A CRISE YANOMAMI E A OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA

 

A crise humanitária que atinge o povo Yanomami continua. Em janeiro de 2023, o Estado brasileiro decretou emergência de saúde pública na Terra Indígena Yanomami, em meio à explosão de casos de malária e desnutrição. A ação veio logo após a posse de Lula da Silva (PT) na presidência da República, sinalizando uma nova postura, contrária à complacência e incentivo com que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tratava a questão do garimpo ilegal em terras indígenas.

A ameaça à segurança das aldeias é um perigo imediato. O mercúrio, ingrediente essencial da lavra garimpeira, se infiltra no solo e nas águas contaminando alimentos e organismos, ameaçando os indígenas, principalmente as crianças, com impactos de longo prazo. Foi o que aconteceu em 2023, o ano em que a força-tarefa governamental entrou em ação. Foram 363 mortes de yanomamis, contra 343 óbitos em 2022, segundo o Ministério da Saúde. 

Os yanomami e o garimpo ilegal

Atendimento de crianças desnutridas no Centro de Recuperação Nutricional da Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami, em Boa Vista, Roraima

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizou uma pesquisa em nove aldeias Yanomami no alto rio Mucajaí, em outubro de 2022, e detectou a contaminação por mercúrio em todas as 287 pessoas que participaram dos exames. Para o órgão, as crianças são as mais prejudicadas, dado que o metilmercúrio pode causar alterações sensoriais, motoras e cognitivas irreversíveis, e também enfrentam outras negligências, como a baixa cobertura vacinal. Quase metade das crianças menores de 11 anos apresentavam desnutrição aguda e 25% tinham anemia.

A intervenção federal na Terra Indígena Yanomami constatou o fechamento de pelo menos seis postos de saúde entre 2021 e 2023, principalmente pela violência causada pelos garimpeiros e associados, deixando pelo menos 64 aldeias sem assistência direta. A maior presença de profissionais de saúde permitiu verificar que mais da metade dos 308 yanomamis que morreram entre janeiro e novembro de 2023 eram crianças com menos de quatro anos, vítimas de pneumonia, diarreia, malária e desnutrição.

 

Intervenção federal contra um morticínio

A Terra Indígena Yanomami foi instituída em 1992 como desdobramento da Constituição de 1988, a partir da qual, pela primeira vez o Estado brasileiro reconheceu o direito dos povos indígenas a territórios autônomos, sob proteção da União, abrindo mão da sua antiga concepção assimilacionista. Hoje como ontem, são as missões religiosas e seus representantes no Legislativo que insistem nesse caminho de aculturação.

A TI Yanomami é a mais populosa e extensa do Brasil, localizada entre os estados de Roraima e Amazonas, na faixa de fronteira com a Venezuela. Nessa área, maior que Portugal, os yanomami constituem a maior parte da população de 31 mil habitantes, distribuídos em 549 aldeias. O território abriga etnias como os ye’kwana e grupos isolados, como os surucucu-kataroa. 

Em maio de 2022, no último ano do governo Bolsonaro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos solicitou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que representa a Organização do Estados Americanos (OEA), providências em relação à “situação de extrema gravidade e urgência” dentre os yanomami no Brasil. 

O novo governo iniciou a intervenção federal em meio a alarmes de “genocídio”. A intervenção federal contou com a ação da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Sustentabilidade),  Polícia Federal, Ministério da Saúde e Forças Armadas. A força-tarefa trabalhou em conjunto para garantir rápida assistência aos indígenas, ao mesmo tempo em que buscava e destruía partes da elaborada infraestrutura do garimpo ilegal, que conta com aviões, embarcações, maquinário e munições. Rapidamente foi comprovado que os recursos ali disponíveis implicam em elevados investimentos. Não era mineração artesanal, uma alegação invocada para esconder o volume da destruição e do crime.

Operação militar em TI yanomami

Agentes da Polícia Rodoviária Federal e do Ibama destroem infraestrutura do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami

Logo ao chegarem, os militares esticaram um cabo de aço no rio Uraricoera, em frente a uma base do Ibama e da Força Nacional. O objetivo era impedir a passagem de barcos sem autorização, que utilizavam o curso d’água como principal via fluvial para entrar na terra indígena e levar seu maquinário. Em 15 de maio, um grupo de supostos garimpeiros atacou a base e destruiu o cabo de aço, num claro desafio às autoridades. 

O garimpo ilegal está vinculado às redes do crime organizado que atuam em escala nacional e transnacional. Segundo afirmou o sociólogo Rodrigo Chagas, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os aviões transportam ouro e também drogas. As diferentes cadeias criminosas se aproximam e se misturam.

Em novembro de 2023, quando a intervenção federal perdeu fôlego, os quase 20 mil garimpeiros expulsos começaram a retornar para as terras yanomami. O então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, determinou que o governo apresentasse um plano de desintrusão dos garimpos ilegais em sete terras indígenas, incluindo a Yanomami (esses planos eram cobrados desde 2021). Foram entregues planos referentes a duas TI (Apyterewa e Trincheira Bacajá) e a orientação do ministro foi para que esses sirvam como baliza para os demais. 

Mas o problema crônico é a rarefeita presença do Estado em toda a Amazônia. Planos emergenciais não resolverão o problema. Enquanto isso, prolonga-se a crise de saúde entre os yanomami e outros povos indígenas; a destruição ambiental; e os ciclos de expulsão e retorno do garimpo ilegal, que para muita gente pobre da região constitui uma das únicas fontes de trabalho.

 

Os yanomami e a política indígena do Estado brasileiro 

Os yanomami e o garimpo ilegal

Fonte: LE TOURNEAU, François-Michel. Les Yanomami du Brésil: géographie d’un territoire Amérindien, 2012, p. 53 (HAL Archives Ouvertes)

No noroeste de Roraima está a Serra da Parima, núcleo histórico a partir do qual os yanomami se expandiram, do começo do século XIX até metade do século XX. A ampliação da área ocupada se deu em detrimento de povos vizinhos. Progressivamente alcançaram áreas de planície, onde se destacam as florestas de várzea. No lado venezuelano do território yanomami, as águas fluem para a bacia do rio Orinoco, também alvo de garimpo ilegal. Nos dois lados da fronteira, o modo de vida é seminômade, baseado na agricultura itinerante, além da pesca e da caça. 

Os yanomami e outros povos indígenas em áreas de fronteiras e nos interiores do Brasil, na  Amazônia e no Cerrado, foram sendo “incorporados” pelo Estado brasileiro ao longo do século XX, quando houve uma preocupação estratégica com a conquista e controle das vastas partes do território nacional ainda não desbravadas. 

Assim nasceu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, responsável pelos primeiros contatos com os yanomami. Vistos pelas lentes do racismo científico em vigor, os indígenas eram “selvagens” e “ingênuos” e, portanto, precisavam da tutela estatal, incapazes de decidir por si mesmos.  Nos anos 1940, tempo da ditadura do Estado Novo (1937-1945), foram instalados os primeiros postos do SPI na região, além de missões religiosas.

A criação de uma incipiente infraestrutura sanitária trouxe certa sedentarização das aldeias. Ao mesmo tempo, o maior contato entre indígenas e não-indígenas favoreceu surtos de sarampo, gripe e coqueluche, com impacto irreversível sobre alguns grupos.

 

Os militares e a integração da Amazônia

A chegada avassaladora de migrantes, colonos e empresas na Amazônia e em terras yanomami foi estimulada durante os anos da ditadura militar brasileira (1964-1985). Com o objetivo geopolítico de “integrar a Amazônia” ao restante do país, os militares impulsionaram a abertura de eixos rodoviários como a rodovia Transamazônica, além de concluir a Belém-Brasília, para servirem de indutores para grandes projetos de mineração e colonização agrícola. 

A área de maior ocupação yanomami estava diretamente subordinada ao governo federal, pois fazia parte do território federal de Roraima, criado no Estado Novo. O Plano de Integração Nacional (PIN) planejou abrir grandes rasgos na floresta densa para promover o progresso nacional. Assim surgiu a rodovia Perimetral Norte (BR-210), cujo trecho de Roraima foi inaugurado em 1976, num projeto nunca concluído que pretendia alcançar o Amazonas, Pará e Amapá. Efetivamente, surgiram núcleos de colonização ao longo da rodovia, especialmente baseados na extração da  madeira e introdução de gado. 

Já o ambicioso Projeto Radar da Amazônia (RADAM), criado em 1975, cartografou com detalhes as áreas de fronteira e identificou o potencial mineral do subsolo de todas aquelas terras “intocadas” – ou seja, não se considerava a presença dos indígenas, a serem integrados de um modo ou outro… As imagens mostraram a presença de jazidas de ouro na parte norte das terras yanomami, em área drenada pelo rio Uraricoera e no alto Mucajaí, afluentes do rio Branco, um braço da bacia amazônica. 

Os yanomami e o garimpo ilegal

Fonte: LE TOURNEAU, François-Michel. Les Yanomami du Brésil: géographie d’un territoire Amérindien, 2012, p. 20. (HAL Archives Ouvertes)

Tudo isso era assunto estratégico para o Estado brasileiro, que mantinha a velha matriz econômica de explorar recursos naturais para financiar os gastos públicos. Na década de 1980, época da febre do garimpo de ouro em Serra Pelada, no leste do Pará, a mineração avançou em direção às áreas yanomami. No alvorecer da redemocratização brasileira, o termo “garimpo” se tornou uma espécie de guarda-chuva para grandes empreendimentos de mineração.

 

Leis para o garimpo ilegal

A lavra garimpeira só foi regulamentada no Brasil em 1940, pelo Código de Minas, atualizado em 1967 pelo Código de Mineração. Nessas leis, o garimpo foi entendido como atividade artesanal, realizado com recursos rudimentares. Foram estabelecidos critérios para diferenciar o garimpo da mineração em larga escala, estimulada pelo governo militar em projetos como o Grande Carajás (1980), no Pará, e executado pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).

Em 1989, a Lei nº 7.805 criou o regime de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG). O garimpo deixou de ser definido por sua natureza artesanal e passou a depender de uma lista de minerais e pedras preciosas que seriam objeto de sua exploração. A lei permitiu a organização dos garimpeiros em cooperativas, concedendo-lhes autorização para funcionar como empresas de mineração. 

Em 2008, o Estatuto do Garimpeiro escancarou as portas para a exploração ilegal ao admitir o “aproveitamento imediato do jazimento mineral”, sem inspeção ou pesquisa anterior pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Em 2016, a portaria nº 155 do DNPM estabeleceu que as PLGs poderiam ser concedidas a pessoas físicas em um território de até 50 hectares e de até 1.000 hectares, às cooperativas. 

Em 2013, a Lei 12.844 estabeleceu o pressuposto da “boa fé” sobre a origem do mineral no momento de vendê-lo nos Pontos de Compra de Ouro (PCO), dispensando a apresentação de permissão de exploração concedida pelo DNPM, renomeado Agência Nacional de Mineração (ANM) a partir de 2018. A “boa-fé” serviu para “esquentar” muito ouro extraído ilegalmente. 

O DNPM, atual ANM (Agência Nacional de Mineração), proibiu o garimpo em terras indígenas desde 2016, sem sucesso. Com a chegada de Bolsonaro à presidência, em 2019, os garimpeiros puderam contar com uma retórica francamente a seu favor e com a vista grossa em relação à atividade sobre áreas protegidas, além do desmantelamento deliberado dos órgãos de controle federal. Segundo o projeto Map Biomas, entre 2018 e 2022 o espaço alterado pelo garimpo em unidades de conservação e terras indígenas saltou de 54,2 mil para 103,4 mil hectares . 

A crise yanomami e a ocupação da Amazônia

Indígenas yanomami preparam a pupunha na aldeia Demini (2003)

 

O garimpo ilegal também é crise social 

A destruição da floresta na TI Yanomami segue em ritmo acelerado. Pesquisa da Fiocruz aponta que, em março de 2023, 62% das aldeias estavam a menos de cinco quilômetros de áreas de floresta alteradas por não-indígenas. Isso significa muita gente vivendo da mineração ilegal de forma direta ou indireta. E muitos votos para correntes políticas associadas à ilegalidade.

A maioria dos 20 mil garimpeiros retirados da TI Yanomami em 2023 apenas transferiu suas atividades para outras áreas proibidas, como o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, entre o Amapá e o Pará, ou para as áreas Munduruku e Kayapó, no sudoeste e sudeste do Pará, respectivamente. As terras indígenas Munduruku, Kayapó e Yanomami somam 90% das áreas indígenas invadidas pelo garimpo ilegal no Brasil.

É tolice acreditar que a simples “desintrusão” dos garimpeiros vá resolver o problema. Esses homens apenas emprestam seu suor e vidas para os grandes investidores por trás desses negócios. Os garimpeiros não são “invasores”, eles são a sociedade criada ao longo de décadas por políticas de Estado que nunca se preocuparam em criar condições de desenvolvimento e trabalho para milhares de migrantes e mestiços atraídos por sonhos de riqueza. 

É urgente ir além da ocupação militar momentânea. A Amazônia como um todo padece da falta de um projeto de desenvolvimento em maior escala, como o Plano Amazônia Sustentável (2008), que nunca saiu do papel. Numa região Norte altamente urbanizada, que passou de 3,5% da população vivendo em cidades em 1970 para 69% em 2000, a falta de oportunidades de trabalho amplia a miragem de fortuna que o garimpo e o tráfico de drogas oferecem. 

 

O arcaísmo como projeto nacional

Capa_de_Macunaíma

Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. O rio onde nasceu o herói sem nenhum caráter do clássico da literatura brasileira é agora destruído por seus descendentes  

Na América Portuguesa, os largos horizontes da colônia eram vistos como recursos infinitos a serem explorados. O legado colonizador atravessou o Brasil imperial e republicano, reproduzindo o modelo arcaico. Na ditadura militar, a dilapidação foi elevada a outro patamar, sob o manto do “Brasil Potência”, com obras gigantescas, incluindo usinas hidrelétricas para abastecer grandes projetos de mineração na Amazônia, caso da Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará.

Mesmo após a redemocratização, na década de 1980, a ideia do “Brasil grande”, continuou atando o laço entre obras gigantescas e recursos naturais supostamente ilimitados. Um exemplo é a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, cujo leilão para a construção foi realizado em 2010, sob Lula da Silva. As obras avançaram durante os governos de sua sucessora, Dilma Rousseff (2011-2016), e as últimas turbinas foram inauguradas por Bolsonaro, em 2019. Cerca de 10 mil famílias tiveram de deixar suas casas por conta das obras de Belo Monte, que impactaram as terras indígenas Juruna e Arara. Esquerda, direita e centro operam juntos essa visão predatória do meio ambiente. A exploração de petróleo na região da foz do Amazonas pela Petrobrás é a mais nova ameaça, que parte do mesmo governo que tem Marina Silva em seu Ministério do Meio Ambiente.  

O dilema do povo yanomami é análogo ao de outros povos indígenas e diz respeito ao compromisso do Estado brasileiro, capitaneado pelo Executivo Federal, com o reconhecimento dos direitos fundamentais da parcela indígena da população e a garantia de seu cumprimento.

A disseminação do crime organizado e a expansão de uma economia voltada à depredação dos recursos naturais formam um impasse ambiental que afeta a Amazônia como um todo. Com a presença apenas virtual do Estado, não há garantias de saúde ou segurança, muito menos de desenvolvimento sustentável, seja para indígenas ou não-indígenas.

 

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