AS MINAS DO CONGO: HÁ SANGUE EM SEU SMARTPHONE

19 de novembro de 2018

 

Você imagina que seu smartphone de última geração possa estar ao mesmo tempo conectado à rede de comunicação global do século XXI e ao trabalho de crianças de seis anos em minas, como na Revolução Industrial do século XVIII?

Elodie é uma jovem de 15 anos que trabalha em uma mina de cobalto na República Democrática do Congo (RDC). Ela carrega nas costas o filho de dois anos e ambos passam o dia inalando poeira mineral que desencadeará uma série de problemas pulmonares no curto prazo. Mas Elodie não tem a quem recorrer: seus pais morreram trabalhando naquelas mesmas minas. E, como eles, ela passa o dia inteiro curvada, cavando com uma pequena pá em busca das pedras esverdeadas de heterogenita, até que preencha uma sacola. Levará o dia todo para concluir a tarefa, que renderá cerca de U$ 0,65. É com essa renda diária que Elodie e o filho sobrevivem. Na ponta oposta dessa cadeia produtiva estamos nós e nossos aparelhos.

 

Revolução tecnológica

No início era o verbo. Celulares eram telefones portáteis do tamanho de um tijolo, carregados nas cinturas como coisa fina. Depois foram drasticamente reduzidos de tamanho enquanto suas funções se multiplicavam. Smartphones, tablets, carros elétricos: a revolução tecnológica também está na portabilidade dos equipamentos.

Parte dessa mudança é devida às baterias de lítio – minúsculas peças capazes de concentrar muita energia e fornecê-la de modo constante, sem produzir fumaça, ao contrário das baterias tradicionais feitas de chumbo-ácido e muito poluentes. É um novo padrão tecnológico. Vende bem dizer que é “verde”. De seu desenvolvimento depende a grande aposta automobilística para a próxima década: o carro-elétrico.  O cobalto também é utilizado na fabricação de motores a jato, turbinas a gás e aço magnético.

Acontece que a mágica da energia limpa começa com o minério de cobalto extraído nas minas do Congo por jovens como Elodie e crianças de até seis anos.

Existem dois Congos, a República do Congo, a oeste, de colonização francesa, conhecida como Congo Brazzaville, e a República Democrática do Congo (RDC), colonizada pelos belgas, e chamada, entre 1971 e 1997, de Zaire

Existem dois Congos, a República do Congo, a oeste, de colonização francesa, conhecida como Congo Brazzaville, e a República Democrática do Congo (RDC), colonizada pelos belgas, e chamada, entre 1971 e 1997, de Zaire

 

O mercado mundial de cobalto

Cerca de 60% do cobalto negociado no mercado mundial é extraído das minas da República Democrática do Congo. Os preços desse minério subiram significativamente nos últimos anos, bem como a produção. Analistas do Fitch Group estimam que as 66,2 mil toneladas mineradas em 2016 chegarão a 78,9 mil toneladas em 2020 – uma média de crescimento anual de 4,6%.

Os beneficiários de toda essa riqueza são empresas estrangeiras, especialmente chinesas, que obtêm lucros imensos. Para os congoleses, a atividade meramente extrativista deixa rastros de destruição ambiental e torna-se uma armadilha social, pois a maioria da população não consegue escapar do ciclo de pobreza reiterado geração após geração. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Congo ocupa o último terço no ranking mundial e, nas áreas de mineração, os indicadores são ainda piores.

 

 

Cobalto do Congo

 

O relatório da Anistia Internacional

Existem duas categorias de mineiros no Congo: os regularmente empregados pelas mineradoras e os creuseurs (do francês, escavadores), definidos como “mineiros artesanais”. Estes últimos trabalham por conta própria, sem equipamentos de segurança, descalços; cavam com as mãos ou com alguma ferramenta básica, às vezes alugada. As crianças esgueiram-se pelos túneis mais estreitos e menos oxigenados. A estimativa atualmente disponível é de 255 mil creuseurs, dos quais umas 35 mil crianças – algumas com seis anos de idade. Essa multidão de formiguinhas é responsável pela produção de 20% do cobalto exportado pelo país, segundo relatório produzido pela Anistia Internacional.

O único local onde os creuseurs podem vender o minério extraído diariamente são as “casas de compra”, também operadas por chineses. Nelas, as sacolas são pesadas e a pureza do metal é avaliada com um aparelho chamado Metorex. Os creuseurs geralmente desconfiam do resultado apresentado e gostariam de ter um Metorex para comparar. No fim, eles receberão algo entre um e dois dólares para sustentar suas famílias.

A Anistia Internacional elaborou um minucioso estudo, em 2016, descrevendo como as relações produtivas existentes nas minas de cobalto estão repletas de violações de direitos básicos, que acabam sendo “apagadas” pela dinâmica de hiper-especialização e terceirização da produção, até chegarem aos equipamentos de empresas como Apple, Vevo, Motorola, Samsung, Volkswagen, entre outras. Essas fabricantes de alta tecnologia compram as baterias de lítio já prontas, eximindo-se de qualquer responsabilidade sobre abusos, enquanto anunciam que não exploram trabalho infantil em seu marketing de “valores”. Diante das reações de surpresa, falsa ou genuína, das direções dessas companhias, a Anistia Internacional provocou: “As empresas têm a responsabilidade de provar que não estão lucrando com a miséria dos mineiros que trabalham em condições terríveis na RDC”.

Na sociedade do capitalismo globalizado, os consumidores começam a entender seu poder de pressão sobre as marcas que consomem. As empresas, por sua vez, baseadas em valores abstratos de “imagem”, buscam estabelecer parâmetros nos quais o ganho de capital não esteja relacionado ao trabalho infantil ou à destruição do meio ambiente. Empresários e investidores sabem do impacto terrivelmente negativo que causam denúncias dessa natureza e quantos milhões de dólares isso pode custar. Nesse sentido, quanto mais internacionalizada for a empresa, maior a tendência à autorregulação e aprimoramento de controles. Por fim, a própria conscientização do consumidor sobre as formas de produção dos bens que consome e deve levá-lo, também, a rejeitar as mercadorias relacionadas a violações éticas e de direitos humanos.

Pouco mais de um ano depois do relatório, a Anistia Internacional catalogou as reações das empresas, que não foram especialmente animadoras. Veja abaixo:

 

Fonte: Anistia International

 

Iniciativas governamentais são outro instrumento valioso, e bem antigo, para o ordenamento do mercado. Nos EUA, por exemplo, uma lei de 2010 exige que as empresas ali sediadas verifiquem a procedência de todo o estanho, tântalo, ouro e tungstênio extraídos na RDC, a fim de garantir que eles não tenham saído de minas controladas por milícias, onde as violações de direitos humanos são cotidianas e parcialmente financiadas pela exploração desses minérios. Atualmente, muita gente defende que o cobalto seja incluído nessa lista.

A Anistia Internacional concentra sua campanha nas corporações sediadas em países ocidentais. No processo, tende a minimizar as responsabilidades de dois atores cruciais, que atuam localmente: as companhias de mineração chinesas e o governo do Congo. As primeiras gerem diretamente a produção de cobalto tingida pela mancha do trabalho infantil. O segundo omite-se do dever de proteger sua população das violações flagrantes de direitos humanos.

 

A China na África

O preço do cobalto subiu 300% entre 2016 e 2018, mas nada mudou na vida dos moradores de Kasulo, um bairro na área das minas de Kolwezi. Lá, jovens como Arthur, de 16 anos, se unem a grupos de creuseurs para tentar achar minas não descobertas ou exploradas pelas empresas mineradoras. A equipe clandestina de Arthur escavou um túnel vertical de 26 metros de profundidade durante dois meses, até atingir um veio de heterogenita. Agora, eles descem todos os dias em direção à escuridão de túneis estreitos em busca de cobalto.

O risco de morte é perene e muitos túneis já colapsaram. Se tudo der certo, ao final de cada dia Arthur terá uma sacola do minério para vender em uma “casa de compra” por algo em torno de US$1,80. Uma parte desse valor ficará com a autoridade local, que finge não ver o trabalho de menores de idade nas minas.

Em Kasulo existem dezenas de “casas de compra” que carregam caminhões com as sacolas de minério trazidas pelos creuseurs. Uma extensa reportagem publicada pelo The Washington Post seguiu um comboio desses caminhões até a entrada do pátio cercado da Congo Dongfang International Mining, a principal empresa que opera na RDC, subsidiária de uma das maiores produtoras de cobalto do mundo, a Zhejiang Huayou Cobalt.

O cobalto de fontes artesanais e industriais é misturado antes de ser exportado pelos portos de Dar es Salaam (Tanzânia) e Durban (África do Sul), rumo à China. Lá, o minério é vendido a três fabricantes de componentes para as baterias de lítio: as locais Ningbo Shanshan e Tianjin Bamo e a sul-coreana L&F Materials. Estas empresas, por sua vez, fornecem os componentes aos produtores das baterias utilizadas nos aparelhos de grandes e pequenas marcas.

O cobalto do Congo é parte do cenário mais amplo da projeção econômica da China na África. No vácuo deixado pela retração das superpotências da Guerra Fria, a nova potência asiática incluiu o continente na sua agressiva política de investimentos internacionais. A China enxergou nos países africanos oportunidades imensas para a produção de alimentos e, especialmente, combustíveis e matérias-primas para a sua economia industrial. A carência de leis de proteção dos trabalhadores, o descaso com os impactos ambientais dos investimentos empresariais e a corrupção crônica de governos ajudaram a moldar as relações entre as empresas chinesas e os países africanos.

Parcela da China em exportações africanos, as minas do Congo são a maior receita do país

             Fonte: Tomoo Marukawa, Universidade de Tóquio (out/2018)

Exportação de minério das minas do Congo e outros países africanos para a China

            Fonte: Tomoo Marukawa, Universidade de Tóquio (out/2018)

A expressão “imperialismo econômico” talvez descreva apropriadamente o fenômeno. Empresas chinesas controlam de tal maneira a economia de certos países africanos que a ideia de boicotes contra elas provoca calafrios em observadores isentos. Uma retração significativa dos investimentos chineses no continente teria efeitos econômicos e sociais dramáticos – e imediatos. Nas minas do Congo, uma ruptura brusca atingiria centenas de milhares de pessoas, que dependem diretamente do trabalho nas minas.

 

São bastante conhecidas as implicações do modelo econômico monoexportador ao qual estão presos diversos países africanos. A dependência das exportações de um “produto-rei” ou de um grupo de commodities coloca as economias nacionais à mercê de drásticas flutuações de preços determinadas por fatores globais (concorrência, superprodução, recessão, modernização tecnológica). No passado, o Brasil e outros países da América Latina experimentaram as dramáticas implicações de crises cíclicas de preços de bens primários. Hoje, diversos países africanos dependem profundamente do comportamento do mercado mundial de commodities – e a China é o elo que conecta uns ao outro.

Na China inexistem liberdades de organização sindical e de greve. Os direitos dos trabalhadores chineses são tão limitados quanto os direitos civis e políticos em geral. Não é de admirar que, na África, as empresas chinesas violem os direitos trabalhistas mais elementares e participem de um sistema de exploração em massa do trabalho infantil. A campanha da Anistia Internacional, porém, praticamente não toca na China. E, contudo, o sucesso dela depende mais de mudanças de conduta das empresas chinesas que controlam diretamente as minas de cobalto que de eventuais iniciativas das empresas ocidentais que utilizam baterias de lítio.

 

Estado Nacional e direitos humanos na RDC

O pequeno Paul tem pouco mais de dez anos e reclama das dores musculares e da tosse incessante; aos gritos, diz que já se acostumou. Ele trabalha mais de dez horas por dia em uma mina e recebe um dólar e meio por jornada. Paul nunca foi à escola porque não existem escolas na sua região.

“É verdade que há crianças nessas minas”, afirmou em entrevista o governador da província de Kolwezi, Richard Muyej. Ele também reconheceu o problema da poluição provocada pela mineração, com alto índice de óbitos. A toxicidade aparece por todos os lados: o solo e a água estão contaminados pelos dejetos da indústria mineira e o ar é uma densa névoa marrom. Na vila mineira de Kasulo, onde não há serviço de abastecimento de água para os moradores, as pessoas simplesmente recolhem essa água poluída e a transportam em baldes para casa. E assim, num ciclo inescapável, repete-se o padrão de miséria, doenças e elevadas taxas de mortalidade.

Como explica o ativista mineiro Jean Pierre Muteba, presidente da New Dinamics Organization, de Lubumbashi: “Kolwezi é uma cidade mineira. Originariamente, fazia parte da Union Minière of Haut-Katanga, que é o ancestral da Gécamines, quando ainda era Gécamines. Praticamente três quartos da população de Kolwezi dependia dela. Então, assim que o governo assumiu, por volta de 2000, começou um desmantelamento da Gécamines, cedendo depósitos aos chineses e libaneses. Foi quando começou a haver demissões de trabalhadores dessa mina industrial. Fomos empobrecidos e todos nos arredores de Kolwezi também. É por isso que mulheres e crianças hoje trabalham [como creuseurs] nas minas: eles foram empobrecidos pelo governo.

“Eles foram empobrecidos pelo governo” – eis um tema crucial. A antiga, tradicional narrativa de viés terceiro-mundista atribui todos os males que afetam os países africanos ao imperialismo – isto é, às antigas potências coloniais. A culpa é, sempre, dos outros e do passado. Contudo, o ciclo das independências africanas praticamente foi concluído na década de 1960 – ou seja, há mais de meio século. Os graves problemas que atingem vários desses países são resultado de decisões adotadas no presente, por autoridades políticas de Estados soberanos. A narrativa estabelecida oculta essa circunstância fundamental, absolvendo os governos e as elites africanas.

De certo modo, a campanha da Anistia Internacional move-se na jaula delimitada pela narrativa terceiro-mundista. Nela, não é só a China que aparece como um detalhe quase irrelevante. O governo congolês, sócio político das empresas chinesas, virtualmente desaparece da história. Mas as violações de direitos trabalhistas e o trabalho infantil nas minas de cobalto só podem ocorrer porque têm o amparo do governo e, em geral, das instituições estatais.

Joseph Kabila preside a RDC desde 2001. O presidente, seus familiares e o círculo palaciano que o acompanha formaram vultosos patrimônios ao longo desse extenso período. As rendas oriundas da mineração de cobalto estão entre as principais fontes de enriquecimento da elite palaciana, que abrange os chefes das forças armadas e das forças policiais. Mas a campanha da Anistia Internacional não insiste numa indagação decisiva: por que os agentes de Estado não atuam efetivamente para reprimir o trabalho infantil nas minas controladas pelas empresas chinesas?

 

Mineiros artesanais lavam os minérios antes de vendê-los. É uma atividade comum para as mulheres e crianças. Marca de um modelo econômico baseado em violação de direitos humanos e na degradação do meio ambiente.

Mineiros artesanais lavam os minérios antes de vendê-los. É uma atividade comum para as mulheres e crianças. Marca de um modelo econômico baseado em violação de direitos humanos e na degradação do meio ambiente

 

As campanhas internacionais concentradas quase exclusivamente na responsabilização das empresas ocidentais conferem prestígio às entidades de direitos humanos, convertendo-as em mediadores de decisões comerciais das grandes corporações. Contudo, tem eficácia prática muito limitada, pois não tocam nos agentes que têm o poder econômico e político direto sobre as minas de cobalto.

Não é errado cobrar iniciativas civilizatórias de empresas como a Apple ou a Samsung. Todavia, a abertura e regularização das minas, as leis trabalhistas, o combate ao trabalho infantil, a escolarização obrigatória, o saneamento básico – tudo isso depende essencialmente das relações entre a RDC e as empresas mineradoras chinesas. A política de direitos humanos esvazia-se de sentido quando desiste de criticar os Estados e os governos para operar preferencialmente na esfera do mercado e do consumo.

 

SAIBA MAIS

Audio-visual

  • Whose wealth? Cobalt from Congo
    (01/05/2016) – SOMO Researcher
    Reportagem de 12 minutos, aborda a mineração do cobalto do ponto de vista das relações com as grandes companhias mineradoras. Os depoimentos evidenciam a colaboração dos governantes congoleses com a exploração desenfreada da atividade mineradora.
  • Blood, sweat and batteries: inside Congo’s Cobalt Mines
    (24/08/2018) – Fortune Magazine
    Produzido com o apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting
    Reportagem de quase dez minutos sobre o cinturão de cobre e cobalto da África.  Excelente material didático.

 

 

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