BURUNDI, A HERANÇA AUTORITÁRIA DE NKURUNZIZA

 

Por Victor Daltoé dos Anjos

(Geógrafo pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor de Geografia em Florianópolis/SC)
9 de novembro de 2020

 

No Burundi, pequeno país densamente povoado da África Oriental, o ano de 2020 não foi marcado apenas pela negligência governamental em relação à pandemia da Covid-19. A morte repentina do presidente Pierre Nkurunziza, em 8 de junho, logo após a vitória de seu candidato em eleições tingidas por perseguições políticas, traz mais um capítulo de incerteza a um país cuja história tem sido pontuada por governos autoritários e graves conflitos entre tutsis e hutus.

Desde 2015, início da última onda de violência política no país, pelo menos 400 mil pessoas já deixaram o Burundi fugindo para países vizinhos. Elas são ameaçadas pelas forças de segurança e, principalmente, pela ala jovem do partido do governo, acusada de agir como milícia. São dezenas de milhares de refugiados instalados nos países vizinhos, como Tanzânia e Congo (RDC).

Poucos meses antes de morrer, Nkurunziza, um fervoroso evangélico, defendeu que o país estava protegido do novo coronavírus pela “graça divina”. Enquanto especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) eram declarados persona nongrata e a Covid-19 era ignorada pelo governo, o presidente afirmava serem os burundianos um “povo abençoado por Deus” para justificar o baixo nível de contágio registrado no pequeno país, apesar de nenhuma medida de isolamento ter sido adotada.

Presidente Nkurunziza

Nkurunziza era ex-jogador de futebol, praticante de vôlei, jovem, sua morte pegou todo mundo de surpresa

Agraciado pela Assembleia Nacional – dominada por seu partido – com a promessa de um farto pagamento de 500 mil dólares quando deixasse a presidência, além do título de “Guia Supremo do Patriotismo”, Pierre Nkurunziza morreu pouco antes de entregar a faixa presidencial ao seu sucessor, depois de 15 anos no poder. Segundo informou o porta-voz do governo foi um súbito ataque cardíaco, mas em plena pandemia todos suspeitam que a Covid-19 seja a verdadeira causa, sobretudo após sua esposa ter sido hospitalizada com sintomas da doença.

Segundo recente relatório da Human Rights Watch, ao longo de 2019 e durante a campanha presidencial ocorrida em maio desse ano e vencida pelo candidato oficial, Évariste Ndayishimiye, assassinatos, intimidação e abusos sexuais foram cometidos contra indivíduos da oposição. Os executores desses atos pertencem à Imbonerakure, a ala juvenil do partido no poder, além da polícia e de agentes do Serviço Nacional de Inteligência (SNR). Esses dados foram confirmados em julho por uma Comissão de Investigação enviada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. A violência política é a maior herança do finado presidente ao novo governo.

 

Hutus e tutsis, conflito internacionalizado

O Burundi é a imagem invertida de Ruanda e suas tragédias. Os dois territórios se tornaram protetorados da Bélgica a partir de 1919. Em ambos, a divisão social entre tutsis e hutus foi transformada em cisão etno-racial, criando uma clivagem social que atravessou de forma sangrenta as histórias políticas desses dois pequenos países, desde o processo de independência até culminar no “genocídio de Ruanda”, em 1994.

A elite tutsi manteve o poder no Burundi controlando a política e o exército, com a maioria hutu sujeita a ciclos de pesada repressão. Ondas de refugiados se direcionavam à Ruanda, onde governo e intelectualidade ecoavam discursos de “poder hutu” e aplicavam pesada perseguição à minoria tutsi local. A escalada das tensões chegou às últimas consequências no início da década de 1990. Enquanto culminava a violência em Ruanda, com o genocídio dos tutsis por milícias radicais hutus, entre abril de julho de 1994, o Burundi mergulhava em uma sangrenta guerra civil (1993-2003), que resultou em cerca de 300 mil mortos. Nos seus estertores, Pierre Nkurunziza ascendeu ao poder.

 

Mapa guerra e minerios

As riquezas minerais da vizinha República Democrática do Congo financiam os grupos em luta pelo poder não só no Congo, mas também nos vizinhos Burundi, Ruanda e Uganda tornando a região palco permanente de violações aos direitos humanos

Fome de poder

O falecido presidente foi líder do principal grupo armado hutu durante a guerra civil, as Forças pela Defesa da Democracia (FDD), que utilizava o território da República Democrática do Congo como base para suas ações contra o exército burundiano. Com o fim formal do conflito, Nkurunziza venceu as eleições de 2005 após uma campanha baseada em  arregimentar os votos da maioria hutu, historicamente marginalizada.

Os membros de seu grupo armado adaptaram-se aos tempos de paz transformando-se em partido, o Conselho Nacional para a Defesa da Democracia (CNDD), que dominava o parlamento e as esferas locais de governo, ou sendo incorporados ao Exército nacional, reorganizado por Nkurunziza. Contando com a fidelidade das Forças Armadas, o líder mobilizou os serviços de segurança e a juventude contra os opositores, em episódios recorrentes marcados por violações aos direitos humanos. Extorsão, estupro, tortura, desaparecimento, intimidação e execução sumária figuravam no rol de práticas comuns em relação aos opositores ao presidente, notadamente quando tutsis.

Nkurunziza foi reeleito em 2010 em disputa eivada de irregularidades, de acordo com observadores internacionais, mas a tensão entre seu governo e a população estourou mesmo em 2015. Nesse ano, o presidente demonstrou a intenção de concorrer a um terceiro mandato, o que era inconstitucional e agredia os acordos de paz que haviam dado fim à guerra civil na década anterior. Entretanto, com o sistema político cooptado pela via das armas e do dinheiro, a insatisfação nas ruas recebeu dura repressão, com a milícia Imbonerakure agindo como o principal vetor de intimidação durante o pleito. As críticas da comunidade internacional começaram a incomodar o autocrata.

Apenas em 2015, pelo menos 1.200 pessoas foram mortas na repressão violenta aos protestos. Segundo relatório de 2016 da Human Rights Watch, naquele ano pelo menos 200 mil cidadãos deixaram o país, principalmente em direção à Ruanda e Tanzânia. Em 2017, o número chegava a 400 mil. O número de burundianos nos países vizinhos constitui uma crise de refugiados importante e muito dependente de doações internacionais para custear os acampamentos.

Milícia juvenil

Membros da Imbonerakure

 

Guerra no Congo e desligamento do TPI

A dureza da repressão impactou a posição de Burundi no cenário internacional, com um progressivo isolamento tanto no sentido das instituições multilaterais globais quanto na esfera regional por iniciativa do próprio líder do país. Este retraimento se intensificou após maio de 2015, quando houve uma tentativa de golpe militar contra Nkurunziza enquanto ele se encontrava na cúpula de líderes da Comunidade do Leste Africano, em Dar-es-Salaam, na Tanzânia.

Desde então, Nkurunziza enxergou os dirigentes vizinhos como responsáveis pela trama que havia sido urdida contra ele. Fricções ficaram mais frequentes, particularmente com Ruanda, piorando as relações já complicadas com o presidente Paul Kagame. No centro da controvérsia entre os dois governantes estava o rico território vizinho da República Democrática do Congo.

Ruanda e Burundi desempenharam um importante papel nas duas guerras do Congo (1997-2003), quando seus exércitos, assim como o de Uganda, promoveram incontáveis violações aos direitos humanos no território limítrofe, saqueando os recursos minerais ali presentes. Nas décadas seguintes, as províncias congolesas dos Kivus, fronteiriças a Ruanda e Burundi, continuaram em tensão permanente, agravada pela presença de rebeldes armados que se opunham aos governos de Kagame e Nkurunziza e utilizavam o território congolês como base para ataque e recuo. Os dois líderes acusavam-se mutuamente de financiarem esses grupos a fim de desestabilizar o oponente, além de organizar manobras militares ilegais no território congolês.

Com a intensificação das críticas da comunidade internacional à repressão estatal no Burundi, o Conselho de Direitos Humanos da ONU organizou, em 2016, uma Comissão de Investigação para coletar informações sobre a escalada na violência. No ano passado, a seção local do órgão foi fechada por ordens do governo burundiano, que já havia anunciado sua desfiliação do Tribunal Penal Internacional (TPI), acusando a organização de orquestrar uma perseguição aos Estados africanos. Foi o primeiro caso de um Estado a deixar o órgão.

Na época, o porta-voz do TPI afirmou que o artigo 127 do seu estatuto “não afeta a jurisdição da corte sobre crimes que foram cometidos quando o país era membro”, e que continuariam sendo investigados. Enquanto isso, o Quênia, único país com o qual Nkurunziza manteve relações amigáveis à medida que se isolava, anunciou a possibilidade de também se retirar do órgão. Atualmente, Uhuru Kenyatta, dirigente queniano, é criticado por ter praticamente concedido à polícia um verdadeiro passaporte para matar na imposição do toque de recolher às grandes metrópoles de Nairóbi e Mombaça, num lockdown que frearia a difusão da Covid-19.

 

Uma nova capital para um regime isolado

Logo antes das eleições de maio de 2020, Nkurunziza afirmou que qualquer comissão de observadores externos que tivesse como objetivo cobrir o pleito deveria passar algumas semanas de quarentena por conta da pandemia, exigência oportunista destinada a impedir um acompanhamento independente da disputa. Mesmo assim, o relatório lançado pela Comissão de Investigação do Conselho de Direitos Humanos da ONU confirma a repressão à oposição durante as eleições, nas quais oficiais do exército teriam forçado, inclusive, o voto de crianças. Dentre os principais executores desses muitos crimes contra os direitos humanos aparece novamente a Imbonerakure.

presidente Évariste Ndayishimiye

O presidente Évariste Ndayishimiye empossado em julho também é acusado de violação de direitos humanos por atos anteriores à chegada ao poder

Como resultado, o candidato do governo, Évariste Ndayishimiye, foi eleito com aproximadamente 70% dos votos. Empossado em junho, o novo presidente já demonstrou representar um governo de continuidade, e no seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, em 24 de setembro, Ndayishimiye acusou atores externos de estarem por trás da tentativa de golpe de 2015 contra Nkurunziza. Para ele, o “Burundi e seu povo” estariam sendo submetidos a uma constante “agressão político-diplomática” por parte de “governos estrangeiros” e sua “diplomacia muscular”.

Para a Comissão de Investigação da ONU, o alto escalão do novo governo está repleto de responsáveis pelas violações aos direitos humanos que o Estado burundiano tem promovido desde 2015, incluindo o próprio presidente, eleito para um mandato de 7 anos. A extensão do mandato presidencial foi definida por reforma constitucional conduzida pelo finado presidente, em 2018, ocasião na qual anunciou a transferência da capital do país para a cidade de Gitega.

Isso porque Bujumbura, a atual capital, se transformou no palco principal de manifestações contra Nkurunziza. A cidade, à beira do Lago Tanganica, é o núcleo da vida econômica do país e sede do poder político desde 1966, quando a monarquia do Burundi foi deposta por um golpe militar que proclamou a república. Gitega, sede da antiga monarquia, situa-se no centro geográfico da nação. Opositores consideram o ato uma tentativa de afastar o centro do poder político das pressões populares, afinal estava em fase de acabamento a obra de um novo Palácio Presidencial, nos arredores de Bujumbura, financiado por capitais chineses.

Agora caberá ao novo presidente decidir onde quer permanecer. Mas, uma coisa é certa, assim como o antecessor, suas opções seguirão apenas os interesses de seu grupo político. Nkurunziza morreu, mas sua herança autoritária sobrevive.

 

 

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