DEPORTANDO HAITIANOS, BIDEN IMITA TRUMP

 

Demétrio Magnoli

11 de outubro de 2021

 

“Enquanto dezenas de milhares de imigrantes ilegais cruzam a fronteira, Joe Biden promete-lhes cidadania. Ele está tornando esta crise muito pior.” O tuíte lançado pelo senador republicano Tom Cotton em meados de setembro não faz justiça ao presidente dos EUA. De fato, em quase tudo, menos na retórica, Biden segue a cartilha anti-imigração escrita por Donald Trump.

Quando Cotton tuitou, já estavam em operação diversos voos de deportação de “imigrantes ilegais”, em sua maioria haitianos. Sob uma diretiva do Departamento de Segurança da Pátria, a partir de 21 de setembro a frequência de voos foi ampliada, com quatro aeronaves por dia realizando deportações.

Fonte: U.S. Customs and Border Protection (CBP)

As deportações de migrantes haitianos foram pausadas após o devastador terremoto que atingiu a ilha caribenha em 14 de agosto, mas o período de clemência durou poucas semanas. Diante de um previsível aumento da pressão na fronteira sul, as remoções começaram de novo. Ao longo de 2021, mas especialmente após o terremoto, quase 31 mil imigrantes indocumentados foram interceptados quando tentavam entrar nos EUA.

Os haitianos formam uma pequena fração dos imigrantes indocumentados. Durante os oito primeiros meses de 2021, a Patrulha de Fronteira interceptou mais de 1,5 milhão, um recorde em muitas décadas.

A crise imigratória é atribuída pelos republicanos aos planos do governo Biden de oferecer cidadania a muitos dos 11 milhões de imigrantes sem documentos que vivem nos EUA. Sem dúvida, os confusos rumores que circulam nas redes sociais tiveram impacto na aceleração dos fluxos migratórios. Contudo, mais razoável é imaginar que o influxo resulte principalmente do longo fechamento de fronteiras provocados pela pandemia de Covid-19 e do sombrio cenário de pobreza e violência em países da América Central e do Caribe.

Não é fácil distinguir, na prática, entre imigrantes econômicos e refugiados que buscam asilo. Trump deu uma solução xenófoba ao dilema utilizando o pretexto sanitário oferecido pela pandemia para reunir todos numa única classificação e fechar hermeticamente as fronteiras. Desse modo, violou os tratados internacionais que garantem o direito ao devido processo para solicitantes de asilo.

Biden oscila entre prosseguir nas ilegalidades de seu predecessor ou retornar ao caminho dos tratados. Em maio, prometeu interromper por 18 meses as deportações de 150 mil haitianos que já vivem nos EUA. Contudo, em meados de setembro, cerca de 13 mil migrantes aglomeravam-se sob a ponte internacional da cidade texana de Del Rio, aguardando processamento de solicitações de asilo. Diante do aumento da pressão na fronteira sul, Biden parece em vias de ceder ao chamado da xenofobia: de lá para cá, mais de 7,5 mil foram deportados para o Haiti.

 

A longa jornada dos haitianos

Na cidade de Del Rio, no Texas, migrantes haitianos contaram as histórias de suas jornadas. A travessia do rio Grande, carregando parcos pertences, é apenas o capítulo final de um percurso iniciado à sombra da miséria e, muitas vezes, da violência. Entre eles, não poucos são provenientes do Brasil ou do Chile, para onde migraram após o trágico terremoto haitiano de 2010. A pandemia provocou recessões nesses países, roubando-lhes os empregos precários e impondo uma nova migração.

Reportagem da Fox News sobre imigrantes haitianos acampados sob uma ponte na cidade texana de Del Rio, em setembro de 2021

“Parte do problema é que há incontáveis haitianos chegando com os mais diversos estatutos”, explica Yael Schacher, da ONG Refugees International. Mas o problema de fundo, obviamente, é o fracasso da missão da ONU no Haiti que, entre 2004 e 2017, foi incapaz de cumprir sua promessa de estabilização política e econômica do país.

A haitiana Joselyne Simeus, 32, viveu no Chile por sete anos e partiu para os EUA com seu filho Samuel, de 5. Ela tem família na Flórida e, como chegou com o filho pequeno, poderá reunir-se com os seus. Mas sabe que esse não é o destino da maioria: “Muitos, como eu, fugiram por desespero. Não há oportunidades no Haiti. Não há nada para onde retornar. Eu vim porque quero uma oportunidade melhor.” Será ela uma típica “imigrante econômica”?

O governo estadual de São Paulo lançou, em junho de 2019, uma campanha educativa sobre os direitos dos imigrantes. Os haitianos chegaram em grande número ao Brasil desde 2010. A Casa do Migrante chegou a abrigar mais de 400 haitianos em 2015, mas hoje restaram quase apenas venezuelanos e angolanos.

A crise econômica causada pela pandemia tange os haitianos para os EUA. “O dólar está muito alto, e isso está quebrando os haitianos, porque a gente precisa ajudar a família”, conta a haitiana Daphna Occenac, 29. O Chile não dá documento, mas é melhor que aqui para conseguir trabalho. O Brasil seria o melhor país para viver se não fosse pela questão do dinheiro. Mas agora está difícil, a comida está cara.”

Uma das poucas que ficou é Mor A’nna, que vende bananas diante da Paróquia Nossa Senhora da Paz, no Glicério: “Muita gente está indo embora, tentando chegar aos EUA. Aqui mesmo, tem mais gente que está se preparando para ir. Eu ainda vou ficar, meu marido e minha filha estão na República Dominicana”, relata ao jornalista.

Fonte: Folha de S. Paulo, 3/10/2021

O grupo de Whatsapp “Mexique t’et dwat” (“vou direto para o México”, em creole, a língua popular haitiana) reúne os haitianos imigrados no Brasil que trocam informações sobre o percurso até os EUA. Na reemigração, os haitianos refazem, em sentido inverso, rotas que utilizaram durante a migração original. Uma das rotas de saída passa por Corumbá (MS) e pela Bolívia. Outra, por Assis Brasil (AC) e pelo Peru. Um trajeto similar também é feito por brasileiros que tentam alcançar os EUA. Em 2021, mais de 47 mil brasileiros, contingente bastante superior ao dos haitianos, foram interceptados na travessia do rio Grande.

Um dos trechos mais perigosos do percurso é a travessia da selva de Darién, entre Colômbia e Panamá. Mais ao norte, entre Honduras e Guatemala, a maior ameaça são as gangues criminosas. Já no México, o perigo são os ataques e sequestros dos cartéis do narcotráfico. Em 2011, durante seis meses, cerca de 10 mil migrantes sofreram sequestros no México. Os “coiotes”, especializados na travessia de migrantes para os EUA, cobravam valor médio de US$ 15 mil em 2019. Parte dos lucros é redistribuído aos cartéis e a autoridades policiais mexicanas.

 

Assaltos, estupros, afogamentos, deportação

Uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo obteve mensagens de áudio enviadas por uma haitiana que começou o percurso no início de 2021. A migrante relata a tragédia ocorrida na selva de Darién:

“O Peru não deixou a gente passar por causa do coronavírus. Esse vírus na verdade está no coração de pedra do presidente do Peru. Se ele tivesse nos deixado passar em fevereiro ou março, a gente faria o caminho seco. Mas passamos nove dias na selva com chuva, e aí o rio cresceu muito e começou a levar as pessoas. A gente ficou orando, vendo como o rio ia levando as pessoas vivas, as pessoas chorando, pedindo ajuda, e a gente não podia ajudar.”

A natureza não é o maior dos obstáculos:

“No caminho tem ladrões. Eles têm pistola, arma, facão. Se você não tem dinheiro, eles te matam com faca. Mataram um africano com um facão atrás da cabeça. Os ladrões ‘usaram’ a mulher dele, o africano não queria deixar, falou que ia dar dinheiro, mas o ladrão ficou bravo e matou.”

Os migrante que sobrevivem ao longo percurso não têm nenhuma garantia de que conseguirão se estabelecer nos EUA. A maioria, inevitavelmente, será deportada, como a brasileira Maria, 32, casada com o haitiano Carlos, 28 (ambos, nomes fictícios), que cuida de uma filha de um ano. Eles casaram em 2016, pouco depois da chegada de Carlos a São Paulo. Ele trabalhou como vidraceiro e mecânico, até a pandemia, que tirou-lhe o emprego. Tentaram ganhar a vida como vendedores ambulantes, mas sofreram sucessivas apreensões de mercadorias pela polícia. Então, em setembro passado, tomaram o rumo dos EUA.

Migrantes na selva de Darién, entre Colômbia e Panamá

Ela voou para o México; ele, sem passaporte, seguiu a perigosa rota terrestre. Nos EUA, finalmente, foram interceptados e deportados para o Haiti.

O relato: “Os EUA não tratam as pessoas como pessoas, tratam pior que animais. O Brasil respeita os direitos humanos. Ficamos seis dias separados, em um espaço frio, sem comer, ou melhor, comendo só uma coisa que se chama tortilla. Aí colocaram a gente num ônibus e levaram para um aeroporto. Trataram a gente como se não fôssemos pessoas.”

Maria não sai da casa da família de Carlos, em Porto Príncipe, a capital haitiana: “Aqui tem muito sequestro. Está muito perigoso, principalmente depois da morte do presidente. Poderíamos sair de casa e procurar a embaixada, mas tem muito caso de sequestro. Eu tenho medo de sair e falei para minha mulher não sair. Se ela colocar o pé para fora de casa vão ver que é estrangeira e pode ser sequestrada. Ela não fala o nosso idioma, não conseguiria se virar sozinha.”

As deportações promovidas por Biden foram criticadas não só por ONGs. Como resultado delas, o enviado especial do governo americano para o Haiti, Daniel Foote, entregou uma carta de renúncia. Foote as classificou como “desumanas”, lembrando que os migrantes haitianos fogem da instabilidade política aguda e de um terremoto devastador.     

 

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