UGANDA, O INVENCÍVEL MUSEVENI

 

Víctor Daltoé dos Anjos

(Geógrafo pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor de Geografia em Florianópolis/SC)
18 de janeiro de 2021

 

Yoweri Museveni acaba de ser eleito pela sexta vez consecutiva presidente de Uganda. Há 35 anos no poder, Museveni não conseguiu se livrar do que parece ser um mal da África: dirigentes que chegam ao poder prometendo romper com as antigas elites corruptas, até se tornarem parte das mesmas. Ao tomar o poder como líder de uma rebelião armada, em 1986, Museveni afirmou: “O problema da África, e de Uganda em particular, não é o povo, mas os líderes que desejam se manter ilimitadamente no poder”. Feitiço contra o feiticeiro, mais de três décadas depois ele continua agarrado à presidência, sendo atualmente o terceiro mais longevo governante africano, atrás apenas de Paul Biya, de Camarões, e Teodoro Obiang Nguema, de Guiné Equatorial.   

Propaganda eleitoral

Propaganda de comício eleitoral de Yoweri Museveni, dezembro de 2020

Tendo submetido o parlamento ao longo do tempo, conseguiu abolir o limite de mandatos, em 2005, e a idade máxima para candidatos, em 2017. Fatalmente, a cada passo para se perpetuar no poder, seu governo se tornou cada vez mais autoritário. No pleito realizado no último 14 de janeiro, Kampala, a capital do país e principal núcleo das forças de oposição, foi intensamente patrulhada pelas forças de segurança, com drones e helicópteros sobrevoando áreas de votação, em um verdadeiro clima de guerra.

A campanha eleitoral foi marcada pela violência contra a oposição, cujas atividades foram brutalmente interrompidas a pretexto de evitar aglomerações e frear a difusão do novo coronavírus. Foi o que aconteceu em 18 de novembro passado, quando pelo menos 54 pessoas foram mortas pela repressão policial a comícios e assembleias da oposição, segundo a Anistia Internacional. Denúncias de prisões arbitrárias e de tortura pelas forças de segurança preocupam especialistas em direitos humanos da Organização das Nações Unidas. A maioria dos observadores internacionais foi impedida de entrar no país, tornando as eleições ainda menos transparentes, com inúmeras acusações de fraude.  

Não foi só nos Estados Unidos que o Facebook decidiu bloquear contas em nome de combater notícias falsas. O mesmo aconteceu com diversas contas relacionadas a Museveni e seus apoiadores semanas antes do pleito. O Ministério da Informação é acusado pela empresa de usar contas falsas e duplicadas para aumentar a popularidade das postagens do presidente. Resultado: na véspera da eleição, um blackout às mídias sociais foi imposto por ordens diretas do governo, em claro ato de censura e violação à liberdade de expressão.

Favela

Mercado da favela de Kamwookya, em Kampala, onde nasceu Bobi Wine

Robert Kyagulanyi (“Bobi Wine”), o principal candidato oposicionista, é um ex-cantor que se apresenta como outsider em um sistema político corrupto e autoritário. No parlamento desde 2017, Wine lidera uma coalizão heterogênea – mas já se intitulou “presidente do gueto” por fazer campanha direcionada aos jovens das periferias urbanas. Porque é nas grandes cidades que se concentra o desafio ao poder do presidente septuagenário.

Em 2016, mesmo vencendo no pleito geral, Museveni amargou derrota nos dois distritos eleitorais mais populosos do país, a capital, Kampala, com quase dois milhões de habitantes, e Wakiso, no subúrbio da capital. Não é à toa que, no apagar das luzes de 2020, as autoridades eleitorais tenham suspendido qualquer atividade de campanha nas principais áreas urbanas a pretexto de frear a pandemia.

 

Um passado violento

O Protetorado de Uganda foi estabelecido pelos britânicos em 1890 como artifício territorial que guardava as nascentes do Nilo Branco. Os pequenos reinos centralizados que dominavam o sul do território, como Buganda, foram privilegiados na montagem do aparato administrativo colonial, enquanto as forças armadas e policiais foram organizadas integrando indivíduos das pequenas chefias tribais do norte. A independência, conquistada em 1962, foi marcada pela incorporação dessa cisão regional norte/sul à política do novo Estado.

No parlamento, o primeiro-ministro eleito foi Milton Obote, com a promessa de governar em nome dos interesses das etnias do norte. Entretanto, Uganda era uma federação: Mutesa II, o kabaka (rei) de Buganda, e representante dos reinos do sul, ocupava automaticamente o cargo de presidente do país. O peculiar sistema federativo-monárquico-parlamentar ruiu em 1966: Milton Obote depôs o kabaka, extinguiu a autonomia interna dos pequenos reinos e reprimiu violentamente manifestações da oposição. Para isso, apoiou-se nas forças armadas, buscando reforçar seu poder pessoal frente às rivalidades regionais.

Idi Amin Dada

Idi Amin Dada, ditador de Uganda de 1971 a 1979, em foto de 1973

Cinco anos depois, há 50 anos, ele foi vítima do mesmo artifício e deposto por um golpe militar. Idi Amin Dada, chefe do exército e antigo membro do regimento colonial britânico, assumiu o controle. Idi Amin ficou conhecido como um dos ditadores mais brutais da história africana pós-colonial. O número de mortos sob o peso do seu autoritarismo é controverso, mas as estimativas não ficam abaixo dos 200 mil. A brutalidade contra a oposição e as violações constantes dos direitos humanos, temperadas pela manipulação de ódio étnico, foram marcas do regime.

Havia método na sua excentricidade. Em 1972, Amin ordenou a expulsão dos mais de 50 mil indianos e descendentes que viviam em Uganda. O espólio dos desterrados, que detinham boa parte do capital comercial do país, foi capturado por representantes do alto escalão do Exército e da rede de corrupção que tinha o ditador no seu centro. A economia ugandesa entrou numa espiral de crise que duraria uma década. Além disso, o ditador manteve o sul do país marginalizado politicamente expurgando das forças armadas apoiadores de Obote, como os acholi, além de alçar ao poder pessoas ligadas à sua região de origem, no noroeste do país. Em 1976, Dada declarou-se presidente vitalício.

Seu governo entrou em decomposição a partir de 1978, em consequência de um desastrado conflito de fronteira com a vizinha Tanzânia. As forças armadas do inimigo, ao lado de um exército de rebeldes ugandeses, entraram vitoriosas em Kampala, em abril de 1979. Idi Amin fugiu para a Líbia, acolhido pelo ditador Muammar Kadhafi, seu aliado do início ao fim.

Após meses de disputas intestinas entre os diferentes grupos em armas, no final de 1980, por meio de uma eleição eivada de irregularidades e denúncias de fraude, Milton Obote retornou à presidência. Seu trunfo era o apoio de Julius Nyerere, presidente da Tanzânia.

 

A Era Museweni

Ao girar mais uma vez a roda da vingança e da represália, Obote incitou o ódio étnico para criar novas cisões nas Forças Armadas, eliminando seus opositores. Foi então que Yoweri Museveni, um jovem oficial que havia participado da derrubada de Amin, iniciou uma rebelião armada, fornecendo o pretexto para a repressão brutal de qualquer voz dissonante. Quanto mais o país mergulhava no caos econômico e social, maior era a violência estatal. Até que em julho de 1985, um golpe militar depôs o presidente, enquanto a capital era dividida entre diferentes autoridades armadas.

Nos meses seguintes, enquanto o Estado se desintegrava, o Movimento de Resistência Nacional (NRM), liderado por Museveni, gradualmente estabeleceu o controle sobre o território ugandês. Em 26 de janeiro de 1986, o líder rebelde tomava posse como presidente de Uganda.

“Ninguém deve pensar que o que está acontecendo hoje é uma mera troca de guardas: é uma mudança fundamental na política de nosso país”, foram as primeiras palavras de Museveni em seu discurso de posse. Contudo, não demorou para que movimentos rebeldes se levantassem contra seu governo, que passou a usar dos mesmos métodos brutais dos antecessores, violando direitos humanos da população civil em geral, tudo devidamente registrado em relatório da Anistia Internacional de 1989. A pena de morte era instrumento constantemente aplicado a soldados suspeitos de serem fiéis aos governos anteriores.

 

Política externa turbulenta

Nos anos seguintes, as forças militares ugandesas passaram a violar os direitos humanos internacionalmente. O papel proeminente de Uganda como fornecedora de armas para os dois lados em conflito na guerra civil do vizinho Sudão do Sul (2013-2020), responsável pela morte de pelo menos 300 mil indivíduos, é apenas o capítulo mais recente dessa trajetória.

Uganda ocupou um papel proeminente, nas últimas décadas, nos principais conflitos da África Central, onde busca expandir sua área de influência a todo custo. Na Primeira Guerra do Congo (1996-1997), Museveni e Paul Kagame, presidente de Ruanda e um antigo companheiro de guerrilhas, patrocinaram a derrubada de Mobutu Sese Seko, da República Democrática do Congo, substituindo-o por Laurent Kabila. Este último, tão despótico quando o ditador que o precedeu, rompeu a antiga coalizão, iniciando a Segunda Guerra do Congo (1998-2003) com seu cortejo brutal de mais de três milhões de mortos. Mesmo com o fim do conflito, a província congolesa de Ituri, rica em recursos minerais e vizinha ao território de Uganda, continua até hoje atormentada pelas hostilidades étnicas entre os hema e os lendu, numa rivalidade patrocinada diretamente pelas forças de Uganda, que ocuparam a área entre 1998 e 2003.

Uganda e Ruanda foram protagonistas do saque do território do vizinho durante as duas guerras do Congo. Aliados inicialmente, os dois presidentes romperam em 1999 em decorrência da disputa por valiosas jazidas minerais de diamante e cobalto. A partir de então, Museveni e Kagame passaram por ciclos de tensão e reconciliação, acusando-se mutuamente de conspiração. Dentre os peões manipulados por ambos, estão os inúmeros grupos de rebeldes armados ruandeses e ugandeses que atuam no leste do Congo-RDC, tornando endêmica a violência nas províncias congolesas do Kivu do Norte e Kivu do Sul.

Mapa Uganda e vizinhos

 

A “democracia não-partidária”

Ao chegar à presidência, em 1986, Museveni inaugurou sua “democracia não-partidária”: sob o pretexto de evitar dissensões de base étnica, colocou imediatamente os partidos na clandestinidade e prometeu que logo organizaria eleições. A política funcionaria através de “movimentos”, e o de Museveni, o Movimento de Resistência Nacional, tem maioria no parlamento desde então. O Exército de Resistência Nacional (NRA), seu antigo braço militar, fundiu-se com as forças armadas, assegurando-se assim a fidelidade ao líder que envelhecia.

Dez anos depois ocorreram novas eleições, vencidas por ele com larga margem de votos. O multipartidarismo foi restabelecido apenas em 2005, principalmente por conta da pressão internacional, quando Museveni já estava no terceiro mandato. Kizza Besigye, ex-oficial do exército que rompeu com o regime em 1999, se tornou o principal candidato da oposição por uma década e meia. Preso em todas as campanhas das quais participou, Besigye desistiu de concorrer à eleição desse ano, abrindo espaço para a candidatura de Bobi Wine.

Logo após as mais de 50 mortes provocadas pela violência policial em novembro, o governo intensificou a vigilância eletrônica sobre a população urbana: duas mil câmeras de segurança foram implantadas nas áreas públicas de Kampala. O negócio, que custou ao país mais de US$ 120 milhões, conta com a tecnologia da gigante chinesa Huawei e inclui o reconhecimento facial dos monitorados. Segundo as fontes oficiais, a medida serviria para coibir a criminalidade, mas a oposição aponta a atitude como uma forma evidente de intimidação.

A primeira eleição de 2021 mostra as armadilhas das quais os governos autoritários estão dispostos a lançar mão para vencer: manipulação de redes sociais, manipulação da pandemia por meio da imposição de lockdowns, manipulação de ferramentas de vigilância eletrônica. Enquanto isso, em Uganda, nada muda.

 

 

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