A SEGUNDA MORTE DE GANDHI

 

Elaine Senise Barbosa e Rafael Pepe Romano

(Historiadora e editora executiva do site 1948; bacharel em Direito e pesquisador do site)   
6 de fevereiro de 2023

 

Há 75 anos, em 30 de janeiro de 1948, Mohandas Gandhi foi assassinado a tiros perto de sua casa, enquanto se dirigia para as orações. Ele era  conhecido como “Mahatma” Gandhi, algo como “venerável” ou “sábio” e seus ensinamentos de não-violência se espalharam pelo mundo. No entanto, sua amada Índia parece ter dado uma volta sobre si mesma e retornado ao tempo da independência frente ao Reino Unido e divisão do território para a criação do Paquistão, um país para os muçulmanos (a palavra “Paquistão”, aliás, significa “país dos puros”).

Nathuram Godse, assassino de Gandhi

Nathuram Godse, condenado à morte pelo assassinato de Ghandi

A República da Índia formada sob a liderança do Partido do Congresso, de Jawaharlal Nehru, o primeiro chefe de governo, e de Gandhi, baseou-se na separação entre Estado e religião, ao contrário do Paquistão. Hoje, porém, é governada pelo primeiro-ministro Narendra Modi, do Bharatiya Janata Party (Partido do Povo Indiano), que propõe o oposto: a submissão do Estado e da ordem social ao grupo religioso majoritário, os hindus. Pior: o BJP abriga grupos supremacistas hindus e  manifestações de exaltação a ninguém menos que Nathuram Godse, o fanático que disparou contra Gandhi.

Difícil não estranhar a cena de um protocolar Modi exaltando o maior herói da República da Índia quando se sabe que seu partido tem raízes no grupo supremacista do assassino. E que seu governo usa as diferenças religiosas para gerar conflito étnico e fortalecer fanáticos religiosos.

 

As experiências de Gandhi

Nascido em família de casta média, em 2 de outubro de 1869, o jovem Mohandas foi influenciado por correntes do hinduísmo que pregavam a não violência e a prática do jejum como ato de purificação. Sua boa posição de casta permitiu-lhe ingressar no University College, em Londres, para estudar Direito. Aos 23 mudou-se para a África do Sul, outra colônia britânica, levado pelas oportunidades trazidas pela imensa presença de trabalhadores indianos nas minas de diamantes na região do Natal.  

De acordo com o sistema de classificação racial existente na África do Sul, Gandhi era um coloured (abaixo dos brancos, acima dos negros). Assim, ele descobriu que seus direitos dependiam da cor de sua pele, assim como os bairros aos quais tinha acesso. Pelo mesmo motivo, não tinha o direito de usar  turbante em lugares públicos. Por volta de 1894, quando soube que havia uma proposta de lei para retirar o direito de voto dos indianos residentes no país, Gandhi começou a se envolver mais efetivamente com a atividade política. Ele propôs o boicote a produtos britânicos e desobediência às leis injustas e acabou preso algumas vezes por atos de desobediência civil.

A compreensão da existência de pessoas muito diferentes convivendo em grandes cidades ensinou ao advogado e ativista que retornou à Índia pouco antes da Primeira Guerra Mundial que, para vencer os britânicos, os indianos não poderiam apelar ao critério religioso. Em certas áreas, inclusive Gujarat, onde o próprio Mohandas nasceu, havia forte presença muçulmana na população.

Por isso, rapidamente Gandhi se uniu às forças progressistas do Partido do Congresso para lutar pela independência da Índia, sem abrir mão da sua metodologia de não-violência e desobediência civil. Gandhi convocou os indianos a não participarem voluntariamente dos atos que os constrangiam e legitimavam o poder do opressor britânico.

Gandhi acena para apoiadores

Gandhi acena para apoiadores durante viagem de trem pela Índia

 

Ficou difícil para os “civilizados” britânicos explicarem o fato dos “primitivos” indianos apanharem das tropas de Sua Majestade mesmo sem esboçar qualquer ação de agressão e serem apresentados como pessoas perigosas. Foi uma derrota moral. A não-violência fala às pessoas comuns e, ao longo do tempo, serviu de inspiração para movimentos por direitos civis e políticos em todo o mundo, incluindo o “Paz & Amor” dos hippies e dos “verdes”.

  

Índia, Estado laico

Na origem, o que estava em disputa era qual modelo de Estado um país gigante como a Índia deveria adotar. Um Estado confessional, com opção oficial pelo hinduísmo, praticado pela grande maioria? Ou um Estado laico, no qual a religião é assunto privado, que não interfere nos direitos civis ou individuais.

A India dividia por religioes

Fonte: Le Monde Diplomatique, fevereiro 2023

 

Godse era hindu e, como muitos outros, estava insatisfeito com a criação de um Estado laico, como proposto pelo Partido do Congresso e apoiado por Gandhi, que temia um conflito religioso violento. De fato, sua morte selou a divisão entre Índia e Paquistão iniciada com a independência, em 1947, e intensificou a grande onda de migrações, perseguições e indignidades recíprocas.

Valendo-se do mesmo critério religioso que empregaram para dividir, os britânicos inventaram um Paquistão Oriental, subordinando politicamente a população de Bangladesh ao governo central de Islamabad. O Paquistão Oriental separou-se apenas em 1971, após uma guerra e um desastre humanitário, tornando-se o atual Bangladesh.

O assassino de Gandhi e mais sete cúmplices foram presos e julgados. Godse e mais um declararam-se culpados porque, segundo eles, Gandhi havia traído a Índia. Ambos foram enforcados em 1949. Eles pertenciam à organização hindu radical Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS). Uma nódoa desceu sobre o discurso nacionalista amparado na identidade religiosa. Pelas décadas seguintes, a Índia definiu a si mesma segundo o conceito da conciliação democrática inter-religiosa, na tradição de Gandhi. 

 

O fim de uma herança?

Símbolo do RSS- grupo ultanacionalista hindu

Símbolo da Rashtriya Swayamsevak Sangh (Organização Nacional de Voluntários), a organização paramilitar hindu de Godse e Modi

O século XXI embaralhou as cartas e trouxe de volta a religião para o centro do debate político, como elemento para a mobilização populista das massas. O atual primeiro-ministro é um filiado da RSS. E sua política representa exatamente o nacionalismo religioso sectário que Gandhi quis evitar em nome da paz de todos os indianos e da não-violência. Hoje, até o namoro entre jovens de distintas comunidades tornou-se objeto de reprovação e perseguição. 

O neto de Gandhi, Tushar A. Gandhi, milita em nome da herança secularista deixada pelo avô. Ele alerta para as campanhas de desinformação produzidas por radicais hindus que tentam reescrever a história da Índia.

Após o retorno do BJP ao governo central, em 2014, grupos radicais pediram que se erigisse um busto em homenagem a Godse, mas não foram atendidos. “Os grupos radicais estão se apropriando do nobre conceito de nacionalismo defendido pelos pais da Índia frente ao colonialismo. Mas seu nacionalismo é religioso e sectário”, afirma o historiador Aditya Mukherjee. “Ninguém pode negar o papel do radicalismo hindu no assassinato de Gandhi. Como tampouco se pode negar a conexão política do atual governo com os grupos que o mataram.”

 

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