Campo de deslocados internos em Sake, Kivu do Norte, província onde somam 2,3 milhões
1º de abril de 2024
A República Democrática do Congo (RDC), na África Equatorial, é o centro de uma das piores crises de deslocamento forçado no planeta. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), o Congo abriga quase 7 milhões de deslocados internos, atrás apenas do Sudão, onde existe uma guerra civil. No Congo não há guerra civil, mas uma instabilidade politica imensa, causadora de violências terríveis que empurram as pessoas de um lado para o outro, de campos em campos de refugiados.
A amplitude geográfica e demográfica do Congo justifica uma maior repercussão. Seu território é o segundo mais extenso do continente; sua população é a quarta maior da África, com cerca de 100 milhões de habitantes. Ocupando posição central no continente gigante, ele se estende da foz do rio Congo, no Oceano Atlântico, até as colinas, picos e lagos do Vale do Rift, na África Oriental.
A crise congolesa ocorre no leste do país. As províncias de Kivu Norte, Kivu Sul, Ituri e Tanganica concentram 81% dos deslocados internos. Uma constelação de grupos armados, mais de cem, utiliza esses territórios como base. Outras províncias são arrasadas por ondas de violência intercomunitária, como Kasai (2016-2018) e Mai-Ndombe (desde 2022).
O resultado é que o total de refugiados e solicitantes de asilo oriundos do Congo ultrapassa um milhão, segundo dados do Acnur. A violência interna também ameaça mais de 527 mil refugiados acolhidos no país, vindos principalmente dos vizinhos República Centro-Africana, Ruanda, Sudão do Sul e Burundi.
Em meio à negligência da comunidade internacional, é preciso desemaranhar os fios do cenário congolês, cuja compreensão pode ajudar a diminuir a omissão.
A província de Kivu Norte é o epicentro do drama no Congo, onde se sobrepõe questões internas e externas. De um lado, a ofensiva do grupo rebelde Movimento 23 de Março (M23), que se diz guardião étnico dos tutsis congoleses. De outro, o jihadismo das Forças Democráticas Aliadas (ADF), oriundas da vizinha Uganda. Os choques entre essas forças e o exército amplia velozmente o número de deslocados.
Com o avanço dos grupos rebeldes, os civis ficam à mercê, inclusive, da detonação de explosivos em áreas densamente povoadas, como as redondezas de campos de deslocados. É “precisamente o que está acontecendo hoje no Kivu Norte”, diz Robert Mardini, diretor-geral do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
Fonte: The Economist, ACLED (Armed Conflict Location & Event Data Project)
Em Beni, no Kivu Norte, 97 civis foram mortos pelos jihadistas da ADF apenas no início de março. Entre os dias 4 e 6 de março, 100 mil pessoas foram forçadas a se deslocar das cidades de Rutshuru e Masisisi por conta dos novos avanços do M23, segundo dados das ONU.
Contudo, os congoleses também temem o próprio exército. No relatório sobre 2023, a organização Human Rights Watch apontou uma rotina de crimes de guerra, violência sexual, recrutamento de crianças e pilhagem no leste do país. A responsabilidade recai, inclusive, sobre as Forças Armadas.
Como se não bastasse, o exército do país forjou uma coalizão de milícias, os wazalendo (“patriotas”, na língua suaíli), convertendo ex-rebeldes em aliados no combate ao M23. O resultado é o fortalecimento de grupos criminosos disfarçados sob a máscara da autodefesa local e da identidade étnica. Tudo com aval do presidente Félix Tshisekedi, que os qualificou como “grupos de vigilância”.
O Estado congolês está patrocinando a corrosão de sua própria autoridade, nutrindo milícias “patrióticas” enquanto a desordem se torna perene no leste do país.
Goma, capital do Kivu Norte, é o destino crucial dos que fogem de seus lares no leste do Congo. No primeiro semestre de 2023, meio milhão de deslocados internos acamparam na periferia da cidade, espremida entre o lago Kivu e o vulcão Nyiragongo.
Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), “indignidade” define a situação dos campos de deslocados. Violência sexual, má-nutrição e doenças se disseminam, enquanto os rebeldes do M23 tentam cercar a cidade.
“Desta vez, mesmo que o M23 se aproxime, não temos para onde ir”, afirma Esdras Dogo, instalado no bairro de Lac Vert, nos arredores de Goma, ao jornal francês Le Monde. Deslocado há um ano, Dogo diz que não se moverá novamente, “mesmo que isso signifique morrer aqui”.
Em 2012, o M23 dominou brevemente Goma, e a cidade continua sendo seu alvo. A estratégia atual do grupo é cortar os acessos de Goma ao restante do Congo, deixando-a conectada apenas à vizinha Ruanda. E, se há um país incontornável para compreender o M23 congolês, esse país é Ruanda.
Na primeira (2012-2013) e na segunda (desde 2021) rebeliões do M23, o Painel de Especialistas da ONU sobre o Congo denunciou o apoio de Ruanda aos rebeldes. Paul Kagame, o “homem forte” ruandês há 30 anos, nega sempre, mas replica que os tutsis precisam de proteção face aos supremacistas hutus emboscados no Congo. É o mesmo argumento utilizado pelo M23.
Soldado da missão Monusco, da ONU, observa Goma, em 2013, logo após breve domínio do M23 sobre a cidade. Ao fundo, o vulcão Nyiragongo, um dos mais ativos da África
A cisão étnica tutsi/hutu foi exportada para o território congolês nas Guerras do Congo (1996-2003), em meio aos choques entre supremacistas hutus e tropas ruandesas tutsis. No fogo cruzado, comunidades de imigrantes e refugiados de Ruanda no Congo, antigas ou novas, foram compelidas a reavivar sua identidade étnica.
Estava aberta a trilha para mais rivalidade e mais ódio, agora dentro do Congo.
Os governos congoleses de Joseph Kabila (2001-2020) a Félix Tshisekedi (2020-2024) são acusados pelo M23 de complacência com os génocidaires hutus. O grupo rebelde nutre sua desconfiança pela memória viva do genocídio cometido contra os tutsis em Ruanda, em 1994, mas suas ações tornam o cenário no leste do país ainda mais funesto.
Como o M23 surgiu? Em 2012, ex-rebeldes tutsis se insurgiram contra o governo do Congo, que não estaria cumprindo um acordo de paz firmado em 23 de março de 2009. Assim, batizaram seu levante armado de Movimento 23 de Março (M23). O clima de insurgência facilitou o aparecimento de outros grupos, como as Forças Democráticas Aliadas (ADF), a filial local do Estado Islâmico.
Em 2013, o exército congolês e as tropas da Monusco, a missão de paz da ONU, conseguiram derrotar o M23. Contudo, remanescentes do grupo se refugiaram nas áreas fronteiriças com Ruanda e Uganda, países rivais que costumam manipular o cenário de insegurança no Congo.
Ainda assim, como se explica a rebelião atual do M23, depois de anos de dormência?
Em novembro de 2021, o presidente Tshisekedi se aproximou de Uganda e os dois países iniciaram uma parceria militar contra a amaeça do jihadismo. Paul Kagame, líder de Ruanda, não gostou da presença das tropas de sua rival, Uganda, dentro do Congo. Naquele mesmo mês estourava a nova rebelião do M23. Touché!
Tropas da Monusco, missão da ONU, deixam a base de Kamanyola, Kivu Sul, a primeira no processo de retirada
A ofensiva do M23 no Kivu Norte já conta 30 meses. O grupo se expande admitindo integrantes de várias origens, mesmo com a moldura pró-tutsi. Faz sentido? Sim, no cenário regional onde a identidade étnica domina – e engessa – a política. Além disso, há também discursos nacionalistas, muito convenientes a governos autoritários.
Os congoleses foram às urnas no fim de 2023, num pleito marcado pela perseguição a opositores. Durante a campanha, o presidente Tshisekedi adotou uma feroz retórica anti-Ruanda e escolheu a Monusco como bode expiatório para os problemas no leste. Reelegeu-se prometendo desmobilizar a missão de paz.
A Monusco, criada em 1999 como Monuc, possui 15 mil soldados e é uma das maiores missões da ONU. A retirada completa ocorrerá até o fim de 2024, após um quarto de século atuando no país. Não faltam grupos armados para preencher o vácuo securitário que virá.
A ausência dos capacetes azuis pode dificultar o monitoramento dos direitos humanos no gigante africano, onde a exploração de minérios vitais para a atual indústria 4.0 tem sido brutal e quase ignorada pela comunidade internacional.
É possível se contrapor a esse descaso? Foi o que a seleção congolesa masculina de futebol fez nas semifinais da Copa da África, em jogo contra a anfitriã, a Costa do Marfim, em 7 de fevereiro. Enquanto o hino da República Democrática do Congo ecoava no estádio olímpico de Ebimpé, em Abidjã, cada jogador da seleção congolesa cobriu os lábios com uma mão e apontou os dedos da outra para as têmporas, simulando uma arma de fogo. Perderam o jogo, mas venceram na denúncia ao silêncio global sobre uma guerra esquecida.
Na Copa da África, seleção masculina congolesa de futebol realiza um protesto contra a indiferença global face ao conflito no leste do Congo
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