ROMÊNIA II: FASCISMO E HOLOCAUSTO

 

Parte 1, esquerda

Víctor Daltoé dos Anjos

(Geógrafo/UFSC; doutorando em Geografia/USP)

24 de fevereiro de 2025

 

A ascensão do fascismo na Europa inspirou movimentos de extrema-direita nos países localizados entre a Alemanha nazista e a União Soviética, o “cordão sanitário” consolidado no pós-Primeira Guerra Mundial. Nacionalismos vizinhos e rivais, alimentados pela ideia de revanche, se tornaram terreno fértil para o surgimento de partidos como a romena Guarda de Ferro.

Ondas frequentes de antissemitismo eram toleradas por governos sucessivos na Romênia, amplificando o apelo da extrema-direita. Movimentos ultranacionalistas viam os judeus como um entrave à “verdadeira” unidade da nação romena, latina e cristã, ideologia que nutriu a participação de forças do país no Holocausto, em aliança com a Alemanha de Hitler.

 

A extrema-direita na Romênia

Romênia (II): fascismo e antissemitismo

Corneliu Codreanu (1899-1940), o líder da Guarda de Ferro

Em 1922, ano da Marcha sobre Roma de Benito Mussolini, o jovem romeno Corneliu Codreanu (1899-1940) e o ultranacionalista Alexandru Cuza (1858-1947) fundaram a Liga Nacional de Defesa Nacional-Cristã, com o lema “Cristo, Rei, Nação”. O grupo de extrema-direita adotou a suástica como símbolo e o objetivo de resolver o “problema judeu” através da sua “eliminação”. 

Cuza, o teórico, pregava que a nacionalidade era uma força natural e espiritual ligada a uma “raça” com “sangue unificado”, livre da mestiçagem. Os judeus representariam uma nação “bastarda e degenerada” a ser “extirpada” com base em uma “ação imediata”, tratando-se de “legítima defesa” contra os “parasitas perigosos”. Codreanu, o discípulo, se revelou ainda mais radical que o mestre, pregando o terror individual como estratégia.

Apóstolo da violência política, Codreanu organizou “confrarias da cruz” e “equipes de morte”, e fundou a Legião do Arcanjo Miguel (1927), logo transformada na Guarda de Ferro (1930), uma força paramilitar. Em 1933, um grupo de legionários, como se identificavam os seguidores do grupo, assassinou Ion Duca, o primeiro-ministro liberal que havia dissolvido o partido, reconfigurado a cada tentativa de repressão.

 

O Estado antissemita

No parlamento romeno, desnaturado pelas interferências do rei Carlos II (1930-1940), os partidos Liberal e Nacional Camponês eram ameaçados pelo radicalismo da Guarda de Ferro e se dobraram gradualmente à retórica abertamente antissemita, anticomunista e xenófoba do grupo, o que só ampliou a audiência dos legionários de Codreanu.

Romênia (II): fascismo e antissemitismo

Marcha dos legionários, integrantes da Guarda de Ferro, em 1940, quando o movimento estava no auge de seu poder

O governo do liberal Gheorghe Tătărescu (1934-1937) restabeleceu a discriminação oficial contra os judeus com uma legislação que limitava seu poder econômico. A Guarda de Ferro, por sua vez, expandia sua influência nos meios universitários e junto ao clero cristão ortodoxo, cujo Patriarca Miron Cristea (1919-1939) não escondia seu pendor antissemita.

Em novembro de 1937, a Guarda de Ferro, renomeada como Tudo pelo País, conseguiu mais de 60 cadeiras nas eleições parlamentares. O novo primeiro-ministro, da Liga Nacional Cristã, Octavian Goga, adotou o lema “Romênia para os romenos” e instituiu uma depuração dos judeus da imprensa, das profissões liberais e do setor público, além de uma “revisão” geral da cidadania dos judeus.

 

A submissão à Alemanha nazista

O rei Carlos II desconfiava do poder crescente da Guarda de Ferro e preferia uma monarquia com poder concentrado em suas mãos. Com um golpe de Estado, o rei instituiu a Ditadura Real (1938-1940) e impôs uma constituição que diferenciava os “romenos de sangue” dos outros cidadãos. Carlos II se aproximou da Itália de Mussolini visando à criação de um Estado corporativo e todo-poderoso, o núcleo-duro do fascismo. 

O rei-ditador deu continuidade à revisão da cidadania dos judeus anulando a nacionalidade de 225 mil pessoas, cerca de um terço da comunidade judaica romena, e instituiu um draconiano Estatuto dos Judeus em agosto de 1940, condenando-os explicitamente como “raça”. Contudo, o antissemitismo de Carlos II não foi suficiente para reduzir as ambições de Adolf Hitler quanto à Romênia.

O führer desconfiava dos vínculos profundos que ligavam a monarquia romena à França e cobiçava as reservas de petróleo do país. Em agosto de 1940, a Alemanha impôs à Romênia a entrega da Transilvânia do Norte à Hungria e da Dobruja do Sul à Bulgária, integrantes do Eixo. Na esteira do Pacto de Não Agressão Germano-Soviético (1939), Joseph Stalin ordenou ocupar toda a Bessarábia e o norte da Bucovina.

Era o fim da Grande Romênia. Humilhado, o rei Carlos II foi deposto em setembro de 1940 por um golpe militar liderado pelo general Ion Antonescu (1940-1944), com apoio da Guarda de Ferro e do líder nazista alemão.

 

A oportunidade para o extermínio  

Romênia: nacionalismo e antissemitismo (I)

A sinagoga sefardita Cahal Grande destruída no pogrom de Bucareste, em janeiro de 1941

O general Antonescu se auto proclamou “Condutor” e responsabilizou uma trama “judaico-bolchevique” pela agressão soviética à Romênia, mas se afastou dos incontroláveis legionários da Guarda de Ferro. Em janeiro de 1941, o movimento de extrema-direita rompeu com o regime e organizou um pogrom em Bucareste, a capital, incendiando 25 sinagogas, pilhando mais de mil estabelecimentos comerciais e matando 125 judeus.

Antonescu conseguiu neutralizar a Guarda de Ferro e manter a Romênia como a principal aliada militar dos nazistas na invasão à União Soviética, em junho de 1941. Com o início da Operação Barbarossa (quando a Alemanha começou a guerra no leste a fim de invadir a URSS), forças da Romênia participaram ativamente da primeira fase do Holocausto, marcada pela execução em massa de judeus em fuzilamentos coletivos, antes ainda dos campos de extermínio.

Na cidade de Iasi, próxima da Bessarábia ocupada pelos soviéticos, forças romenas instigaram a população contra a comunidade judaica local, mais de 30% dos habitantes, por sua suposta cumplicidade em relação ao Exército Vermelho. Em 28 e 29 de junho, entre 8 mil e 10 mil judeus foram assassinados no pogrom de Iasi, com a participação central das forças de segurança da Romênia, enquanto iniciava a invasão da União Soviética.

 

 

Holocausto

Em julho de 1941, forças romenas avançaram pela Bessarábia e pela Bucovina e mataram entre 50 mil e 60 mil judeus, com o apoio ocasional do Einsatzgruppe D, uma unidade nazista responsável pela execução de judeus. No outono, cerca de 150 mil judeus foram deportados para uma ampla zona entre os rios Prut e Bug do Sul, na Ucrânia soviética anexada pela Romênia e renomeada como Governorado da Transnístria, onde já viviam cerca de 250 mil judeus.

Na Transnístria, os fuzilamentos coletivos e a miséria ceifaram a vida de judeus deslocados e nativos, muitos deles em “campos de trânsito”. A cidade de Odessa, centro intelectual judaico da Europa Oriental no século XIX, foi transformada na capital da nova Transnístria romena. Em outubro de 1941, cerca de 26 mil judeus foram fuzilados nas cercanias da cidade.

A política de extermínio executada pela Romênia durante a Segunda Guerra Mundial matou cerca 280 mil judeus. A maior parte das vítimas, 94%, era oriunda da Bessarábia e da Bucovina (ocupadas pelos soviéticos e reocupadas pela Romênia durante a guerra), e do sudoeste da Ucrânia soviética. Os massacres foram reforçados pelo uso da retórica conspiracionista do “complô judaico-bolchevique”, em meio ao cenário de guerra contra o Exército Vermelho.

Na Transilvânia do Norte, tomada pela Hungria, havia cerca de 165 mil judeus. Cerca 131 mil foram deportados para o campo de extermínio de Auschwitz entre maio e julho de 1944, quando a “solução final” já estava em curso.

 

A reversão da Segunda Guerra 

Em meados de 1942, quando Hitler solicitou à Romênia o envio dos judeus remanescentes do seu próprio território, o general Antonescu recusou, mas não por razões humanitárias. O ditador romeno ressentia de que a mesma ordem não era dada (ainda) a outros aliados do Eixo e receava que o fim das comunidades judaicas ampliasse o peso das minorias alemã e húngara na Romênia. Além disso, deixava uma janela aberta para o caso de uma vitória dos Aliados.

Romênia: fascismo e Holocausto (II)

Deportação de judeus para o Governorado da Transnístria, onde dezenas de milhares foram mortos 

Por conta do impasse entre Hitler e Antonescu, cerca de 2/3 dos judeus da Romênia sobreviveram ao Holocausto, tomando como base o território do país sem a Bessarábia, a Bucovina e a Transilvânia do Norte, perdidas em 1940. Isso não significa que tenham passado incólumes ao conflito, principalmente pelas ordens de Antonescu para a formação de guetos desde o início da guerra contra os soviéticos, onde a fome fez seu trabalho.

A interrupção do Holocausto na Romênia influiu no destino dos roma ou ciganos, vítimas das políticas raciais de Hitler e do regime de Antonescu. Cerca de 25 mil ciganos “indesejáveis” foram deportados para a Transnístria entre junho e setembro de 1942, onde metade perdeu a vida. O processo foi interrompido no momento em que Antonescu recusou a entrega dos judeus romenos ao Terceiro Reich, interligando o destino de judeus e ciganos no país.

O fim das leis antissemitas veio com a queda de Antonescu em agosto de 1944, após um golpe liderado pelo herdeiro do trono, Miguel I, quando o Exército Vermelho já se encontrava próximo às fronteiras romenas. Na reconfiguração territorial decidida em Ialta, a União Soviética manteve a Bessarábia e a Bucovina do Norte, o Governorado da Transnístria foi desfeito e, principalmente, o Estado da Romênia foi desligado das principais áreas onde suas forças cometeram crimes de guerra e crimes contra a humanidade, livrando-se dos processos derivados do Tribunal de Nuremberg.

 

Entre o esquecimento e o reconhecimento

Na Guerra Fria, a Romênia foi governada por um regime comunista de partido único e inicialmente subordinado à Moscou pelo Pacto de Varsóvia. O discurso oficial do pós-guerra preferiu apagar a participação direta do país no Holocausto. Deste modo, a historiografia sobre a Shoah se tornou refém das declarações de Bucareste, que preferia enfatizar a recusa de Antonescu em deportar os judeus romenos, no outono de 1942.

No caso do povo roma, os comunistas mantiveram a tradição do Estado romeno, ignorando-os para efeitos de políticas públicas. Em 1949, o governo dissolveu a União Geral dos Roma, que não foram incluídos na lista oficial das minorias nacionais e étnicas residentes no país. Apenas na década de 1970 o governo de Bucareste lançou medidas para lidar com a marginalização dos roma, levando à sedentarização dos últimos 65 mil que viviam em nomadismo. As caravanas desapareceram da paisagem romena.

Os judeus na Romênia, mais de 360 mil em 1945, se sentiam ameaçados pela chaga antissemita no país e pelas políticas desse teor praticadas pelo líder soviético Joseph Stálin (1927-1953). Com a eclosão da Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949) resultante da criação do Estado de Israel, o regime romeno dissolveu a maioria das organizações judaicas, encarcerando líderes e militantes sionistas, enquanto cada vez mais judeus sonhavam com a aliyah, a emigração para Israel. 

Romênia (II): fascismo e antissemitismo

Elie Wiesel (1928-2016), judeu da Transilvânia, sobreviveu a Auschwitz, e se tornou importante ativista pelos direitos humanos, laureado com o Nobel da Paz em 1986

Os judeus emigraram gradualmente da Romênia, com a alternância entre momentos de abertura e restrição, responsáveis por muitas separações de famílias. Sob os líderes Gheorghe Gheorghiu-Dej (1952-1965) e Nicolae Ceaușescu (1965-1989), o regime comunista barganhou vistos de emigração por ajuda econômica ocidental e israelense, recebendo em troca materiais agrícolas, armas e dólares. Em 1981, havia apenas 34 mil judeus no país.

Em 2003, a Romênia reconheceu pela primeira vez a participação direta do país no Holocausto, estabelecendo uma comissão liderada pelo escritor e ativista Elie Wiesel, judeu nascido na Transilvânia do Norte e sobrevivente de Auschwitz. As revelações do relatório final da Comissão Wiesel levaram à criação do Dia Nacional de Memória do Holocausto, o 9 de outubro, recordando o início das deportações de judeus para o Governorado da Transnístria, em 1941.

Em 3 de outubro de 2023, a Romênia instituiu o ensino obrigatório sobre a participação do país no Holocausto. “Eu acredito que, para uma nação democrática e forte”, disse o primeiro-ministro Marcel Ciolacu, “patriotismo também significa não esconder as partes sombrias da história e quem as criou”… 

 

SAIBA MAIS

  • SNYDER, Timothy. Terras de sangue: a Europa entre Hitler e Stalin. Rio de Janeiro: Record, 2012.
  • SNYDER, Timothy. Terra Negra: o Holocausto como história e advertência. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail