Os nacionalismos e as disputas imperialistas provocaram a Primeira Guerra Mundial. O conflito foi oficialmente encerrado na Conferência de Paz de Paris, realizada nos dias 18, 19 e 20 de janeiro de 1919, com a presença de delegados de 70 países. E uma novidade: a presença dos Estados Unidos, a jovem potência mundial cujo peso econômico e militar ajudou a encerrar a carnificina. Para a república americana, conhecida pelo seu isolacionismo diplomático, estar ali representada por seu presidente, o democrata Woodrow Wilson, significava uma ruptura com quase cem anos de diplomacia baseada na Doutrina Monroe.
Líderes das então chamadas “grandes quatro” nações na Conferência de Paris. Da esquerda para a direita, David Lloyd George (Reino Unido), Vittorio Emanuele Orlando (Itália), Georges Clemenceau (França) e Woodrow Wilson, dos EUA
Naquela reunião ficaram evidentes as diferentes visões de mundo que orientavam europeus e americanos, ditas respectivamente “realista” e “idealista”. Os europeus entendiam a reunião como um ajuste pragmático sobre os interesses dos Estados, baseado em acertos financeiros e territoriais. Já os americanos foram a Paris em um ato missionário, para fazer uma reforma moral do velho e caótico mundo europeu. Os mitos nacionalistas que moldaram os Estados Unidos eram exatamente o do país excepcional, marcado pelo Destino Manifesto.
Enquanto a experiência da nação americana era a do crescimento territorial e federal por auto-adesão, a dos europeus tendia mais à fragmentação. Ao inserir o direito à autodeterminação nas negociações de paz, o presidente Wilson deu voz a um sentimento difuso de que essa era a forma mais “justa” de governo, sem levar em conta que a realidade podia ser mais complexa.
Mesmo o secretário de Estado de Wilson, Robert Lansing, tinha uma série de dúvidas: “Quando o presidente diz “autodeterminação”, que unidade tem em mente? Uma raça, uma área territorial ou uma comunidade? (…) Suscitará esperanças que jamais se realizarão. Custará, temo eu, milhares de vidas. No final, tenderá a cair em descrédito, a ser chamado de sonho de um idealista que não viu o perigo até o momento em que não houve mais tempo para deter quem tentou pôr o princípio em prática.” O que Wilson fez foi excitar os nacionalismos em todas as suas dimensões, inclusive as micro. (Margaret MacMillan. Paz em Paris, p. 20).
Da aceitação do princípio de autodeterminação derivaram o Tratado de Saint-Germain, de 1919, o Tratado de Trianon, de 1920 e o Tratado de Sèvres, também de 1920. Os dois primeiros extinguiram o Império Austro-Húngaro, reconhecendo Hungria, Polônia, Tchecoslováquia e Iugoslávia como novos Estados. Já o Tratado de Sèvres declarou findo o Império Otomano e reconheceu Turquia, Síria, Líbano, Palestina e Armênia como novos Estados.
O artigo 22 da carta da Liga das Nações previa que os povos cujos territórios estavam sob regime de mandato teriam o direito de exercer a autodeterminação futuramente, quando estivessem “prontas”. Na prática isso dizia respeito às colônias , que as metrópoles europeias não tinham a menor intenção de desocupar. Mas o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos se tornou uma contradição insolúvel para a lógica que sustentava toda a ordem imperialista. E ela acabaria ruindo.
Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill, no navio Princesa de Gales, à bordo do qual ocorreu a Conferência do Atlântico
Assim, em 1942, mais uma vez os Estados Unidos vieram em socorro dos britânicos, quando o presidente Franklin D. Roosevelt aceitou se encontrar com o primeiro-ministro Winston Churchill na Conferência do Atlântico. Mas houve uma pré-condição para engajar o país na guerra contra o Eixo. Os EUA impunham o reconhecimento de que nenhuma população deveria ser subjugada por outra contra a sua vontade.
Isso valia para a Alemanha nazista, mas valia igualmente para todo o império colonial britânico, começando pela Índia. Os dois líderes assinaram a Carta do Atlântico.
A condição de superpotência adquirida pelos EUA, por outro lado, permitiu que a nação mantivesse a atroz contradição entre democracia e segregação racial, um mal que seguiria envenenando o país por mais duas décadas. Ironicamente, também era uma questão de “autodeterminação”.
A fundação da ONU e sua Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) elevaram o princípio da autodeterminação dos povos à condição de pilar do direito internacional. O novo consenso serviu de combustível para as lutas anticoloniais, e elas ocuparam o centro da política internacional nas duas décadas seguintes.
A Conferência de Bandung, em 1955, surgiu como a primeira ação para organizar um bloco político que atuasse na ONU em prol da descolonização. Os participantes criaram o Movimento dos Países Não-Alinhados para escapar à condição de meros peões da Guerra Fria e, assim, afirmarem a própria autodeterminação. Eles reorganizaram o mundo dividindo as nações existentes em Primeiro Mundo (capitalistas desenvolvidos), Segundo Mundo (socialistas) e Terceiro Mundo (subdesenvolvidos).
O líder árabe-palestino Amin al-Husayni (à esquerda) com o então primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, na Conferência de Bandung em 1955
Na época, as batalhas diplomáticas na ONU conduziram à Resolução 1.514 (1960), chamada de “carta magna da descolonização” pelo teor afirmado nos dois primeiros artigos:
“1. A sujeição dos povos a uma subjugação, dominação e exploração constitui uma negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas e compromete a causa da paz e da cooperação mundial; 2. Todos os povos tem o direito de livre determinação; em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.”
Como qualquer documento jurídico, a resolução exige interpretação a respeito do que nela está escrito. E a tendência entre os legisladores foi a de reconhecer a autodeterminação como um direito de todos os povos colonizados, mas não necessariamente das minorias étnicas ou nacionais integrantes de Estados soberanos.
Trata-se de distinção essencialmente política, pois a limitação do que se entende por “direito a autodeterminação” revela o receio dos Estados em verem a integridade de seus territórios questionada. A posição oficial da ONU, nesse sentido, era de que o direito de minorias nacionais ou étnicas deveria merecer tanta proteção quanto as fronteiras dos Estados soberanos já consolidados.
Em 1966 sobrevieram os pactos internacionais Sobre os Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que dispõem da mesma redação em seu primeiro artigo: “Todos os povos têm direito a autodeterminação”. Em virtude desse direito, são livres para definir seus estatutos políticos e assegurar seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
A palavra “todos” que inicia o artigo é muito importante, porque com o tempo criaram-se condições para a construção de uma interpretação mais extensiva sobre o princípio de autodeterminação, atrelando-o à existência de regimes democráticos que efetivamente incluem a participação de todos os cidadãos. Essa nova dimensão decorreu da longa luta para derrotar o regime do apartheid na África do Sul.
A década de 1970 pôs em cheque a hegemonia ocidental de muitas maneiras, da derrota dos EUA no Vietnã ao sucesso dos movimentos de descolonização. Anunciava-se a “revolução dos oprimidos”?
Esse período de perda de prestígio das potências ocidentais e de autoafirmação dos novos Estados independentes teve um efeito transformador na ONU, cuja Assembleia Geral era formada majoritariamente por países do “Terceiro Mundo”. O conceito de soberania relacionado ao autogoverno sobre um espaço territorial a ser preservado, que predominara até então, começou a deslizar para um entendimento mais democrático ao associar a vontade da população de um território em tomar parte daquele Estado.
O novo paradigma surgiu com a Resolução 3411 (XXX) da ONU, aprovada em 28 de novembro de 1975, condenando o regime de apartheid vigente na República Sul Africana. A reivindicação por autodeterminação começou a ganhar fôlego com o argumento de que o princípio está baseado na representatividade popular de um governo, o que simplesmente não acontecia no regime de segregação racial explícita do país (com ampla cobertura internacional da ainda influente coroa britânica). Não havia regime democrático, por mais branco e eficiente que pudesse parecer do ponto de vista dos índices econômicos do país, por exemplo. E esse era o ponto: a “minoria” de negros e mestiços (coloured) correspondia a praticamente 80% da população naquela década. Como negar o fato óbvio?
Apartheid, um crime contra a humanidade. Exército sul-africano na cidade de Port Elizabeth, em 1985
O direito à autodeterminação pressupõe a representação de toda a população nos governos dos Estados, sem que exista distinção de qualquer ordem, com respeito à diversidade étnica e cultural. Tal participação política ampla se tornou um pré-requisito para a realização do conjunto dos direitos humanos que a ONU defende.
É o significado da Carta de Argel, de 1976, que em seu artigo 7º afirma que todos os povos, sem distinção, têm direito a um regime democrático, representativo da totalidade dos cidadãos, capaz de garantir a todos o respeito efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. O documento corrobora a compreensão do direito à autodeterminação como indissociável à feição do Estado de Direito Democrático e o exercício da cidadania política como emancipação de opressões.
A África do Sul sob o regime do apartheid era um Estado cuja unidade nacional mal disfarçava a opressão da maioria em prol da minoria branca. E ao povo oprimido se reconhece o direito de resistir: um direito natural de primeira geração.
A nova perspectiva foi incorporada na Declaração da ONU Sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986. O tratado reafirmava o dever dos Estados de adotarem medidas efetivas para eliminar as massivas e flagrantes violações aos direitos humanos “(…) dos povos e indivíduos afetados por situações tais como as resultantes do colonialismo, neocolonialismo, apartheid, de todas as formas de racismo e discriminação racial, dominação estrangeira e ocupação, agressão e ameaças contra a soberania nacional, unidade nacional e integridade territorial e ameaças de guerra contribuiria para o estabelecimento de circunstâncias propícias para o desenvolvimento de grande parte da humanidade;
Preocupada com a existência de sérios obstáculos ao desenvolvimento, assim como à completa realização dos seres humanos e dos povos, constituídos, inter alia, pela negação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e considerando que todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes, e que, para promover o desenvolvimento, devem ser dadas atenção igual e consideração urgente à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e que, por conseguinte, a promoção, o respeito e o gozo de certos direitos humanos e liberdades fundamentais não podem justificar a negação de outros direitos humanos e liberdades fundamentais (…)”.
Em 1993 a ONU lançou o Programa de Ação da Conferência de Direitos Humanos, realizada em Viena, conclamando os Estados soberanos a se conduzirem de acordo com o princípio da igualdade de direitos e autodeterminação, que se realizaria pela formação de governos representativos de todos os povos presentes em seus territórios, sem qualquer tipo de distinção.
“Tendo em consideração a situação particular dos povos que se encontram sob o domínio colonial, ou sob outras formas de domínio ou ocupação estrangeira, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece o direito dos povos a empreenderem qualquer ação legítima, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, para realizarem o seu direito inalienável à autodeterminação. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos considera a recusa do direito à autodeterminação como uma violação dos Direitos Humanos e sublinha a importância da concretização efetiva deste direito.
Em conformidade com a Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional relativos às Relações Amigáveis e à Cooperação entre Estados nos termos da Carta das Nações Unidas, tal não deverá ser entendido como autorizando ou encorajando qualquer ação que conduza ao desmembramento ou coloque em perigo, no todo ou em parte, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes que se rejam em conformidade com o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos e que, consequentemente, possuam um Governo representativo de toda a população pertencente ao seu território, sem qualquer tipo de distinções.”
Separatistas pró-russos, na província de Donetsk, em 2014. Na Ucrânia, Moscou traduziu o direito à autodeterminação como um “direito à guerra de agressão”
O princípio da autodeterminação avançou do campo do direito público para se transformar em direito fundamental da pessoa humana. A autodeterminação deve assegurar a qualquer povo a própria liberdade interna e a perenidade das garantias fundamentais em sua dimensão constitucional, sem as quais a soberania internacional de um Estado é bem precária.
Mais uma vez recorremos a Norberto Bobbio, para quem nenhum governo, seja qual for a cor com que se cubra ou a ideologia em que se inspire; tenha ele nascido de um processo revolucionário ou da descolonização; possua fortes tradições democráticas ou recentes, pode, apoiado em seus méritos passados, pretender manter-se livre de um cotidiano participativo e fiscalizatório, e excluir o povo que governa do número dos titulares do direito de autodeterminação.
Portanto, quando pensamos em autodeterminação hoje, estamos tratando da afirmação de um valor democrático, sem o qual não é possível consagrar os direitos humanos. A democracia é um pacto construído a partir de processos históricos complexos, e não um contrato que pode ser rescindido a qualquer tempo e por mera vontade de alguém.
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