ÁFRICA: ENTRE O JIHADISMO E OS NEGÓCIOS

 

Elaine Senise Barbosa

15 de agosto de 2022

 

“A África será o campo de batalha da jihad (ou jihadismo) pelos próximos 20 anos e substituirá o Oriente Médio”, afirmou o consultor francês, Olivier Guitta, da GlobalStrat Risk Consultancy em entrevista à BBC. De fato, os números demonstram claramente o crescimento exponencial da violência motivada não pelo velho tema da rivalidade étnica, mas pela atualíssima questão da disputa religiosa. Em particular, a rivalidade entre grupos ultrarradicais islâmicos, que promovem o jihadismo. 

Os protagonistas são a Al-Qaeda e o Estado islâmico (ISIS), que aparecem associados a diversos subgrupos regionais, como o Estado Islâmico no Grande Saara (ISGS), Jamaat Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), Al-Shabaab e Boko Haram.

Mapa Sahel

Fonte: BBC

No vasto continente africano, são as populações da região do Sahel, a faixa geoclimática que separa o deserto do Saara das savanas tropicais, que estão expostas cotidianamente à brutal violência desses homens em armas. Para tentar reduzir os danos, a ONU mantém tropas em diferentes pontos do Sahel, num total de 14 mil soldados. 

Os países da faixa do Sahel que tem tido mais problemas com o jihadismo são Chade, Níger, Mali, Burkina Faso e Mauritânia. Mas o problema também ocorre no Sudão (um dos primeiros países a abrigar a Al-Qaeda) e no norte de Moçambique.  

As disputas nesses países estão se tornando bastante complexas, dado o número de interesses em disputa. Não se trata apenas de “governos versus insurgentes”. As diferenças e rivalidades entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico impedem a unificação desses grupos regionais, que competem entre si. Além disso, grupos formados localmente, às vezes apenas pelo banditismo, já entenderam que ganham mais força ao se declararem alinhados a uma das duas “inimigas globais”.   

Fonte: BBC

Existem, ainda, os interesses das potências estrangeiras. No caso, destacam-se quatro atores: França, EUA, China e Rússia.

A França, apesar de menor influência global, foi a metrópole colonial da África Subsaariana até a década de 1960 e procura manter sua influência na região. Os EUA continuam a chamada “guerra ao terror”, mas interessa-se cada vez menos em sustentar frentes de guerra externas. Já a China, com imensos investimentos na extração de recursos naturais e infraestruturas, não quer ver seus interesses prejudicados por conflitos civis, sobretudo de tipo religioso.

E, finalmente, a Rússia, cuja política para a África nos últimos anos tem o objetivo de ganhar influência por intermédio de empresas russas que oferecem armas, munições, treinamento, pessoal, desvio de riquezas para mercados ilegais – ou seja, tudo o que governos frágeis precisam para se manterem no poder. Hoje, os mercenários do Grupo Wagner operam como representantes informais da política africana de Moscou.

 

A chegada do jihadismo

O jihadismo não deve ser confundido com a doutrina islâmica, exceto como deformação. O jihadismo é uma ideologia fundamentalista, que afirma que fazer a “guerra santa” (jihad) em nome do Islã é uma obrigação dos fiéis tão importante quanto rezar voltado para Meca. A guerra contra os “infiéis” é condição fundamental para restaurar a unidade da comunidade de fiéis, que deverão viver sob as leis da sharia.

A Al-Qaeda, que havia perdido espaço no Afeganistão após a invasão dos EUA em 2001, e o Estado Islâmico, derrotado no Iraque em 2017, estabeleceram pontes com grupos jihadistas no norte da África que se opunham a governos marcados pela corrupção e acusados de serem pró-Ocidente. E existem governos muçulmanos que dão abrigo a esses “combatentes da fé”. O Sudão, primeiro país a abrigar Osama bin Laden e a Al-Qaeda, manteve uma longa guerra civil contra as populações animistas da região meridional (que se tornou o Sudão do Sul).

Boko-Haram-e bandeira do isis

Combatentes do nigeriano Boko Haram, com bandeira árabe do Estado Islâmico

O Mali sofreu os efeitos da queda do ditador Muammar Kadhafi na vizinha Líbia, em 2012, em consequência da Primavera Árabe. Os mercenários tuaregues, empregados nas milícias do ditador, voltaram ao Mali determinados a lutar pela independência do norte do país, onde vivem. Com as armas de Kadhafi, formaram uma aliança com a Al-Qaeda: a Coordenação dos Movimentos Azawad (CMA). Juntos, eles controlaram a região setentrional e se tornaram uma ameaça para o resto do país. Já a desorganização do Estado na Líbia transformou o país em rota imigratória no Mediterrâneo e santuário para grupos ilegais.   

Apesar de falarem igualmente em reunificar o Islã, Al-Qaeda e Estado Islâmico divergem de modo importante em suas táticas. A Al-Qaeda e suas afiliadas recusam a violência indiscriminada contra civis muçulmanos e buscam obter a lealdade de pessoas explorando a insatisfação com seus governos ou queixas regionais e étnicas. Já o Estado Islâmico recorre propositadamente à violência contra muçulmanos para se impor pelo medo. Em comum, as duas organizações compartilham o ódio por governantes não-religiosos apoiados pelo Ocidente.

A chegada do Estado Islâmico à região, associado a grupos locais, está intensificando os conflitos e a violência contra os civis, provocando deslocamentos de comunidades inteiras. No fim, todos os envolvidos cometem abusos contra populações indefesas, mas apenas os jihadistas atacam escolas, especialmente as frequentadas por meninas, para exigir resgates e para privá-las do acesso à “cultura corrupta” do Ocidente, além de forçá-las ao casamento.

Mali_ refugiadas e seus filhos

As mulheres são as maiores vítimas dos conflitos. O ataque e fechamento de escolas é um crime contra a humanidade

 

No tabuleiro global

Em 2013, a pedido do governo do Mali, que enfrentava uma rebelião armada, a França enviou 5 mil soldados ao país, na Operação Barkhane. Contudo, nos últimos oito anos a presença francesa se tornou impopular junto ao governo e à população.

Primeiro porque a França se recusou a negociar qualquer acordo de paz com grupos islâmicos, ideia defendida por muitos malianos. Segundo, porque o atual governo, formado por uma junta militar que chegou ao poder via golpe de Estado em agosto de 2020, não aceitou a pressão de Paris para que sejam realizadas eleições o quanto antes. Quando o embaixador francês manifestou a insatisfação de seu governo, foi expulso do Mali.

Sem perder a oportunidade, o presidente francês Emmanuel Macron aproveitou para anunciar a retirada de mais da metade das tropas mantidas no país africano. A brecha permitiu ao governo militar malinense acusar Macron de abandonar um antigo aliado, justificando assim a aproximação com o Grupo Wagner, para ajudar a combater grupos jihadistas. Fato confirmado pelo chanceler russo Sergei Lavrov: o Mali “recorreu a uma empresa militar privada da Rússia” para ajudar a combater grupos jihadistas.

A aproximação levou a ministra das Forças Armadas da França, Florence Parly, a afirmar ser impossível “coabitar com mercenários”. Ato contínuo Macron anunciou o fim da Operação Barkhane e a retirada do restante das tropas do Mali. Enquanto isso, a Al-Qaeda no Sahel ameaça bloquear a capital, Bamako, e intensificar os ataques aos comandos militares caso o Grupo Wagner permaneça no país.

De acordo com reportagem da BBC, há poucas semanas um relatório da Human Rights Watch denunciou o assassinato de 200 pessoas na vila de Moura, no Mali, considerada um reduto da Al-Qaeda. Os acusados pelas execuções sumárias são soldados do exército, com a colaboração de agentes do Grupo Wagner. O governo malinense nega a parceria, mas não o massacre. 

Conflito jihadistas fronteira Mali-Níger

Combatentes jihadistas na fronteira entre o Mali e o Níger. A fragilidade dos Estados facilita a circulação das milícias

O bloco regional da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Ecowas) denunciou a aproximação entre governos e empresas de segurança privada. Cherif Mahamat Zene, ministro das Relações Exteriores do Chade, empenhado em impedir a propagação de grupos islâmicos na África Ocidental, afirmou que os rebeldes responsáveis pela morte do ex-presidente Idriss Deby, no ano passado, foram treinados pelo Grupo Wagner. 

A continuidade da colaboração entre os governos e a milícia privada ligada a Moscou marcará uma grande vitória dos interesses militares da Rússia na África Ocidental e um revés estratégico para o Ocidente. Para as populações locais, submetidas à violência constante de países onde o Estado é quase uma ficção, resta sofrer em silêncio: as crises na África não costumam atrair a atenção das plateias globais. 

 

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