GUANTÁNAMO: VINTE ANOS DE VERGONHA

 

Elaine Senise Barbosa

31 de janeiro de 2022

 

No 11 de janeiro passado o Centro de Detenção de Guantánamo, também nomeado pela sigla Gitmo, atingiu o vergonhoso número de 20 anos como território fora da lei: um lugar de violação sistemática dos direitos humanos promovida por sucessivos governos dos Estados Unidos. Na prisão de Guantánamo, homens presos que não tinham acusação formada nem julgamentos marcados foram mantidos por mais de uma década, num limbo jurídico de esquecimento do mundo dos vivos. A infame prisão, situada num enclave extraterritorial na ilha de Cuba, está fora do alcance dos tribunais dos EUA, o que justifica prisões arbitrárias e nenhuma supervisão legal.

A antiga base naval, instalada em Cuba por força dos interesses geopolíticos dos EUA desde 1898, foi transformada em campo para prisioneiros após os atentados de 11 de setembro de 2001, no âmbito da então recém-inaugurada “guerra ao terror”, também chamada Doutrina Bush, do presidente George W. Bush.

De lá para cá foram 20 anos e outros três presidentes. Barack Obama tinha como um dos pontos basilares de campanha a denúncia de abusos de militares e de outros agentes de segurança em centros de detenção como Abu Ghraib, no Afeganistão, e Guantánamo. Mas o presidente democrata foi vencido no Congresso, controlado pela maioria do Partido Republicano. Os congressistas, incluindo alguns democratas, argumentaram que abrigar os detidos em prisões em solo americano colocaria em risco a segurança nacional. 

Em 2013, mais da metade dos 166 detidos do campo entraram em greve de fome para chamar a atenção para sua situação. Quando se iniciou o governo de Donald Trump, a situação retrocedeu. Para contrariar as políticas de Obama, o republicano manteve ativa a prisão em Guantánamo, para júbilo dos islamofóbicos.

O governo do atual presidente, Joe Biden, pretende investir US$ 4 milhões nas instalações da prisão, segundo informou o The New York Times, porque existem prisioneiros que estão condenados a nunca mais saírem de lá. Nas últimas duas décadas, 780 homens passaram pela instalação, que hoje abriga 39 encarcerados, de acordo com informações do órgão do governo responsável pelos processos.

“Estas detenções estão inevitavelmente ligadas a várias camadas de conduta ilegal do governo ao longo dos anos – transferências secretas, interrogatórios incomunicáveis, alimentação forçada de grevistas, tortura, desaparecimento forçado e uma completa ausência do devido processo legal”, explicou a Anistia Internacional.

Mapa/tabela presos

Fontes: The New York Times; Human Rights Watch

 

A história de uma infâmia

Os primeiros presos chegaram no início de 2002, suspeitos de pertencerem à Al-Qaeda, a organização terrorista responsável pelos atentados de 11 de setembro, e também ao Talebã, o grupo fundamentalista que governava o Afeganistão e deu abrigo a Osama Bin Laden.

Em pouco tempo, centenas de homens, em sua maioria pegos na rede da delação paga, sem saber do que eram acusados, encheram as celas de Guantánamo. Eles esperaram meses e anos por proteções legais básicas, negadas ou proteladas inicialmente pelo governo Bush, com ajuda do Departamento de Justiça. A justificativa dizia que tais prisioneiros não estavam sob jurisdição dos tribunais dos Estados Unidos porque estavam geograficamente fora do território nacional americano. O absurdo destinava-se a eximir o governo de observar a Convenção de Genebra e as regras sobre tratamento de prisioneiros.

Presos em Guantánamo

Campo Raio-X, o primeiro a receber detidos da “guerra ao terror”, ensinou que Estados sempre precisam de limites. A imagem acima é uma síntese possível da infâmia 

A invenção da figura de “combatente inimigo ilegal” e sua vinculação aos tribunais militares retardou ainda mais as ações na Suprema Corte. Encobertos, os agentes das Forças Armadas e, sobretudo, das forças especiais de segurança praticaram abusos físicos e psicológicos contra os detidos, de maneira sistemática.  Nos primeiros anos após o 11 de setembro, ou seja, durante o governo de George W. Bush,  o sistema judicial dos Estados Unidos, assim como a maioria da população, estava paralisado pelo terror e tomado de pânico islamofóbico.

O Centro de Detenção de Guantánamo foi denunciado por organizações humanitárias, como a Cruz Vermelha, e de direitos humanos, como a Anistia Internacional, por violações à Convenção de Genebra  sobre direitos dos prisioneiros. O governo Bush insistia que o uso de tortura havia produzido informações valiosas. A prática foi mantida nos demais governos, mesmo sob negativas. Na clássica situação descrita na ciência política,  a sociedade trocou o princípio da liberdade por uma (falsa) sensação de segurança.

Apenas em 2008 os detidos adquiriram o direito de contestar suas prisões em tribunais federais. Quando os primeiros começaram a ser transferidos, não necessariamente libertos, um novo obstáculo se impôs: ou nenhum país aceitava recebê-los como prisioneiros ou imigrantes, ou os países de onde vinham eram considerados pouco seguros para garantir o controle desses retornados. Os que, aos poucos, conseguiram vistos e forma admitidos em em outros países têm que lutar contra o estigma de “prisioneiros de Guantánamo”.

 

CRONOLOGIA DA PRISÃO DE GUANTÁNAMO

  • 13 de novembro de 2001: George W. Bush emite uma ordem militar sobre a “Detenção, Tratamento e Julgamento de Não Cidadãos na Guerra Contra o Terrorismo”. A ordem permite manter cidadãos estrangeiros sob custódia sem acusação por tempo indeterminado. 
  • 28 de dezembro de 2001: O Departamento de Justiça explica em memorando ao Pentágono que os prisioneiros detidos em Guantánamo não têm direito a habeas corpus (que protegem contra detenções arbitrárias) porque não estão no território dos Estados Unidos.
  • 18 de janeiro de 2002: O Comitê Internacional da Cruz Vermelha começa a visitar os prisioneiros. No mesmo dia, o governo Bush decide que os detidos em Guantánamo não se qualificam como “prisioneiros de guerra” e, portanto, não têm direito a proteção sob a Convenção de Genebra.
Alberto Gonzales

Alberto Gonzáles, ex-procurador-geral geral do governo Bush e seu maior cúmplice na violação dos direitos humanos

  • 2 de dezembro de 2002: Donald Rumsfeld, secretário da Defesa dos EUA, fornece a lista das técnicas de interrogatório aprovadas para serem aplicadas aos prisioneiros de Guantánamo. Entre outras: privação sensorial, isolamento, posições de estresse, uso de cães.
  • 30 de maio de 2003: A população carcerária de Guantánamo atinge 680 detentos.
  • 10 de novembro de 2003: A Suprema Corte dos EUA concorda em ouvir apelações sobre se os presos têm o direito de acessar tribunais civis para contestar sua detenção indefinida.
  • 23 de fevereiro de 2004: Pressionado e contestado na Suprema Corte, o governo finalmente apresenta as primeiras acusações contra os detidos em Guantánamo. 
  • 7 de julho de 2004: O Pentágono cria Tribunais de Revisão do Status do Combatente (CSRTs), para determinar o status de “combatente inimigo” de cada prisioneiro.
  • 29 de março de 2005: O processo CSRT é concluído. Dos 558 detidos avaliados, apenas 38 foram definidos como “não mais combatentes inimigos” e liberados.
  • 19 de abril de 2005: A agência Associated Press lança uma ação legal contra o Departamento de Defesa dos Estados Unidos na tentativa de forçar a divulgação de transcrições e outros documentos relacionados às audiências militares de Guantánamo.
  • 20 de maio de 2005: O processo da Associated Press resulta na liberação de quase 2 mil páginas de documentos, embora os nomes e nacionalidades dos detidos tenham sido apagados. Os documentos incluem trechos de depoimentos de presos.
  • 15 de fevereiro de 2006: Relatório da ONU recomenda o fechamento de Guantánamo.
  • 29 de junho de 2006: A Suprema Corte decide que as comissões militares criadas do governo Bush violam as leis da guerra e as convenções internacionais. O tribunal também reitera que os detidos podem processar os casos em tribunais civis.
  • 12 de julho de 2006: Bush revoga sua diretiva de fevereiro de 2002 e aceita que as Convenções de Genebra se apliquem aos detidos.
  • 6 de setembro de 2006: 14 detentos de “alto valor” são transferidos de locais secretos para Guantánamo.
  • 17 de outubro de 2006: O presidente Bush sanciona a Lei das Comissões Militares. A lei retirou a jurisdição dos tribunais dos EUA para julgar pedidos de habeas corpus daqueles classificados como “combatente inimigo”, sob custódia dos EUA, em qualquer lugar do mundo. Houve, na prática, uma facilitação legal para a prática de “ações degradantes”, bem como para a manutenção do programa de detenção secreta da CIA.
  • 22 de janeiro de 2009: O presidente Obama emite três ordens executivas: uma orientando o fechamento da prisão de Guantánamo em um ano; outra, proibindo o uso de técnicas controversas de interrogatório pela CIA; e uma terceira, ordenando a revisão da política de detenção.
  • 15 de maio de 2009: O preso Lakhdar Boumediene, detido em 2002, é transferido para a França.  Foi um caso histórico no qual a Suprema Corte reconheceu o direito ao habeas corpus aos detidos em Guantánamo. Enquanto isso, o presidente Obama assina a permanência do sistema de tribunais militares para julgar suspeitos de terrorismo, embora de forma diferente.
  • 22 de janeiro de 2010: O Departamento de Justiça dos EUA decide que aproximadamente 50 presos, dos 196 ainda detidos em Guantánamo, não poderiam ser soltos nunca mais, mesmo que sem acusações ou julgamentos. 
  • 7 de março de 2011: Obama assina uma ordem executiva para retomar os julgamentos militares dos presos em Guantánamo e aceita formalmente o sistema criado para manter alguns detidos indefinidamente. A ordem é uma ruptura decisiva com uma de suas promessas de campanha.
  • 30 de janeiro de 2018: O presidente Trump assina uma ordem executiva para manter a prisão de Guantánamo aberta. 
  • 27 de dezembro de 2021: O presidente John Biden anuncia gastos militares de US$ 770 bilhões,  mas a Casa Branca critica as disposições da legislação que proíbem o uso de parte desse dinheiro na transferência dos então 39 presos de Guantánamo para outros locais. Biden promete fechar a prisão antes que seu mandato termine, mas sabe que o governo federal está de mãos amarradas porque uma lei proíbe transferir esses homens mortos-vivos para prisões no território nacional americano.
  • 11 de janeiro de 2022: após 20 anos de arbítrio e graves violações de direitos humanos cometidos por sucessivos governos dos Estados Unidos, restam 39 homens à espera de um destino.

(Fonte: Al Jazeera)

 

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