“Transformação pela educação” – o lema oficial para a política chinesa na província do Xinjiang, foco geográfico do povo uigur, não é o que parece. “A repressão estatal no Xinjiang jamais foi tão severa quanto se tornou desde o início de 2017”, escreveu James A. Millward, historiador que pesquisa a província chinesa há três décadas, em artigo no The New York Times. De fato, fortes indícios sugerem que, de lá para cá, centenas de milhares de uigures foram internados em “campos de reeducação”.
Os uigures são um grupo etnolinguístico centro-asiático de raízes turcas e religião predominantemente muçulmana. Concentram-se no Xinjiang, província autônoma do noroeste chinês, onde são cerca de 10 milhões. Na China, há 11,3 milhões de uigures, segundo o censo, ou 15 milhões, de acordo com a Associação Uigur Americana. Significativas diásporas uigures encontram-se no Cazaquistão, no Uzbequistão, no Quirguistão, na Turquia e na Arábia Saudita.
A dinastia Qing conquistou o atual Xinjiang no século XVIII. Na década de 1930, a região desprendeu-se da República da China, até ser retomada pelas forças comunistas de Mao Tsé-tung, em 1949. Desde a fundação da República Popular da China, como fruto de políticas oficiais de colonização, o Xinjiang conhece fluxo migratórios de chineses Han. Hoje, os Han formam pouco mais da metade da população regional, de cerca de 25 milhões. Os uigures compõem a maior minoria étnica.
No Xinjiang, conta Millward, a antiga discriminação oficial evoluiu até o estágio de uma distopia orwelliana. “Imagine que essa é sua vida cotidiana. No caminho para o trabalho ou num passeio, você passa por um posto policial a cada 100 metros. Câmeras nas esquinas ou em postes de iluminação reconhecem seu rosto e acompanham seus movimentos. Em diversos checkpoints, policiais escaneiam sua carteira de identidade, a sua íris e os conteúdos de seu celular. No supermercado ou no banco, você é escaneado novamente, suas sacolas passam por um raio-X e um policial passa um bastão por seu corpo – ao menos se você é do grupo étnico errado.”
O separatismo uigur manifestou-se nos violentos, mas minoritários, levantes de 2009. Na periferia do movimento separatista, surgiram células terroristas inspiradas pelo jihadismo. Desde o 11 de setembro de 2001, o regime chinês passou a erguer o espantalho das “três forças demoníacas do separatismo, do extremismo e do terrorismo”. A implantação do Estado policial derivou da combinação dos temores do regime chinês com as inclinações características do totalitarismo. A “transformação pela educação”, ideia-força da Revolução Cultural maoísta, ganhou a adição das novas tecnologias de vigilância em massa. O “Grande Irmão” espreita o Xinjiang, tratando todos os uigures como potenciais inimigos do Estado.
Não é exagero. Todos os veículos comercializados na região contém um GPS conectado às forças de segurança. Nos hospitais, em exames médicos rotineiros, coleta-se o DNA de uigures. Os celulares já vêm com aplicativos controlados pela polícia. O único software de comunicação permitido é o WeChat, serviço chinês de mensagens que confere ao governo acesso aos conteúdos compartilhados pelos usuários. Uma base de dados associada às carteiras de identidade descreve os hábitos e o círculo de conhecidos dos habitantes do Xinjiang.
A radicalização repressiva começou em agosto de 2016, quando Chen Quanguo assumiu o governo regional. Chen é uma das “estrelas” ascendentes do Partido Comunista Chinês (PCC). Sua carreira rumo ao topo foi acelerada pela reorganização geral da cúpula do Partido-Estado promovida nos últimos anos por Xi Jinping, declarado em 2017 “presidente eterno” da China. Antes do Xinjiang, Chen chefiou o PCC no Tibete, onde refinou os métodos de repressão em regiões marcadas pela presença de minorias étnicas.
Xi Jinping e, atrás dele, Chen Quanguo, seus “olhos e ouvidos” no Xinjiang
De um lado, o novo líder contratou dezenas de milhares de policiais. De outro, enviou massas de uigures a “campos de reeducação”. Não há, obviamente, estatísticas oficiais sobre os internados. O governo chinês nega, inclusive, a existência dos campos. Mas, segundo diversas fontes independentes, o confinamento talvez atinja até meio milhão de pessoas. Nas cidades e povoados da região, encapuzados, parentes das vítimas organizam manifestações nas quais erguem documentos de identidade dos internados.
A Anistia Internacional submeteu ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (OHCHR) um relatório com depoimentos, obtidos no Xinjiang, sobre as prisões em massa. Os internados, dizem os depoentes, não contam com aconselhamento legal e não são formalmente acusados de nenhum crime. Nos “campos de reeducação”, devem jurar fidelidade ao PCC e, em especial, a Xi Jinping. Os relatórios denunciam, ainda, ordens oficiais em certas cidades da região que proíbem a utilização do idioma uigur em escolas ou eventos públicos, vetam o uso de barbas “anormalmente” compridas e determinam a apreensão de exemplares do Corão.
A China não toma conhecimento de nenhuma das denúncias. Um porta-voz do governo regional declarou, cinicamente, que “os muçulmanos mais felizes do mundo vivem no Xinjiang”. A porta-voz do Ministério do Exterior chinês declarou, por sua vez, que as críticas internacionais sobre a discriminação sofrida pelos uigures representam “interferência nos assuntos internos da China”, dando de ombros para a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, em particular, para os direitos das minorias étnicas.
A vigilância estatal obsessiva sobre os uigures é perceptível para jornalistas estrangeiros, aos quais se nega acesso a cidades do Xinjiang, e até mesmo a simples turistas, regularmente interrogados por policiais a respeito de contatos com habitantes locais. Gene A. Bunin, escritor e tradutor que pesquisa o idioma uigur, passou 18 meses no Xinjiang. Num artigo publicado no The Guardian, Bunin dá conta de inúmeros depoimentos que confirmam as denúncias de detenções em massa e registra um pervasivo sentimento de temor. Em duas ocasiões, policiais advertiram-no para “não ficar de conversa com pessoas ruins do Xinjiang”, numa referência eufemística aos uigures.
A prática do eufemismo infiltrou-se na linguagem regional. Os mais comuns, registra Bunin, são yoq (“se foi”) e adem yoq (“todos se foram”), utilizados para indicar que estão confinados em campos de concentração. Os campos, eles mesmos, são definidos pelos atemorizados habitantes locais por meio de termos que remetem a “estudos” (oqushta), à “educação” (terbiyileshte) ou à “escola” (mektepte). No Xinjiang, a “novilíngua” é a língua geral.
“Não é possível extirpar, uma a uma, todas essas sementes escondidas na plantação – é preciso espalhar substâncias químicas para matá-las todas”, explicou uma autoridade local da cidade-oásis de Kashgar, no extremo oeste do Xinjiang. O regime chinês parece engajado numa redefinição étnica da identidade do país, buscando uniformizá-lo segundo padrões da maioria Han. A política de repressão identitária no Xinjiang, observa Millward, tem uma nítida raiz nativista – e, nesse sentido, deve ser inscrita na moldura global de ascensão do nativismo.
Mesmo na cúpula dirigente chinesa, há os que discordam da política aplicada no Xinjiang. Eles não falam em direitos humanos ou liberdades civis, conceitos estranhos ao discurso oficial chinês. Mas, sempre discretamente, observam que a repressão generalizada tem custos materiais e sociais insustentáveis. E, sobretudo, que ela tende a conduzir a um resultado oposto ao desejado, empurrando os uigures rumo ao extremismo religioso.
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