“LOVE JIHAD”: GUERRA AO AMOR NA ÍNDIA

 

Elaine Senise Barbosa

7 de dezembro de 2020

 

Cada país inventa a teoria da conspiração que melhor se encaixa no seu ambiente cultural e imagético. Na Índia, ganha força entre os nacionalistas radicais a crença de que homens muçulmanos estão seduzindo moças hindus e casando-se com elas para, em seguida, obrigá-las a se converterem ao Islã. Dizem que é um plano financiado por organizações jihadistas internacionais destinado a provocar alterações demográficas em certas regiões do país, transformando os muçulmanos em maioria. Chamam isso de Love jihad ou Romeo jihad, a guerra santa do amor.

Propaganda nacionalista

A mulher, exposta como eterna vítima que precisa ser defendida. O ventre da mulher é o novo campo de disputa religiosa na guerra demográfica

Criminalizar o amor inter-religioso é o que estão fazendo os ultranacionalistas hinduístas (hindutvas). O que era considerado boato há pouco mais de uma década, coisa de teóricos da conspiração desacreditada por autoridades, agora é objeto de discussões parlamentares e leis. Os defensores da tese invocam a necessidade de proteger as mulheres, bem como combater o terrorismo. 

Grupos como o Hindu Rakshak Samiti (HRS), Hindu Yuva Vahini (HYV) e Janjagruti Samiti (JS) se exibem no papel de vigilantes da “honra” das famílias hindus, “salvando” as mulheres de serem enganadas por homens muçulmanos. Assim que observam um par inter-religioso, membros desses grupos procuram imediatamente a família das jovens para “alertá-las”. Já o ousado muçulmano torna-se, muitas vezes, alvo de recados bem violentos para se manter afastado.

 

O alvo é a autonomia das mulheres

O costume na Índia, em todas as comunidades religiosas, é que os pais negociem o casamento dos filhos e, principalmente, das filhas (para os muito pobres, em mal disfarçadas vendas de mulheres que serão condenadas à escravidão doméstica). Os nacionalistas aproveitam-se dessa triste tradição, açulando os pais para fiscalizarem suas filhas e “cortarem o mal pela raiz”.

A Constituição indiana reconhece a autonomia das mulheres. Legalmente, portanto, elas não precisam de consentimento familiar para se casar, mas é aí que tradição, somada a “chute, porrada e fogo”, limitam a liberdade de escolha e convertem a lei em letra morta.

Na última década movimentos de mulheres na Índia têm conseguido dar visibilidade ao drama por elas vivido, provocando reações externas e pressões de órgãos internacionais sobre o país. Não importa a religião: elas são inferiorizadas e violentadas como seres humanos, em suas próprias comunidades ou pelos membros das comunidades rivais, sendo o estupro a face mais brutal do problema. A própria urbanização e ascensão social experimentada nos últimos anos, com mais escolarização e mais intercâmbios externos, tem mudado lentamente o pensamento das elites dirigentes, trazendo avanços institucionais destinados a garantir os direitos das mulheres, bem como protegê-las da misoginia imperante.  

Nessa moldura, destaca-se a coincidência temporal entre esses pequenos avanços da sociedade indiana em direção à igualdade de gênero e a difusão da teoria da “guerra santa do amor”. Feministas denunciam a narrativa do love jihad como instrumento de infantilização das mulheres, vistas como tolas, facilmente enganáveis e, portanto, necessitando de tutela dos familiares homens. Aparentemente, o ambiente de ressentimento e insegurança psíquica que hoje alimenta muitos dos movimentos de extrema-direita passa, na Índia, pela emancipação das mulheres.

 

Não é amor, é terrorismo

Hadja no tribunal

Hadja Ashokan é conduzida ao Tribunal que vai decidir sobre o seu direito de escolher o marido

No estado meridional de Kerala, desde 2009, lideranças religiosas emitem alertas sobre o love jihad. Em maio de 2017, o Supremo Tribunal estadual anulou o casamento do muçulmano Shafeen Jahan, 27 anos, com a hindu Akhila Ashokan, 24, que se converteu e mudou seu nome para Hadja.

Os pais da jovem, autores do processo, alegaram não haver dado consentimento para a união. Enviada de volta à casa paterna enquanto o marido recorria a tribunais superiores, Hadja foi espancada e buscou proteção em uma delegacia, pois temia ser assassinada em nome da “honra” da família, um crime comum na Índia. O caso ganhou repercussão e chegou à Suprema Corte do país.

Hadja era maior de idade quando se casou, afirmou seu desejo de permanecer casada e declarava com toda a tranquilidade sua conversão ao Islã. Não havia muito o que fazer do ponto de vista legal para sustentar a anulação do matrimônio, exceto por um detalhe: o pai afirmava que o então poderoso Estado Islâmico (ISIS) era o patrocinador daquele casamento, cujo objetivo final seria levar essas mulheres ao Iraque para se juntarem aos combatentes como suas esposas. A acusação sustentava-se exclusivamente na circunstância de que muitos jovens muçulmanos de Kerala radicalizaram-se e se juntaram ao ISIS. Mesmo assim, o tribunal transformou o caso numa “investigação sobre terrorismo” e Hadja foi enviada à escola para estudar.

A história do casal Jahan é apenas um exemplo de como o nacionalismo extremista precisa inventar inimigos para legitimar sua violência. Em sua esteira, em setembro, o ministro-chefe do estado setentrional de Uttar Pradesh, Yogi Adityanath, um conhecido hindutva, pediu ao governo nacional uma estratégia para prevenir “conversões religiosas em nome do amor”, mesmo que seja por decreto. Há pouco, em novembro, quatro estados governados pelo partido governista BJP (Uttar Pradesh, Madhya Pradesh, Haryana e Karnataka) passaram a esboçar leis contra “conversões forçadas” por meio de casamentos. As leis em estudo permitiriam a anulação desses casamentos, se os juízes se convencerem de que eles se destinam à conversão religiosa. Em Madhya Pradesh, o projeto de lei prevê a prisão por dez anos dos infratores.

Minifestação anti-lovejihad

Manifestação de um grupo ultranacionalista, o Vokkaliga, pedindo medidas contra o love jihad

O nacionalismo etno-religioso representado pelo BJP, partido do primeiro-ministro Narendra Modi, caminha no sentido de excluir uma parcela da população do direito de exercer cidadania plena. O alvo aparente é a maior minoria religiosa da Índia.

Os muçulmanos formam cerca de 13% da população indiana, diante de 81% de hindus. O BJP descobriu que a polarização religiosa rende votos e, utilizando essa ferramenta, consolidou seu poder na última década. A discriminação não atingiu, por hora, as demais minorias religiosas (cristãos, sikhs, budistas e jainistas).

Há poucos meses, um recadastramento nas universidades foi usado como pretexto para cassar direitos dos muçulmanos, atiçando uma onda de violência inter-religiosa por todo o país que fez lembrar os piores momentos da bipartição entre Índia e Paquistão, em 1947. Os nacionalistas radicais querem destruir o Estado laico instituído pela independência e associado ao Partido do Congresso.

E também não estão nem aí para as mulheres que alegam proteger. O que desejam, de fato, é controlar suas vidas.

 

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