SEIS ESTADOS DENUNCIAM MADURO AO TPI

 

Demétrio Magnoli

1 de outubro de 2018

 

Luisa Ortega, procuradora-geral da Venezuela, com Maduro, no Palácio de Miraflores, em 1 de abril de 2017. Dias depois, ela denunciou as farsas judiciais conduzidas contra opositores, perdeu seu cargo e rumou ao exílio.

Luisa Ortega, procuradora-geral da Venezuela, com Maduro, no Palácio de Miraflores, em 1 de abril de 2017. Dias depois, ela denunciou as farsas judiciais conduzidas contra opositores, perdeu seu cargo e rumou ao exílio.

 

A quinta-feira, 27 de setembro, ficará marcada como a data em que, pela primeira vez nos 16 anos da história do Tribunal Penal Internacional (TPI), um grupo de Estados denunciam o governo de um Estado – o governo de Nicolás Maduro. A denúncia que acusa o governo venezuelano de cometer crimes contra a humanidade foi assinada pelos governos de Canadá, Colômbia, Peru, Chile, Argentina e Paraguai. Nela, identificam-se crimes de assassinato, tortura, estupro e violações do devido processo legal cometidos contra opositores e manifestantes.

Por si mesma, a denúncia não conduz, automaticamente, a uma investigação ou a um processo. A procuradoria do TPI deve, antes, estabelecer o nível de gravidade dos delitos, se a Justiça venezuelana falhou em investigá-los e se eles inscrevem-se na jurisdição da Corte Criminal Internacional. Mas, indiscutivelmente, o cerco da lei internacional de direitos humanos se fecha em torno do regime de Nicolás Maduro.

Os seis Estados pedem a investigação de crimes contra a humanidade cometidos desde 12 de fevereiro de 2014, quando se iniciaram protestos de massas duramente reprimidos, com saldo de 43 mortos, 486 feridos e 1854 detenções. A solicitação retoma e amplia um pedido anterior, encaminhado por advogados brasileiros, que denunciava delitos contra os direitos humanos cometidos “pelo menos desde abril de 2017”, quando foram cassadas as prerrogativas da Assembleia Nacional, de maioria opositora. Do ponto de vista estritamente judicial, a novidade é que, com a iniciativa dos Estados, a procuradoria pode decidir abrir processo sem uma prévia autorização dos juízes da Sala de Questões Preliminares.

A Venezuela – ao contrário de Cuba, da Nicarágua, da Síria, da Coreia do Norte ou de Mianmar (ou, aliás, dos EUA) – é um Estado-Parte do TPI, o que significa que cidadãos venezuelanos podem ser processados na Corte Criminal Internacional. Como o tribunal é uma entidade independente, não está sujeito ao Conselho de Segurança da ONU. Daí que uma decisão de processar seus governantes não pode ser barrada por hipotéticos vetos da Rússia ou da China. O regime de Maduro poderia abandonar o TPI, como decidiu abandonar a Organização dos Estados Americanos (OEA), para escapar a sanções  da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A manobra anularia o exame do pedido de investigação dos advogados brasileiros, mas não teria resultado diante de solicitação encaminhada por Estados, que continuaria a correr mesmo se a Venezuela rompesse com a corte internacional.

A mudança essencial, contudo, ocorre na esfera da política, não na dos arcanos procedimentos judiciais. O pedido dos seis Estados foi divulgado durante a Assembleia Geral da ONU. O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, aplaudiu a iniciativa, “um marco crucial nos interesses da justiça, da responsabilização, da não-repetição e da reparação às vítimas da ditadura venezuelana”. Justin Trudeau, primeiro-ministro canadense, declarou que “a situação na Venezuela é catastrófica”, apontando para as dimensões da “crise humanitária num país que esteve entre os mais prósperos da América do Sul”. Já o ministro de Relações Exteriores do Paraguai, Andrés Rodriguez Pedotti, explicou que “permanecer indiferente diante desta realidade poderia ser percebido como cumplicidade com o regime”.

O isolamento do regime chavista na América do Sul nunca foi tão nítido. Dos principais países do subcontinente, só o Brasil eximiu-se de assinar a denúncia ao TPI. Oficialmente, o Itamaraty justifica a omissão sob os argumentos de que um exame preliminar já se iniciou em fevereiro, a partir do pedido dos advogados brasileiros, e de que a iniciativa dos Estados poderia ser interpretada como pressão política sobre a corte internacional. De fato, o governo brasileiro enxerga o pedido de investigação firmado por Estados como um perigoso precedente, que abriria caminho para a politização do TPI.

A posição canadense é diametralmente oposta. Sob Donald Trump, os EUA intensificaram seus ataques à corte internacional. John Bolton, antigo embaixador de George W. Bush na ONU, agora conselheiro de Segurança Nacional de Trump, qualificou-a de “tribunal ilegítimo” em 10 de setembro e traçou uma estratégia: “Deixaremos o TPI morrer por si mesmo. No fim das contas, para todos os efeitos, o TPI já está morto para nós.” Quando firmou a denúncia contra o governo venezuelano, Trudeau pretendia mostrar que, pelo contrário, o TPI está vivo e ocupa lugar indispensável numa ordem internacional multilateral sob bombardeio dos EUA.

O TPI é anátema para Trump, como foi para Bush. Logo, será também para Maduro. Faz sentido.

 

 

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