A Anistia Internacional publicou, em 28 de março, seu relatório anual “O Estados dos Direitos Humanos no Mundo (2022/2023)”. (Para ler o relatório em português, selecione a opção “língua” rolando a barra para baixo.)
A publicação reúne dados sobre 156 países e aponta casos específicos que configuram violações aos direitos humanos – de cerceamento da liberdade de expressão a perseguições etno-raciais. Este último relatório destacou a guerra na Ucrânia, considerada pela Anistia Internacional como a maior fonte de crimes contra os direitos humanos no período analisado. A repressão às mulheres e à sociedade civil no Irã também foi sublinhada.
De modo mais geral, o relatório mostra que dois elementos marcaram o último ano: a multiplicação dos protestos, como expressão da luta das sociedades civis por direitos, e as crescentes migrações, como resultados de guerras, perseguições étnicas e raciais e, sobretudo, miséria. “Nunca tantas pessoas estiveram em fuga no mundo quanto em 2022. No mesmo período, milhões saíram às ruas por seus direitos”, declarou o secretário-geral da Anistia lnternacional na Alemanha, Markus N. Beeko.
O Irã promove bárbara repressão contra manifestantes que protestam contra a obrigação do uso do hijab pelas mulheres
Mas a leitura atenta do documento pode incluir um terceiro elemento, repetido diversas vezes: incoerência ou duplo padrão. É assim que as instituições ocidentais são caracterizadas em muitas situações, revelando que a multiplicidade de olhares e vozes chegou à própria Anistia Internacional. Por exemplo, nota-se a celeridade nas condenações – corretas – à invasão da Ucrânia pela Rússia e o silêncio sobre o aumento da violência de Israel contra os palestinos ou da China contra os uigures.
Certamente essas ambiguidades, pautadas por questões de realpolitik, criam a ideia equivocada de que a defesa dos direitos humanos não é um valor absoluto, mas uma máscara para interesses ocultos. Hoje essa ambiguidade é explorada por líderes populistas, que denunciam o que qualificam como “discurso dos direitos humanos” como uma forma cínica das potências ocidentais continuarem a interferir na soberania e autodeterminação dos povos.
No mundo todo, cenários de crise econômica provocaram um aumento vertiginoso do custo de vida. De um lado, tais cenários aumentaram a pressão sobre os serviços de saúde e outros tipos de assistência social, evidenciando as desigualdades sociais e como elas atingem as pessoas de modo desproporcional em função de origem, gênero, raça e etnia. Por outro lado, o aprofundamento das crises e a incapacidade dos diferentes governos em apresentarem soluções ajuda a alimentar expectativas em relação a um Estado forte (que combata a violência) e provedor (que combata a pobreza), o que ajuda a compreender o ambiente favorável a discursos políticos radicalizados.
Nos países do continente americano, os problemas descritos pelo relatório enquadram-se em dois tipos: aqueles relacionados às questões de direitos civis (liberdade de imprensa, violência de gênero, violência policial e carcerária) e os relacionados a disputas ambientais, que envolvem grandes áreas, afetam grupos coletivamente e, portanto, têm como atores importantes agentes públicos e políticos.
Membros da Guarda Nacional Bolivariana da Venezuela constituem uma verdadeira milícia, ultraviolenta e acusada de inúmeras execuções extrajudiciais
A Venezuela apresenta uma das situações mais graves, pois em um período de nove meses as forças de segurança efetuaram 488 execuções extrajudiciais. Relatórios da Missão de Averiguação da ONU sobre a Venezuela destacaram a manipulação do sistema judicial para proteger a polícia e os militares responsáveis por violações da justiça e identificaram uma cadeia de comando que ligava as pessoas suspeitas no caso ao governo de Nicolás Maduro. O Gabinete do Procurador do TPI abriu uma investigação contra Maduro por crimes contra a humanidade na Venezuela, a primeira investigação desse tipo na região.
A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são pilares dos regimes democráticos. No entanto, os jornalistas são um dos grupos mais atingidos pela violência, que passa por assassinatos, coações, campanhas de difamação e processos infundados que visam a dilapidar financeiramente os jornalistas.
Países como México e Colômbia registraram elevado número de assassinatos de jornalistas. Na Venezuela e Nicarágua os governos fecharam diversos órgãos de imprensa e revogaram os direitos jurídicos de organizações civis. Na Bolívia e Guatemala os governos estão usando de processos jurídicos.
São casos nos quais as violações de direitos e crimes são cometidos por agentes do Estado, o que por si só já revela parte da natureza do problema: a desigualdade com a qual os cidadãos desses países são tratados. No caso da violência policial, ela é particularmente letal na relação com as camadas mais populares, que por sua vez é composta por grupos historicamente discriminados pelo racismo. Os governos em toda a região anunciam louváveis medidas de controle, mas a prática é marcada pela falta de fiscalização e de compromisso em punir os faltosos.
O relatório aponta agentes policiais como responsáveis por um elevado número de casos de abusos e violação de direitos e afirma que a impunidade arraigada é uma característica dos sistemas de justiça em todo o continente. Operações de segurança em bairros de baixa renda apresentam alto número de vítimas civis, incluindo crianças, sem que os responsáveis sejam punidos. Destaques negativos para Argentina, Colômbia, México, EUA, República Dominicana e Venezuela.
A desproporção com a qual pessoas negras e brancas sofrem abordagem policial, e mais ainda, a diferença entre o número de mortos feitos por agentes de segurança pública é inquestionável. As operações policiais realizadas no Brasil, em particular no estado do Rio de Janeiro, mostram um saldo estarrecedor de pessoas mortas aleatoriamente, com processos que se arrastam e ausência de punições.
Nos Estados Unidos, os dados públicos mostram que pessoas negras são muito mais afetadas pelo uso de força letal pela polícia. No país de George Floyd, o Senado não aprovou a lei que levava o seu nome, já votada na Câmara dos Deputados em 2021, sobre as práticas de policiamento e prestação de contas dos agentes da lei.
No Brasil de Jair Bolsonaro, agentes da Polícia Rodoviária Federal se acharam no direito de asfixiar até a morte o cidadão Genivaldo de Jesus. Os criminosos só foram presos cinco meses depois, devido à repercussão internacional do caso
Na maioria dos países do continente, os sistemas prisionais orientam-se por uma visão discriminatória e punitivista sobre os apenados. A superlotação crônica prosseguiu nas prisões do Brasil, Chile, El Salvador, Equador, Uruguai e Venezuela e demonstrou, durante a pandemia, sua letalidade eugenista.
Destaque para os 35 muçulmanos que o governo dos Estados Unidos ainda mantêm detidos arbitrariamente na Base Naval de Guantánamo, em Cuba, em nome da segurança nacional. São prisões extremamente prolongadas, sem acusações formalizadas, que violam leis internacionais, direitos dos presos e regras processuais básicas.
A crescente conscientização das mulheres sobre as questões de gênero e seus direitos, aliada a uma tipificação jurídica mais adequada, reflete-se no aumento do número de denúncias sobre crimes de gênero em todo o mundo.
Na América Latina, a tradição patriarcal colocou a mulher como pessoa submissa, quase propriedade do pai ou do marido, e também de namorados e chefes de trabalho. O México, por exemplo, registrou o estarrecedor volume de 858 feminicídios, enquanto os governos locais e nacional continuam a estigmatizar feministas e defensoras dos direitos humanos que protestam contra a inação do governo frente à violência de gênero.
As mulheres têm sido vítimas de um número chocante de casos de violência de gênero, mas autoridades mexicanas, incluindo o presidente Andrés López Obrador, preferem desdenhar da situação
Para as pessoas da comunidade LGBT, ao tratamento digno segue incerto. Muitos países do continente ainda não reconhecem legalmente seus direitos. O Brasil, pelo 13º ano consecutivo, encabeça a lista de país mais perigoso para pessoas transgênero, com mais de uma centena de assassinatos. Colômbia, Guatemala, Honduras e México são outros países com muitos casos de assassinatos.
Questões ambientais e disputas fundiárias motivam assassinatos e perseguições a ativistas ambientais demonstrando, em muitos casos, estreita relação com a liberdade de expressão. A América Latina respondeu por 75% desses crimes, com casos na Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Peru e Venezuela.
As disputas que atualmente opõem governos, populações indígenas e interesses diversos ligados à mineração, grandes projetos agrícolas ou energéticos, tem provocado crises humanitárias. A crise na Terra Indígena Yanomami, no Brasil, revelada em toda a sua profundidade no início de 2023, não está citada nesse relatório, mas certamente encabeçará o próximo.
O assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, defensores dos direitos dos povos indígenas, em junho de 2022, por caçadores ilegais, tornou-se um caso paradigmático da tragédia amazônica. A imensa repercussão internacional levou à localização dos corpos, apenas 11 dias depois dos crimes. Por enquanto, os três acusados estão presos e aguardam julgamento pela acusação de homicídio e ocultação de cadáveres. As investigações sobre os autores intelectuais dos assassinatos seguem em andamento…
O indigenista brasileiro Bruno Pereira, acompanhado de indígenas com os quais ele trabalhava na Amazônia para proteger a floresta e as comunidades
Verificou-se forte aumento nas migrações internacionais. Motivações de insegurança alimentar e social explicam essas emigrações, e não guerras civis, como em décadas passadas. Destacam-se os êxodos da Venezuela, de Cuba e do Haiti.
A Plataforma Regional de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela estimou que 7,13 milhões de venezuelanos deixaram seu país nos últimos anos e 84% deles vivem hoje em 17 países da América Latina e do Caribe. Em vários países há denúncias de xenofobia, sendo as mulheres especialmente afetadas, porque também mais vulneráveis aos ataques sexuais.
Em junho, o UNICEF declarou que, desde o início de 2022, o número de crianças que fizeram a travessia da selva de Darién, entre Colômbia e Panamá, chegou a mais de 5 mil, o dobro do número registrado em 2021. Enquanto isso, o governo mexicano de López Obrador mantém firme seu compromisso de colaborar com as políticas dos EUA que violam o princípio de não-devolução.
Fronteiras fechadas e governos hostis aos imigrantes
Os Estados Unidos, principal destino desses emigrantes, são alvo de diversas denúncias por violação de direitos de imigração e asilo, incluindo separar crianças pequenas dos pais e trancafiá-las em centros de detenção na fronteira enquanto aguardam análise de seus pedidos de asilo. É cruel e não melhorou nada com Joe Biden.
Nos EUA, as autoridades seguiram aplicando um sistema de detenção arbitrária dos imigrantes, com recursos financeiros suficiente para manter 34 mil pessoas encarceradas por dia. Já as autoridades mexicanas detiveram pouco mais de 280 mil migrantes em centros superlotados e deportaram quase 100 mil, em sua maioria oriundos da América Central, incluindo milhares de crianças desacompanhadas.
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