HOLOCAUSTO – PARTE II

27 de maio de 2019

 

(* A foto de capa mostra as marcas dos arranhões em uma câmara de gás em Auschwitz)

 

As duas décadas que separam as grandes guerras do século XX (1919-1939) foram de estertores do Estado liberal nascido da Revolução Francesa. Elas marcaram a crise da concepção – e da experiência – de sociedades nas quais o livre-mercado podia existir sem limites estabelecidos em nome da coletividade. Dessa fratura na hegemonia política do liberalismo vieram à luz duas formas de Estado intervencionista que eram dois monstros: o stalinismo e o nazifascismo, definidos por Hannah Arendt como Estados totalitários. No pós-guerra, mesmo preconizando a máxima autonomia do indivíduo, os liberais tiveram que aceitar um Estado com novo perfil, mais intervencionista, definido como de “bem estar social”, mas ainda assim capaz de preservar o liberalismo político, a democracia e os direitos civis.

O drama judaico seguiu seu roteiro, nesses novos cenários, mas com personagens e papeis já conhecidos. Descritos pelos setores políticos de direita, os judeus são os “outros”, os não-nacionais, estrangeiros – o judeu errante; vistos pela esquerda, representam o capital internacional, sem pátria – o judeu usurário. Numa ponta e na outra, a acusação recobria-se com tons acusatórios, de tipo romântico, ao “cosmopolitismo” judeu (atualmente, a direita nacionalista usa o termo “globalismo”).

Marx afirmou que o antijudaísmo desapareceria com o advento do comunismo; a URSS de Stalin provaria que não. Mas nada chegaria aos pés do genocídio organizado, sistemático, de milhões de pessoas consideradas “impróprias”.

 

NAÇÕES E RAÇAS: O RACISMO COMO IDEOLOGIA 

O antissemitismo é fenômeno da Era Contemporânea, porque deixa de lado a questão religiosa (mesmo que ela nunca tenha desaparecido, do ponto de vista popular) para se concentrar na questão racial/cultural. Nos espaços acadêmicos e científicos do século XIX e, sobretudo, início do século XX, sangue e cultura fundiram-se produzindo uma ideia imutável: a “raça”, que transmitiria geneticamente traços físicos e comportamentais aos descendentes. Pesquisas da época, medindo crânios e outras tipologias físicas “comprovavam” essas diferenças: a ganância do judeu, a indolência do negro, a superioridade do branco… E, como a geografia comprovava, cada “raça” possuiria seu próprio Estado territorial.

A exceção seriam os judeus, cuja antiguidade como povo e inexistência de Estado foram interpretadas como um “gene” torto, que os impedia de evoluírem do nomadismo para o sedentarismo e se unirem para criar sua própria entidade política soberana. Então, de acordo com os antissemitas, o que fariam esses seres atavicamente nômades? Se instalariam nos países “dos outros” usufruindo sem construir e também sem quererem se misturar aos gentios. No imaginário, ressurge o judeu usurário: é o ganho sem trabalho.

Existem centenas de ilustrações desse tipo associando os judeus a uma natureza animalesca

Existem centenas de ilustrações desse tipo associando os judeus a uma natureza animalesca

Daí para a associação com seres parasitas e daninhos, bastou a maldade. O advento da propaganda– com seus imensos cartazes e revistas buscando impactar por meio da imagem rápida, sem palavras, repleta de subjetividades – forneceu o veículo para o discurso do ódio. Recordemos que os nazistas estudavam a mente humana e faziam experimentos com propaganda subliminar, de modo a furar o filtro da razão e agir diretamente no inconsciente dos espectadores: a irracionalidade como método, eis um traço característico da operação política nazifascista.

Excluídos da “nação de sangue”, os judeus tornaram-se suspeitos de traição, de conspiração, de tudo que ocorre no segredo: eram maçons tramando revoluções liberais; banqueiros trancados em seus gabinetes com altos funcionários do Estado decidindo o futuro das guerras; agiotas nas vilas protegidos em seus guetos. E a novidade, que se espalha rapidamente depois da Revolução Russa de 1917: o judeu bolchevique.

É irônico que as duas maiores vertentes do antissemitismo corram em direções opostas e se encontrem no final, na mesma grande e invencível teoria conspiratória, que é o domínio do mundo pelos judeus. A vertente da esquerda está ligada ao liberalismo, com seu livre-mercado e imperialismo, é o dinheiro, o judeu usurário; a nova vertente, que os nacionalistas de direita adotaram, é quase sua antípoda: o judeu comunista, que vai espalhar a revolução e o ateísmo. Nos dois casos é o internacionalismo o grande mal, em oposição à exaltação nacionalista. Os judeus disseminam o internacionalismo, o cosmopolitismo, a mistura. A narrativa oferecida pelos Protocolos dos Sábios do Sião – que se espalhou pela Europa depois de 1917 junto com a emigração russa provocada pela revolução – tornou-se popular tanto na esquerda quanto na direita. 

 

Do antijudaísmo ao antissemitismo

Observando a miscigenação das raças, em meados do século XIX, o francês Benedict Morel propôs uma distinção entre raças saudáveis e doentes. As doentes seriam aquelas cujas misturas provocavam a degeneração da raça – o que, de acordo com o darwinismo, faria essa raça fraca ser superada por outra mais evoluída, pela inexorável “lei do mais forte”. As raças saudáveis estariam no topo da escala evolutiva.

Era uma questão de interesse do Estado garantir a saúde de sua população. E, assim, ganhou força o conceito de eugenia, que preconizava a pureza das raças e condenava a miscigenação. No começo do século XX foi criada a Federação Internacional das Sociedades Eugênicas, reunida anualmente entre 1912 e 1932. Um de seus diretores, o psiquiatra suíço Ernst Rudin, foi diretor de prestigiosos institutos científicos de psiquiatria e de genealogia na Alemanha, logo convertendo-se num entusiasta do nazismo.

Se Arthur de Gobineau distinguia, entre os brancos, a raça pura ariana e a raça impura dos semitas, Houston Chamberlain relacionou nação e raça.  Os judeus (Homo judaeica, na sua denominação) seriam miscigenados, tendo o sangue misturado do “verdadeiro semita, o árabe beduíno, com o hitita ou sírio. Essa miscigenação teria resultado na reunião dos piores traços do primeiro, como o ‘nariz judaico’ e a atração pela usura, e dos segundos, como a inclinação anti-intelectual”. Chamberlain foi autor de muito prestígio entre intelectuais britânicos, mas emigrou para a Alemanha, onde se tornaria um dos faróis do pensamento nazista. O pensamento racial do século XIX concluiu que os judeus, mais do que seguidores de uma fé, eram um tronco da raça semita,  biologicamente distinta das raças ariana e caucasiana constitutivas dos europeus.

Para os grupos ultranacionalistas que se formaram na Alemanha nos anos 1920, a corrupção da raça germânica havia começado no governo do chanceler Otto von Bismarck, que deixou a porta aberta para o liberalismo, a democracia, o marxismo e as doenças hereditárias – ou seja, à modernidade, às quais frequentemente os judeus seriam relacionados. E como isso teria acontecido? Com a presença de estrangeiros, de judeus, da mestiçagem com as “raças inferiores”, agora muito mais próximas devido aos processos de industrialização e urbanização experimentados pela Alemanha. Para reverter tal decadência haveria que multiplicar a raça ariana e, para isso, casamentos “mestiços” deveriam ser proibidos, bem como a reprodução de sifilíticos, alcoólatras e criminosos, que deveriam ser isolados.

O eugenismo dos nazistas ajustava-se perfeitamente à teoria do espaço vital (Lebensraum), do geógrafo Friedrich Ratzel. O espaço vital era pensado em termos de área ocupada pela população, capaz de gerar riquezas que sustentassem a todos. Para os nazistas esse espaço era subaproveitado em prejuízo dos produtivos alemães quando ocupados pelas “raças degeneradas”. Era a natureza e a luta pela vida, afinal.

 

A banalidade da vida

Na Europa, as gerações que atravessaram a Primeira Guerra Mundial, nas trincheiras e fora delas, militares e civis, herdaram uma “ferida psíquica” profunda, provocada pela inimaginável destruição física e humana a qual todos haviam se consagrado. O homem vitoriano, orgulhoso da superioridade da raça branca e das conquistas científicas que o aproximavam do Criador, descobriu o poder de destruição das armas que inventara. A arte moderna que tanto desgostava a Hitler era uma expressão dessa ruptura e choque.

Olhando os escombros, só havia um vencedor: a morte. A morte aleatória, que reduzia os seres humanos à sua insignificância, ignorando riquezas, sobrenomes, nacionalidades. Em um mundo tão desigual, a morte, “grande niveladora”, passou a ser, de certo modo, cultuada. A filósofa Hannah Arendt considera, em Origens do Totalitarismo, ter havido “a perda radical do interesse do indivíduo em si mesmo, a indiferença cínica e enfastiada da morte” – eis o moto da “banalidade do mal”.

Essa “ferida psíquica” resultava do estremecimento dos pilares filosóficos e políticos que durante séculos sustentaram o Ocidente, baseados na busca pela estabilidade, pela permanência das coisas (leis, regimes, religiões). Em seu lugar, afirmavam-se as novas concepções de Charles Darwin e Karl Marx baseadas no evolucionismo – das espécies ou dos modos de produção. Nos dois casos, o presente era o resultado de um processo baseado em mudanças periódicas, que só fazem sentido vistas da perspectiva de longos períodos. Na dimensão de uma vida, contudo elas seriam imperceptíveis. Para os dois pensadores, cada fenômeno era apenas um degrau de um movimento ascendente. Para a filosofia positivista do século XIX, o progresso dava sentido à história humana e ele seria um caminhar para um futuro sempre melhor que o presente. Mesmo que às vezes houvesse alguma hecatombe – luta pela vida, revolução – era “natural” e parte da “evolução”.

 

O mito da “punhalada pelas costas”

Na Alemanha, a partir de 1917, as condições para a manutenção da guerra se tornaram cada vez mais difíceis. O governo alemão foi obrigado a emitir papel moeda, provocando inflação e empobrecendo ainda mais os trabalhadores e familiares de combatentes. A agitação grevista se espalhou, com alguns focos revolucionários no embalo dos acontecimentos na Rússia, onde os bolcheviques estavam tomando o poder. Tendo um império cada vez mais fragilizado, mas sem admitir pedir rendição, em 9 novembro de 1918 o kaiser Guilherme II renunciou e a república foi proclamada. O governo provisório foi encabeçado pelo SPD (Partido Social-Democrata Alemão, fundado por Friedrich Engels), que liderara as grandes greves e manifestações contra a guerra e, em meio à catástrofe, assumia a responsabilidade de negociar o Tratado de Versalhes.

Quando a bandeira branca foi levantada, as tropas alemãs estavam onde sempre estiveram: em território francês. Do ponto de vista clássico, o exército que ocupa o território inimigo, se não venceu, tem a vantagem. Por isso, o Estado-Maior alemão, bem como o governo recém-instalado, esperavam condições melhores para negociar. A situação anômala fez com que muitos alemães simplesmente não acreditassem na derrota, atribuindo o desenlace do conflito a maléficas conspirações.

Como em “O Crepúsculo dos Deuses” de Wagner, onde o protagonista Siegfried era apunhalado pelas costas, a Alemanha havia sido apunhalada por inimigos internos, começaram a dizer os militares. Os generais Paul von Hindenburg e Erich Ludendorff, chefes do Estado Maior, disseminaram amplamente a versão do complô. Ludendorff culpava abertamente comunistas, liberais, industriais e judeus por sabotarem o exército alemão, eximindo-se de qualquer responsabilidade pela derrota. A imprensa de direita chamava de “traidores de novembro” e “judeus”  os responsáveis pelos acordos.

Para completar a trama, parte das dívidas alemãs era com bancos de famílias de judeu-americanos com origens alemãs. Havia muitas casas bancárias com essa dupla origem, mas os já americanizados seguiram a política do seu país e, a partir de 1917, restringiram os créditos ao governo alemão, o que ajudou a agravar a situação do país. Para os ultranacionalistas, era uma prova que trazia o judeu banqueiro à cena do crime e ligava-o ao bolchevique judeu da retaguarda.

 

O Kaiser escreveu em suas memórias: “... após brilhantes quatro anos e meio de guerra com vitórias sem precedentes, ele (o Exército) foi forçado ao colapso pela punhalada nas costas da adaga dos revolucionários”

O Kaiser escreveu em suas memórias: “… após brilhantes quatro anos e meio de guerra com vitórias sem precedentes, ele (o Exército) foi forçado ao colapso pela punhalada nas costas da adaga dos revolucionários”.

 

A Constituição da República Alemã foi promulgada em 11 de agosto de 1919 na cidade de Weimar. Adotou-se o parlamentarismo com amplos poderes para o chanceler, mas dando ao chefe de Estado a decisão de guerra e, portanto, a autoridade sobre as Forças Armadas. Iniciava-se a era da República de Weimar, um período tão conturbado politicamente quanto rico culturalmente. Marcado por duas graves crises econômicas, polarização política e paramilitar, divisão das esquerdas entre social-democratas e comunistas, a república democrática não sobreviveu ao verdadeiro assalto ao poder promovido pelos nazistas.   

Ao chegarem ao poder, os nazistas erigiram o mito em história oficial, retratando a República de Weimar como o governo dos “criminosos de novembro” que “esfaquearam a nação pelas costas” para tomar o poder. A propaganda nazista mostrava Weimar como um pântano de corrupção, degeneração, humilhação nacional, perseguição impiedosa da “oposição nacional” honesta; 14 anos de domínio de judeus e bolcheviques finalmente encerrados pela chegada ao poder dos verdadeiros defensores da pátria.

 

A MARCHA RUMO AO GENOCÍDIO 

Como fenômeno histórico, Hitler foi um catalizador do sentimento antissemita preexistente na sociedade alemã. Ao expressar sua visão de mundo, ele encontrou uma narrativa capaz de criar empatia com boa parte da população alemã. Era uma combinação do antigo ódio religioso, ao qual ele recorreu diversas vezes (“ao me defender dos judeus, estou lutando pela defesa da obra do Senhor”), com o mito da “raça” que impulsionava o seu pensamento. Mas, sobretudo, Hitler entendia que o ódio era um sentimento poderoso. Ele disse “Para que o povo se torne livre precisa de orgulho e força de vontade, capacidade de desafiar, ódio, ódio e, mais uma vez, ódio”. Os judeus se tornaram o símbolo de tudo o que deveria ser odiado (Lukacs, p. 98).

Para o conjunto da sociedade, mesmo os que a princípio não gostavam do nazismo, os argumentos “científicos” tiveram um peso imenso, especialmente na adesão da elite intelectual e universitária alemã ao projeto nazista. Ninguém questionava a hierarquia racial, a “lei do mais forte” ou a lógica da eugenia. A suposta objetividade científica impediu que houvesse qualquer contraponto crítico. Coube a alguns líderes religiosos contestar a validade desses fundamentos brutais e falar em ética; muitos terminaram nos campos de concentração.

 

Destruindo a democracia por dentro

Em meio à forte agitação do pós-guerra, surgiu o Partido Nazista. Em fevereiro de 1920, em Munique, um pequeno grupo de artesão falidos e ex-combatentes se reuniu para fundar o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores da Alemanha. Seu programa afirmava, logo no início: “Só um membro da raça pode ser um cidadão. Um membro da raça é só aquele que possua sangue alemão, sem consideração de credo. Consequentemente nenhum judeu pode ser um membro da raça.”

Nos primeiros anos, os nazistas eram apenas mais uma entre outras correntes radicais sem grande apoio. Após a frustrada tentativa de golpe de Estado do “putsch da cervejaria de Munique”, em 1923, Hitler foi preso e usou o tempo na cadeia para escrever Minha Luta (Mein Kampf). Ali estavam as ideias sobre a raça ariana e a necessidade de restaurar a sua pureza, bem como a sua interpretação da “teoria do espaço vital”, que sugeria a conquista das terras da Rússia e, por extensão, a derrota dos “bolcheviques judeus”.

Convidado a assumir a chancelaria, em janeiro de 1933, no olho do furacão que varria a República de Weimar, Hitler pôs em execução seu plano, auxiliado pela sorte. Praticamente um mês após a sua nomeação como chefe de governo, na noite de 27 de fevereiro, o edifício do Reichstag (Parlamento), foi incendiado por um jovem operário holandês, Marinus van der Lubbe, que já tentara por fogo em outros prédios públicos. O Reichstag foi escolhido porque, para Marinus, era o símbolo do poder burguês: ele acreditava que seu ato destruidor desencadearia a tão desejada revolta contra a ordem estabelecida.

Pelo contrário, o que conseguiu foi dar aos nazistas uma “prova” da postura conspiratória da esquerda. No dia 28, Hitler pressionou o presidente Hindenburg a emitir um Decreto para a Proteção do Povo e do Estado que, na prática, suspendia direitos civis previstos na Constituição. Por essa via, o chefe de governo adquiria plenos poderes para restabelecer “a ordem nacional”, incluindo decidir penas de morte e criar campos de concentração. Imediatamente, o registro do Partido Comunista Alemão (KPD) foi cassado, bem como foram fechados os sindicatos e jornais ligados aos partidos de esquerda. 

Os nazistas sempre disseram que destruiriam a democracia por dentro, depois de conquistarem o poder legitimamente. Foi exatamente o que fizeram com a Lei para Sanar as Aflições do Povo e do Reich, de 24 de março de 1933.  Também conhecida como Lei de Concessão de Plenos Poderes, concedeu a Hitler o poder de outorgar leis. Essa lei marcou a revogação implícita da Constituição de Weimar e a institucionalização do Terceiro Reich. No seu artigo 5, previa-se que a lei “perde validade em 1 de abril de 1937, ou se o Governo do Reich for substituído por outro”. A lei, porém, foi renovada em 1937 e, uma vez mais, em 1941.

Os campos de concentração foram criados assim que os nazistas chegaram ao poder. Muito antes de mirarem os judeus, eram prisões em larga escala para reter o imenso contingente de esquerdistas e “indesejados” da raça ariana. Dachau, o primeiro campo, foi criado dois dias antes da votação da Lei de Plenos Poderes para Hitler, em 22 de março, para receber militantes e deputados comunistas e social-democratas.

Instalado numa fábrica de munições abandonada, a 16 quilômetros de Munique, Dachau recebeu, já no primeiro ano cerca de 4,8 mil prisioneiros, incluindo anarquistas, sindicalistas, jornalistas, deputados, religiosos e liberais. Em seguida, tornou-se parte das políticas eugenistas aplicadas pelo Terceiro Reich e recebeu ciganos, homossexuais, pessoas classificadas como “antissociais”, Testemunhas de Jeová, criminosos comuns. Muitos foram cobaias em experimentos científicos eugenistas. Com o início da guerra, muitos prisioneiros foram usados como mão de obra para a produção de armamentos. Por volta de 1944, cerca de 30 mil internados dedicavam-se quase exclusivamente à produção de armas e munições.

Vista aérea do campo de Dachau

Vista aérea do campo de Dachau

 

Pedagogia da superioridade

Hannah Arendt explica a diferença entre o Estado totalitário e o regime tirânico comum. As ditaduras constroem aparatos de segurança para eliminar os opositores políticos. O totalitarismo começa a se revelar exatamente no momento em que, não havendo mais oposição política interna, as estruturas policiais voltam-se contra diferentes setores da população que a propaganda governamental elege como “inimigo objetivo” (judeu, cigano, estrangeiro, comunista…). Já a anuência da população a tais proposições bárbaras seria resultado do esgarçamento do tecido social, decorrente de um período tão conturbado a ponto de romper as referências individuais e levar as pessoas a ansiarem pelo Líder em quem possam depositar sua lealdade e suas expectativas.

De fato, uma vez neutralizadas as forças políticas de esquerda, o discurso nazista retomou a sua obsessão de “pureza racial” e iniciou o processo de perseguição aos judeus. O discurso racial sobrepunha-se ao religioso e implicava em não reconhecer como cidadãos alemães os judeus convertidos ao cristianismo, mesmo que há gerações.  Cumpriam-se assim, dois objetivos: o constrangimento dos judeus para compeli-los a partirem da Alemanha e o que podemos chamar de exercícios de uma pedagogia da superioridade, na qual a desumanização das “raças inferiores” preparava os alemães para o domínio mundial.

O 1 de abril de 1933 inaugura o antissemitismo como política de Estado. Naquela data, integrantes da SA e outros apoiadores do Partido Nazista, incitados pelo ministro da Cultura e Propaganda, Joseph Goebbels, realizam um boicote aos estabelecimentos de proprietários judeus. Os manifestantes pintavam estrelas de Davi e frases antissemitas nas fachadas, conclamando os “verdadeiros alemães” a boicotar os que tramava calúnias contra a Alemanha, como as que vinham sendo publicadas pelos jornais estrangeiros.

Alemães em frente a uma loja de departamentos durante o boicote. No cartaz: “Alemães! Protejam-se! Não comprem de judeus!”

Alemães em frente a uma loja de departamentos durante o boicote. No cartaz: “Alemães! Protejam-se! Não comprem de judeus!”

Uma semana depois, veio a Lei para a Restauração do Serviço Público Profissional, uma norma que excluía os judeus dos cargos, entidades e associações públicas, alegando não serem confiáveis. A lei preparou a criação do “parágrafo ariano”, um trecho contratual aplicável apenas aos arianos. A raça tornava-se fonte de distinção e discriminação perante a lei.

No 25 de abril, a legislação nazista atingiu o sistema educacional. A Lei Contra a Superpopulação de Escolas e Universidades, elaborada pelo Departamento de Políticas Culturais, refletia, em tese, a preocupação com a criação de um “proletariado acadêmico” por conta das sucessivas crises econômicas e reservava um máximo de 5% das vagas para não-arianos.

A iniciativa discriminatória foi especialmente cruel para os jovens e crianças, privados do direito ao estudo e ao convívio social, empurrados para o interior de um gueto simbólico. Mesmo aqueles que mantiveram o direito de estudar dificilmente suportavam as agressões e humilhações promovidas pela Juventude Hitlerista e por professores sádicos que faziam questão de infernizar a vida dos estudantes. Em 1938, os poucos não-arianos que restavam matriculados foram definitivamente expulsos.

Em contrapartida, a juventude alemã educada sob intensa doutrinação racista incorporou os valores do Reich. Ainda em abril, a Associação de Estudantes Nazistas conclamou, novamente com apoio de Goebbels, uma ação nacional “contra o espírito antigermânico” que acabou num expurgo literário. Os estudantes apresentaram “doze teses” inspiradas em Lutero, defendendo a linguagem e cultura germânica “puras”. As “teses” atacavam o “intelectualismo judeu”, convocando as universidades a serem os centros da cultura ariana.

No 10 de maio ocorreu a queima pública de livros: cerca de 25 mil exemplares de autores como Bertolt Brecht, Karl Marx, Albert Einstein, Thomas Mann… Cena de uma plasticidade ao gosto dos nazistas: a grande fogueira purificadora (como na Inquisição) onde ardiam as obras dos “degenerados judeus”, com suas ideias cosmopolitas, liberais e modernas corruptoras da “verdadeira alma germânica”.

 

A “limpeza” da raça

Rudolf Hess, um alto dirigente do Partido Nazista, dizia que o nazismo era “biologia aplicada”. A Alemanha se tornou um Estado oficialmente eugenista com a promulgação da Lei para a Prevenção da Prole Hereditariamente Doentia, de julho de 1933. Escrita por um jurista, um médico e um psiquiatra líder do movimento de higiene racial, a lei conferia ao Estado o poder de esterilizar portadores de doenças que se supunham hereditárias. O foco eram os arianos, não os tidos como “indesejáveis”. “Um sistema judicial completo foi construído para decidir sobre pedidos de esterilização. Na base desse sistema encontravam-se as cortes eugênicas distritais, compostas por um juiz, um médico público e um médico especialista em eugenia indicado pelo Reich, que realizavam julgamentos secretos.” (Magnoli, p. 47)

O programa eugenista, conhecido como Ação T4, previa esterilizar os arianos que tivessem uma das seguintes doenças: demência, esquizofrenia, transtorno maníaco depressivo, epilepsia genética, doença de Huntington, cegueira hereditária, surdez hereditária, deformidade física severa e alcoolismo crônico. Nos homens, era feita a vasectomia; nas mulheres, laqueadura, um processo invasivo que gerou a morte de centenas delas.

Sob a inspiração do T4, o médico Josef Mengele, o “anjo da morte”, aplicaria nos prisioneiros de Auschwitz experimentos destinados a testar as teorias raciais nazistas

Sob a inspiração do T4, o médico Josef Mengele, o “anjo da morte”, aplicaria nos prisioneiros de Auschwitz experimentos destinados a testar as teorias raciais nazistas

Ensaio geral para o Holocausto, o T4 funcionou oficialmente entre 1939 e agosto de 1941, esterilizando 400 mil pessoas. No fim, criminosos comuns entraram na lista, vítimas da teoria lombrosiana que atribuía tendências hereditárias à criminalidade, além de negros, ciganos e judeus saudáveis, por serem quem eram.

Quando, em 1935, o governo nazista retomou a obrigatoriedade do alistamento militar, os Testemunha de Jeová recusaram-se a se alistar e foram mandados para os campos de concentração. Estima-se que cerca de 1,4 mil deles tenham morrido nos campos, enquanto outros 250 foram executados após sentenciados em tribunais militares.

Em 21 de maio de 1935 foi decretada a expulsão dos oficiais judeus das Forças Armadas. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, havia uma divergência entre setores militares e os nazistas sobre o tratamento dado aos judeus, uma vez que muitos deles haviam lutado bravamente ao lado dos alemães. Por isso, e devido à autonomia das Forças Armadas frente ao chanceler, oficiais judeus vinham sendo poupados de perseguições e perda de direitos. Todavia, após a morte de Hindenburg, em 2 de agosto de 1934, Hitler aproveitou para assumir a função de chefe de Estado, com a qual ganhava o desejado controle sobre os militares.

Expulsar os judeus foi só o primeiro passo. Em junho de 1935, os homossexuais entraram na mira da lei. Francamente hostilizados desde 1933, eles foram enviados para os campos de concentração. A homossexualidade masculina estava no Código Penal desde a época de Bismarck, no famoso parágrafo 175. Os nazistas revisaram o código tornando sua interpretação mais subjetiva. Dali em diante, cogitar ou contemplar um ato homossexual poderia ser tipificado como crime. Já a homossexualidade feminina era ignorada, exceto quando muito explícita.

Para os nazistas, tratava-se de uma questão demográfica: homossexuais não contribuiriam para o crescimento da população ariana (vital para um Estado que almeja a guerra). Havia também a condenação moral pela corrupção dos valores e cultura germânicos. Significativamente, os não-arianos não eram alvos dessa lei. Em outubro de 1936, Heinrich Himmler, líder das SS, formou o Escritório Central do Reich para o Combate da Homossexualidade e Aborto, destinado a encarcerar os acusados. Entre 1933 e 1945, quase cem mil homens foram autuados com base no parágrafo 175, dos quais cerca de 50 mil foram sentenciados à prisão, e algo entre 5 e 15 mil enviados a campos de concentração.

 

As Leis de Nuremberg

Após os primeiros ataques aos direitos de doentes e minorias religiosas e étnicas, em 1933, os nazistas aguardaram as reações. Atingidos por intensa propaganda e argumentos higienistas, as pessoas se habituaram à ideia de que “purificar” a raça era uma proposta científica e, provavelmente, a garantia de sobrevivência futura como povo. Com toda a oposição reprimida, ninguém ousava reagir abertamente.

Em 1934, uma disputa de poder dividindo o Partido Nazista entre hitleristas e strasseristas (seguidores de Gregor Strasser, líder dos “camisas pardas” da SA) culminou na Noite dos Longos Punhais, em 30 de junho, quando Strasser e vários de seus seguidores foram mortos. Sem liderança, os “camisas pardas” retomaram as agitações de rua meses depois, na onda do crescente descontentamento popular com o governo nazista.

“Durante os primeiros meses de 1935, a Gestapo, Serviço de Segurança, e outros agentes reportaram um aumento abrupto no descontentamento popular, à medida que as condições materiais permaneceram miseráveis, os níveis reais de desemprego mantiveram-se altos, os preços dos alimentos e outros artigos de primeira necessidade subiram agudamente e as pessoas cansaram das constantes demandas de aclamação, apoio e dinheiro do regime (…), e todos os esforços do Ministério da Propaganda para gerar entusiasmo popular pelo Terceiro Reich pareceram falhar.” (Evans, p. 607, II).

Então, mais uma vez, recorreu-se à carta do antissemitismo. Por todo o país, a hostilidade aos judeus voltou crescer, com faixas nas entradas das localidades nas quais se lia “judeus aqui por sua conta e risco” ou “judeus não são bem vindos”; ou a proibição de frequentar cinemas e concertos públicos. Os judeus eram o inimigo, fossem eles bolcheviques, banqueiros, intelectuais ou artistas. Tornou-se comum ver crianças “arianas” xingando os “indesejáveis” ou cuspindo neles. Bem mais tarde, já idosos, muitos recordaram que, de tanto martelarem as propagandas nazistas, os judeus pareciam-lhes, de fato, menos humanos, quase bestiais. Estava em curso a normalização da desumanização.

Os nazistas encontravam dificuldades em conquistar simpatias internacionais e, claro, atribuíam o problema à conspiração judaica mundial. Quando um grupo de estivadores em Nova York destruiu uma bandeira nazista houve forte reação na Alemanha, onde a notícia foi apresentada como um ataque geral à nação. Para piorar, em agosto de 1935, ocorreu o 7º Congresso da Internacional Comunista, em Moscou, no qual decidiu-se que a prioridade dos partidos comunistas seria formar Frentes Populares Antifascistas em todos os países.

Foi nesse ambiente hostil que os nazistas realizaram seu congresso anual, na cidade de Nuremberg, entre 9 e 15 de setembro. Irritado com a situação, Hitler decidiu radicalizar o enfrentamento. O Fuhrer estava convencido de que aquelas eram evidências da conspiração judaico-bolchevique e que chegara a hora de combatê-la. Para tanto, convocou uma reunião do Reichstag para o último dia do congresso, a fim de aprovar leis sobre cidadania, miscigenação e a bandeira alemã (a partir de então, oficialmente, a bandeira com a suástica).

São duas as Leis de Nuremberg: a Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemã e a Lei de Cidadania do Reich. A primeira proibiu o casamento entre arianos e judeus e, para evitar a “contaminação racial”, criminalizou qualquer relação sexual entre eles (daí a proibição do emprego de domésticas jovens em residências de judeus).

Já a Lei de Cidadania estabelecia critérios de sangue para decidir quem eram os arianos e, portanto, cidadãos. O problema era definir a quantidade de “sangue ariano” necessária no caso dos descendentes miscigenados, para definir se seriam considerados cidadãos ou não. A solução envolveu a determinação de graus de parentesco, pela elaboração de árvores genealógicas. Aplicada nos ambientes de trabalho, justiça e sindicatos, a lei serviu para excluir os judeus – e, claro, ao sabor das conveniências e circunstâncias locais, diversas outras minorias.

 

Os nazistas herdaram o compromisso de realizar os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim e resolveram aproveitar a ocasião para fazer boa figura para a imprensa estrangeira. Por isso as perseguições aos judeus arrefeceram, com ordens explícitas dos chefes nazistas para que as manifestações mais agressivas fossem contidas ou momentaneamente suspensas (como retirar as faixas nas entradas das cidades). Usando o melhor das tecnologias de cinema e da nascente televisão para registrar o triunfo ariano, os nazistas gravaram para a história tanto a vitória do negro americano Jesse Owens na prova do homem mais rápido do mundo, os 100 metros rasos, quanto a reação profundamente indignada de Hitler na tribuna de honra do estádio

Os nazistas herdaram o compromisso de realizar os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim e resolveram aproveitar a ocasião para fazer boa figura para a imprensa estrangeira. Por isso as perseguições aos judeus arrefeceram, com ordens explícitas dos chefes nazistas para que as manifestações mais agressivas fossem contidas ou momentaneamente suspensas (como retirar as faixas nas entradas das cidades). Usando o melhor das tecnologias de cinema e da nascente televisão para registrar o triunfo ariano, os nazistas gravaram para a história tanto a vitória do negro americano Jesse Owens na prova do homem mais rápido do mundo, os 100 metros rasos, quanto a reação profundamente indignada de Hitler na tribuna de honra do estádio

 

Exercícios de violência

A partir de 1936, as engrenagens da guerra começaram a se mover. A participação alemã na Guerra Civil Espanhola, em franca violação dos acordos do pós-guerra, sem que houvesse forte reação do Reino Unido e da França, foi interpretada por Hitler como sinal da decadência das “raças” cujo apogeu teria sido atingido na Grande Guerra. Embora os militares alertassem para a falta de tempo para preparar a logística adequada a um novo conflito, um Fuhrer confiante decidiu avançar. Pablo Picasso pintou “Guernica” em 1937, mas a mensagem não foi captada.

Depois de se aliar à Itália e ao Japão formando o Eixo, o Terceiro Reich reocupou a região da Renânia, desmilitarizada desde 1919, e o território dos Sudetos, que havia sido entregue à Tchecoslováquia. Em ambos os casos, a população local, de origem alemã, saudou a chegada dos nazistas. Em março de 1938 ocorreu o Anschluss – a anexação da Áustria à Alemanha. A chamada “política de apaziguamento” sustentada por franceses e britânicos evidenciou-se na Conferência de Munique, em setembro, quando os primeiros-ministros Edouard Daladier e Neville Chamberlain aceitaram o ultimato de Hitler sobre os Sudetos.

A guerra chegava a galope. Em março de 1939, o restante da Tchecoslováquia foi ocupado. Mas o golpe de mestre veio com a assinatura do Pacto Ribentropp- Molotov, de não-agressão entre Alemanha e URSS, seguido da invasão da Polônia em 1 de setembro de 1939, estopim da Segunda Guerra Mundial.

À medida que os fatos políticos externos se desenrolavam em velocidade acelerada, uma nova investida contra os judeus se iniciava. Com a diferença, para pior, de que a preocupação com a repercussão internacional desses atos também diminuía. O plano nazista era forçar os judeus a abandonarem a Alemanha, para que eles não pudessem sabotar o esforço de guerra novamente. O Serviço de Segurança da SS começou a discutir planos para detenção de todos os judeus, caso a guerra começasse. O sempre preciso Goebbels transcreveu em seu diário, em 25 de julho de 1938, uma conversa onde Hitler teria dito: “O importante é que os judeus sejam expulsos. Em dez anos devem estar fora da Alemanha.” (Evans, p. 649, II).

Ao mesmo tempo, Hitler pressionava pelo aumento na produção de armamentos. Junto com Hermann Goering, o responsável pela economia, começaram a olhar para o que restava de bens  pertencentes aos judeus. Estes, por sua vez, reduzidos à pobreza e ao desemprego, constituíam um contingente de trabalhadores que não podia ser desperdiçado, sobretudo para liberar os alemães para a guerra.

Em maio de 1938, o primeiro grupo de judeus submetidos a trabalho forçado foi enviado ao campo de Mauthausen, que se tornaria um dos maiores no uso de trabalho escravo para produção de armamentos e outros insumos de guerra. Nele, os prisioneiros morreram aos milhares, de fome, exaustão e toda a sorte de sadismos, incluindo a construção de uma escadaria para o nada. Em junho, um decreto de “arianização da economia” expropriou o que restava de indústrias em mãos de judeus. Agradava-se, assim, aos setores da classe média baixa que atribuíam a crise econômica aos interesses judeus, ao mesmo tempo em que riquezas transferiam-se de mãos e criavam-se novas elites exclusivamente arianas.

O Estado alemão, controlado pelo Partido Nazista, decidiu autocraticamente que milhares de cidadãos perderiam seus direitos por pertencerem a uma raça não apenas inferior, mas verdadeiramente inimiga. Os médicos judeus foram proibidos de tratarem pacientes arianos; depois, vieram as proibições para juristas, dentistas, veterinários e farmacêuticos. E, para que não ninguém fosse iludido, aquele que não tivesse um “nome judeu” deveria acrescentar Israel ou Sara ao nome.

Em 5 outubro de 1938, um fato muito grave passou despercebido: os passaportes dos judeus alemães foram revogados. Isso significava que eles não poderiam sair do país e, principalmente, retornar. A apatridia era o que se desenhava, um fenômeno que o mundo ainda não conhecia, ao menos naquela escala.

A emigração forçada de judeus poloneses que estavam na Alemanha deixou os pais do jovem Herschel Grynszpan sem casa onde morar. Ele, que vivia em Paris, decidiu se vingar matando a tiros Ernst vom Rath, um oficial subalterno da embaixada alemã. Goebbels logo percebeu a oportunidade e conclamou a nação alemã a vingar o sangue ariano derramado com o ataque às sinagogas (cerca de mil) e às propriedades de judeus por toda a Alemanha. Foi o que aconteceu na Noite dos Cristais, entre 9 e 10 de novembro de 1938.

Homens judeus aprisionados na Noite dos Cristais marcham em Berlim, sob a guarda das SS, para assistir à destruição de uma sinagoga, antes de serem deportados. Os que ficaram serão posteriormente submetidos ao holocausto.

Homens judeus aprisionados na Noite dos Cristais marcham em Berlim, sob a guarda das SS, para assistir à destruição de uma sinagoga, antes de serem deportados

Além da onda destruidora que os atingiu, os judeus ainda foram multados em um bilhão de marcos, para cobrir prejuízos causados por “provocarem a justa cólera alemã”. Naquela noite ocorreu a primeira detenção em massa de judeus. Entre 25 e 30 mil homens com idades entre 13 e 60 anos – isto é, todos que pareciam aptos a lutar – foram levados para campos de concentração por “comportamento antissocial”. “Sobretudo judeus de posse devem ser escolhidos”, orientava o ministro da Propaganda.

Em 3 de dezembro, um Decreto sobre a Utilização de Bens Judaicos ordenou a arianização de todos os negócios, permitindo ao Estado nomear curadores para completar o processo. Tais medidas eram apresentadas pelo governo e imprensa como “justas medidas punitivas pelo covarde assassinato de vom Rath”.

Em 21 de fevereiro de 1939, determinou-se que todo dinheiro vivo, títulos, bens e joias pertencentes a judeus deveriam ser depositados em uma conta especial, da qual só poderiam ser sacados mediante autorização do Reich. O processo de apropriação de bens alheios é um aspecto muito sombrio desse período, sobretudo porque criou um pacto de silêncio e negação onde se misturaram oportunismo, covardia e culpa.

Na mente dos nazista, tratava-se de neutralizar os judeus antes da deflagração da guerra, para que não se repetisse a tragédia da facada pelas costas. Mas isso não era tudo. Se houvesse um movimento internacional dos judeus para prejudicar a Alemanha novamente, sobretudo se os EUA entrassem na guerra, os judeus alemães sofreriam as consequências. A expulsão devia esperar, pois os judeus tinham uma serventia no interior das fronteiras doReich. “O terrorismo nazista agora havia adquirido uma dimensão adicional: a prática, na maior escala possível, da tomada de reféns” (Evans, p. 679, II).

 

A “SOLUÇÃO FINAL”

Com a invasão da Polônia, meio milhão de judeus sofreram subitamente a violência que fora experimentada na Alemanha nos últimos anos. Em suas correspondências e depoimentos, os jovens soldados invasores descrevem os judeus exatamente como a propaganda lhes ensinara a ver: gente miserável, suja, doente – subumanos. E, para que vissem certo, os judeus a partir dos seis anos foram obrigados a costurar a estrela amarela na manga. Nunca lhes ocorria que o que viam eram as consequência de seus atos. A violência da maioria das tropas era sádica e contava com o apoio e auxílio de incontáveis poloneses cristãos, cujo antissemitismo era bem conhecido. 

Em meados de setembro, antes de se lançar à Frente Ocidental, Hitler aprovou um plano de deportação a ser aplicado nos 12 meses seguintes. “Todos os judeus – mais de meio milhão – seriam deportados dos territórios incorporados junto com os restantes 30 mil ciganos e judeus de Praga e Viena e de outras partes do Reich e do Protetorado. Reinhard Heydrich, chefe das SS, disse que isso era um passo na direção da ‘solução final’, a ser mantida totalmente secreta, que era a remoção dos judeus da Alemanha e das zonas ocupadas a leste para uma reserva especialmente criada.” (Evans, p. 80, III).

A iniciativa não realizou-se exatamente como estava previsto, mas demonstrou que era possível deportar comunidades inteiras usando de eufemismos como “reassentamento”, “colônias” e “reservas autogovernadas”. No fim, o objetivo maior foi alcançado: as condições subumanas das viagens de deportação, associada ao abandono de centenas de pessoas em locais sem nenhuma estrutura, deixaram imenso número de mortos, justificáveis para o público mundial pela ação de “causas naturais” como inanição, frio e doenças.

Retomadas as terras perdidas em 1919, os nazistas iniciaram sua blietzkrieg na Frente Ocidental, no verão de 1940, ocupando a França e isolando o Reino Unido. O plano inicial de não lutar em duas frentes começou a fazer água em julho de 1941, quando a Alemanha, enroscada na Batalha da Inglaterra, rompeu o pacto com a URSS e abriu a Frente Oriental. Ocupando os países do leste europeu, os nazistas se deparavam com as comunidades judaicas que lá viviam desde o final da Idade Média. Isso significava que o número de “indesejáveis” a serem deportados ou eliminados crescia sem parar. Os nazistas planejaram criar uma grande reserva para os todos judeus em meio às planícies russas, especialmente com o início da invasão da URSS.

Enquanto isso, as SS criaram o Einsatzgruppen, uma espécie de esquadrão da morte destinado a matar os judeus. A tiros e explosões, eles eliminaram milhares de pessoas, como quando deixaram 13 mil vítimas no gueto de Minsk ou 10 mil no gueto de Riga, numa extensa lista de massacres. A intenção de usar os soldados regulares para fazer esse serviço, por sua vez, não apenas se mostrou insuficiente, como também contestável pelas regras militares. Isso porque muitos soldados reagiam negativamente às ordens de fuzilarem crianças, velhos, mulheres e homens rendidos e apavorados, para enterrá-los em valas comuns. A desordem era psíquica, atingindo o moral da tropa, e oficiais começaram a relatar cada vez mais casos aos superiores.

À falta de combinar com os russos, em dezembro de 1941 as tropas alemãs começaram a sofrer, pela primeira vez, a resistência efetiva de uma população e de um Estado dispostos a sobreviver. Para piorar, no dia 7 daquele mês a aviação japonesa bombardeou a base naval de Pearl Harbor, provocando a declaração dos EUA de guerra ao Eixo. A guerra em duas frentes, tão temida por Hitler, somava-se à mobilização hostil da maior potência industrial do mundo. Logo, a “solução final” adquiriria sua tradução definitiva.

Judeus aprisionados por soldados romenos e alemães no pogrom na cidade de Iasi (Romênia), um massacre que deixou mais de 13 mil mortos entre 29 de junho e 6 de julho de 1941. Parte da história do holocausto.

Judeus aprisionados por soldados romenos e alemães no pogrom na cidade de Iasi (Romênia), um massacre que deixou mais de 13 mil mortos entre 29 de junho e 6 de julho de 1941

 

A indústria da morte

A expressão “solução final” ganhou o sentido de extermínio meses mais tarde, quando se diluíram as esperanças de uma campanha rápida contra a URSS e Hitler redefiniu seus cálculos estratégicos. A guerra total se tornara incontornável e o Reich venceria ou desapareceria – mas, dessa vez, os judeus pereceriam junto. Os “judeus reféns” seriam ofertados em sacrifício ao deus da guerra e da loucura. Era o Holocausto.

Em janeiro 1942,  Reinhard Heydrich, o chefe da Gestapo, convocou uma reunião secreta nos arredores de Berlim entre lideres do partido e membros do governo. A Conferência de Wannsee discutiu a implantação da chamada “Solução Final para a Questão Judaica”: a adoção das câmaras de gás e fornos crematórios para realizar um extermínio massivo e organizado de todos os judeus. A partir de então passaram a existir dois tipos de campos: os de concentração, mais ligados ao trabalho forçado, e os de extermínio, consagrados à eliminação imediata dos prisioneiros.

O campo de Belzec, na Polônia, foi dos primeiros a ser aberto para a finalidade exterminista, junto com Sobibor, Treblinka e Auschwitz. O sistema de operação dos campos não criou nada de original; todos os procedimentos se baseavam em práticas administrativas e industriais amplamente empregadas. “O recém-chegado descia do trem pela manhã e, à tardinha, seu cadáver era queimado e suas roupas, empacotadas e armazenadas para serem expedidas à Alemanha” (Attali, p. 536).

 

Mapa de campos de concentração onde ocorreu o holocausto

Fonte: The US Holocaust Museum

 

No inverno de 1942/1943, os soviéticos venceram a Batalha de Stalingrado e, nos meses seguintes, os Aliados desembarcaram no sul da Itália. Em junho de 1944, tropas anglo-americanas realizaram o desembarque na Normandia (Dia D) abrindo a Frente Ocidental. No final de 1944 o território alemão começou a sofrer pesados ataques aéreos, enquanto o exército do Reich recuava em todas as frentes.

Conforme as tropas aliadas se aproximavam, as SS suspendiam as operações nos campos, realizando evacuações forçadas – chamadas “marchas da morte” – para impedir que os prisioneiros pudessem ser salvos, e também para não deixar testemunhos de seus crimes. Quando as tropas soviéticas chegaram a Auschwitz, no final de janeiro de 1945, o campo estava sem operar havia dois meses. Hitler se suicidou dia 30 de abril de 1945 e o Terceiro Reich se rendeu no dia 8 de maio.

Muitos estudiosos observam que, nos últimos meses do conflito, quando os recursos alemães já eram escassos, a prioridade de Hitler continuou a ser eliminar os judeus, mais do que vencer a guerra. Havia uma lógica sinistra por trás da loucura: da próxima vez, não existiriam judeus para atrapalhar a vitória da Alemanha. 

O rastro de destruição e morte foi de tal ordem que o Ocidente finalmente compreendeu os riscos das ideias raciais tão largamente difundidas desde o século anterior.

 

Novos paradigmas no Direito Internacional 

Em 1945, as potências vitoriosas decidiram criar um tribunal militar internacional, não por acaso na cidade de Nuremberg, para que os crimes cometidos pelas autoridades alemãs durante o período nazista fossem julgados. Os réus foram processados por crimes contra a paz, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Naquele momento, ainda não existia a figura do genocídio no Direito Internacional. No decorrer dos processos, as atrocidades cometidas pelo regime nazista vieram a público.

O tribunal se estendeu até 1949, mas foi no período entre 1945 e 1946 que os principais acusados estiveram no banco dos réus. Foram indiciados 24 líderes nazistas, dos quais um cometeu suicídio e outro foi considerado senil. Nos julgamentos, três foram absolvidos; quatro, condenados à prisão por períodos que variavam entre dez e vinte anos; três, condenados à prisão perpétua, e doze à morte por enforcamento.

Os últimos atos da Segunda Guerra Mundial aconteceram em 1948, no palco da recém-criada ONU:  a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecendo a primazia da pessoa humana sobre os poderes de Estado, e a votação da Assembleia- Geral pela criação do Estado de Israel. Ironia trágica, o nazismo gerou o cenário para aquilo que séculos de história não realizaram: a criação de uma pátria para os judeus.

 

SAIBA MAIS

  • ATTALI, Jacques. Os judeus, o dinheiro e o mundo. São Paulo: Editora Futura, 2003
  • BURRIN, Philippe. Hitler e os judeus: gênese de um genocídio. Porto Alegre: L&PM, 1990
  • EISNER, Will. O Complô: A História Secreta dos Protocolos dos Sábios de Sião. São Paulo: Companhia das Letras, 2006
  • EVANS, Richard J. O Terceiro Reich (3 volumes). São Paulo: Planeta, 2014
  • GRUNAU, Andrea. “Ciganos”, as outras grandes vítimas do genocídio nazista. (Deutsche Welle, 2/8/2021)
  • LUKACZ, John. O Hitler da História. Rio de Janeiro: Zahar, 1998
  • MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue. São Paulo: Contexto, 2009
  • REES, Laurence. O Holocausto: Uma Nova História. Vestígio, 2017
  • SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo: Companhia das Letras, 2018
  • Tribunal de Nuremberg (atas): International Military Tribunal (Nuremberg) (Apenas em inglês)
  • United States Holocaust Memorial Museum. Holocaust Encyclopedia
  • Arquitetura da destruição. Direção: Peter Cohen. 1989
    Documentário que retrata a visão de mundo nazista e as relações entre suas concepções estéticas e raciais. Todo o material audiovisual empregado no documentário foi produzido pelos nazistas e apenas selecionados e montados pelos diretor.
  • O Julgamento de Nuremberg (Legendado em português)
    Documentário com imagens de época .
  • Shoa. Direção: Claude Lanzmann. 1985
    Documentário francês baseado em depoimentos de vítimas e perpetradores do genocídio.

 

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