído na Sibéria Ocidental para a Alemanha e o Northern Lights segue rota quase paralela, com destino à Polônia. A semi-estatal russa Gazprom, que controla os dois dutos, absorveu a companhia de gás bielorrussa Beltransgaz em 2011. A Rússia fornece à Belarus petróleo e gás a preços subsidiados, uma ferramenta de chantagem que Putin utiliza costumeiramente para submeter Lukashenko às suas vontades.

Fonte: Gazprom

O nacionalismo ucraniano tem forte componente anti-russo, nutrindo-se da lembrança trágica do Holodomor, a Grande Fome de 1932-33, engendrada pelo extermínio dos camponeses familiares (kulaks), durante a coletivização forçada de Stalin. Na Belarus, não existe um nacionalismo marcadamente anti-russo, embora registre-se crescente ressentimento diante da vassalagem política e da dependência econômica.

Os manifestantes que se reuniram em torno da candidata de oposição não sonham com a hipótese de ingresso na União Europeia, um motor crucial da revolução ucraniana. Eles sabem que a Belarus não pode cortar seus laços com a Rússia. Além disso, acompanham a experiência recente da Ucrânia, que enfrenta uma guerra separatista de baixa intensidade instalada por Moscou no leste do país.

A revolta dirige-se contra o regime de Lukashenko, que perdeu a legitimidade remanescente com a pandemia do coronavírus. O ditador entrincheirou-se no negacionismo, alegando que copos de vodka e banhos de sauna suprimem o vírus.  

 

O limite da vassalagem

A Rússia não enxerga Belarus como nação soberana, mas como um protetorado da “Grande Rússia”. Putin orienta-se pelo manual clássico da geopolítica russa, que classifica o corredor de planícies entre a Alemanha e a Rússia Europeia como estrada de trânsito de exércitos invasores. Na base do raciocínio, há uma história longa, dramática, pontuada por Napoleão e Hitler.

Depois da implosão da URSS, a OTAN avançou suas forças até a fronteira oriental polonesa. Nessa moldura, o Kremlin trata Belarus como escudo defensivo da Rússia: um ativo estratégico de profundidade territorial.

Vladimir Putin confere a Alexander Lukashenko a Ordem de Alexander Nevsky, no Kremlin, em 2015

Lukashenko inclina-se ritualmente diante de Putin. Contudo, a vassalagem tem um limite, que é a manutenção de seu poder pessoal. “Não somos russos, somos bielorrussos”, proclamou em 2014, após a anexação da Crimeia pela Rússia, no primeiro discurso em que trocou a língua russa pela bielorrussa. Há um ano, na mesma linha, disse “não” diante da insistência de Putin em implementar sem demora os acordos da União. O ditador bielorrusso não quer ser rebaixado à condição de mero fantoche do líder russo.

As tensões entre Putin e Lukashenko emergiram nas eleições. O Kremlin patrocinou, veladamente, as candidaturas de Viktor Babariko, antigo diretor-geral do banco da Gazprom, e do ex-diplomata e empresário Valery Tsepkalo. Não se tratava de derrotar Lukashenko, mas de confiná-lo na defensiva. O ditador bielorrusso reagiu a seu modo, prendendo Babariko e obrigando Tsepkalo a buscar refúgio na Rússia. Para completar, semanas antes das eleições, prendeu 33 supostos mercenários, acusando Moscou de interferência nos assuntos bielorrussos.

Há precedentes históricos. Num contexto político diferente, Nicolae Ceausescu, o tirano comunista da Romênia, rejeitou a submissão absoluta a Moscou, denunciando a invasão soviética da Tchecoslováquia que, em 1968, encerrou a aventura democratizante da Primavera de Praga. Ceausescu não queria a democracia, nem em terras tchecas, nem em terras romenas. Pretendia, isso sim, proteger a autonomia de seu próprio regime totalitário.

No fim, Putin ofereceu congratulações a Lukashenko, dizendo que o resultado eleitoral “atende aos interesses fundamentais dos povos fraternos da Rússia e da Belarus” e assegura “relações de mútuo benefício em todas as áreas”. Ele aposta no gradual enfraquecimento político do ditador bielorrusso, pois almeja obrigá-lo a ceder em tudo, aplicando os acordos da União.

A aposta de Putin tem seus riscos. Os manifestantes não querem o vassalo de Putin. Nem um fantoche sem fantasia. O chamado à greve interrompe o trabalho em diversas fábricas bielorrussas. O silêncio não voltará a Belarus.

Silêncio rompido na Belarus

Operários em greve exigem a demissão de Lukashenko, em Minsk, 14 de agosto de 2020

 

 

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