ISLAMOFOBIA, SOB PRETEXTO SANITÁRIO

 

Demétrio Magnoli

11 de maio de 2020

 

A emergência sanitária tornou-se um novo pretexto para a islamofobia na Índia. Muçulmanos comuns sofrem brutalidades, perseguições e discriminação sob a acusação de serem transmissores do coronavírus e fraudadores da quarentena nacional. O governo de Narendra Modi opera como força organizadora oculta das violências.

Mehboob Ali, 22 anos, tornou-se a face icônica da onda de islamofobia em curso. No caminho para casa, depois de uma reunião de missionários muçulmanos no povoado de Harewali, em 5 de abril, ele foi impiedosamente surrado por uma multidão que o enxergava como vetor de difusão da epidemia. O evento foi registrado e o vídeo circulou pelas redes sociais.

O episódio é apenas uma ilustração de ondas de violência que correm como rastros de fogo pelo país. A crise sanitária não deflagrou os ataques, mas agravou um cenário de hostilidade que se descortinava antes, impulsionado pelo nacionalismo hinduísta de Modi. O avanço da discriminação religiosa oficial coloca em risco a identidade democrática da Índia, que se baseia na laicidade estatal.

Índia e Paquistão nasceram da bipartição da Índia Britânica, em 1947. O Paquistão surgiu como Estado islâmico; a Índia, como Estado laico. Os hindus representam quase 80% da população indiana, estimada hoje em cerca 1,35 bilhão de habitantes. Já os muçulmanos, principal minoria, são pouco mais de 14% (atualmente, algo como 190 milhões).

A minoria muçulmana se distribui de modo muito desigual pelo território indiano. Segundo o censo mais recente, de 2011, os muçulmanos representam mais de um quinto da população na densamente povoada região do rio Ganges.

No estado de Uttar Pradesh, o mais populoso, são cerca de 20%. Harewali situa-se em Uttar Pradesh, na área de influência da capital nacional, Nova Delhi. No estado de Assam, os muçulmanos são 34%; em Bengala Ocidental, 27%. Jammu/Caxemira (a Caxemira indiana), no noroeste, é o único de maioria muçulmana.

 

Modi, arauto da islamofobia

Desde a independência, definiu-se uma corrente política indiana contrária à laicidade estatal, que enxerga na religião hindu a fonte histórica da identidade nacional da Índia. Essa corrente evoluiu, através de diversas ramificações, até a formação do Bharatyia Janata Party (BJP), ou Partido do Povo Indiano, em 1980.

A doutrina do BJP é a Hindutva, uma ideologia conservadora fundamentada na ideia de que os hindus são os “verdadeiros indianos”, enquanto os demais grupos religiosos seriam “estrangeiros” étnicos e culturais. O conceito de uma “nação de sangue” hindu choca-se com a Constituição da Índia, que define a nação como um contrato entre cidadãos com direitos iguais.

Modi fez sua carreira política entre grupos hinduístas radicais, até se tornar o principal dirigente do BJP em 2001. No mesmo ano, ele assumiu a chefia do governo estadual de Gujarat e, entre fevereiro e março de 2002, sob sua discreta cobertura, eclodiu no estado uma onda de violência contra muçulmanos que deixou milhares de vítimas fatais. A difusão da islamofobia funciona como ferramenta de poder político.

A vitória eleitoral do BJP conduziu Modi à chefia do governo nacional em 2014. O novo triunfo do partido nas eleições gerais de 2019 garantiu-lhe um segundo mandato, que começou com a decisão de revogar o estatuto de autonomia de Jammu/Caxemira, acirrando as tensões com a maioria muçulmana da região disputada com o Paquistão. 

O BJP não se contentou com isso. A partir do estado de Assam, iniciou a atualização Registro Nacional de Cidadãos, que se estende para todo o país. A iniciativa, de aparência meramente administrativa, tem a finalidade de revogar a cidadania de milhões de muçulmanos pobres, classificando-os falsamente como imigrantes ilegais. Ela gerou protestos de rua, interrompidos pela decretação de uma quarentena nacional que lançou ao desespero as massas de trabalhadores temporários das cidades. 

Islamofobia, sob pretexto sanitário

Comício de Narendra Modi, em 2019. O primeiro-ministro organizou sua carreira política em torno do nacionalismo hinduísta

 

Os “trapaceiros da quarentena”

O jovem surrado em Harewali integra um grupo ligado ao movimento islâmico tradicionalista Tablighi Jamaat, um dos maiores do mundo, com larga presença na Índia. No início de março, o movimento ignorou as normas de distanciamento social definidas pelo governo e realizou uma conferência em sua sede, em Delhi.

As autoridades afirmam que o evento gerou um vasto foco de contágios e, mesmo com escassa testagem nacional, atribuem a ele cerca de 30% dos casos de Covid-19 no país. Um dos líderes do Tablighi Jamaat foi, então, acusado de homicídio culposo, o que pode lhe render pena de dez anos de prisão. O episódio, divulgado freneticamente pelas redes sociais do nacionalismo hinduísta, detonou a onda de violência contra muçulmanos.

“São pessoas perigosas, trapaceiros da quarentena! Eles nos expõem a todos”, clamou o âncora de um dos mais assistidos telejornais do país, referindo-se genericamente aos muçulmanos. No BJP, emergiram sugestões de fuzilamento sumário dos integrantes do Tablighi Jamaat. Modi e seu círculo mais próximo distanciaram-se publicamente das vozes mais extremistas, mas quase nada fizeram para punir os agitadores que deflagram as brutalidades nas ruas.

Protesto de muçulmanos contra as perseguições religiosas na Índia

A conferência islâmica em Delhi não foi o único evento religioso que violou a quarentena. Um ritual hindu atraiu centenas de participantes em Chitapur, na Índia central, em meados de abril, quando as normas sanitárias já tinham se tornado mais rígidas. Contudo, são os muçulmanos, não os hindus, que estão na alça de mira.

Pratik Sinha, de um site indiano dedicado à identificação de fake news, decifrou a gramática das correntes de ódio impulsionadas pelo nacionalismo hinduísta. Tais correntes asseguram que os muçulmanos espalham intencionalmente o vírus, praticando uma espécie de “terrorismo biológico”. No Twitter, elas usam a hashtag #CoronaJihad para estimular os ataques contra muçulmanos. A campanha de islamofobia desenrola-se à sombra do governo. Mas Modi não participa dela, pessoalmente.   

      

 

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