HAMAS, TERROR E RETRIBUIÇÃO

 

Demétrio Magnoli

16 de outubro de 2023

 

A BBC não classifica o Hamas – ou qualquer outro grupo – como terrorista, para conservar um padrão rígido de neutralidade jornalística. O governo brasileiro, que não é um jornal, recusou-se a associar a palavra terror à palavra Hamas mesmo depois dos bárbaros atentados do 7 de outubro que deixaram mais de mil israelenses mortos, em sua vasta maioria civis. A omissão atende a motivos ideológicos: um antigo tabu muito difundido entre correntes de esquerda.

A falência moral da esquerda que pisca um olho para o terrorismo tem gradações. No domingo, 8, a Times Square, em Nova York, foi palco de uma manifestação jubilante de apoio ao Hamas. O terror seria libertador – desde que dirigido contra Israel, os EUA ou, em geral, o “imperialismo”. Sob tal paradigma, celebra-se até mesmo o terrorismo praticado em nome do Islã. Mas a comemoração explícita da barbárie, um fenômeno periférico, não deve ocultar graus menos óbvios de acomodação.

Quarto de bebê com sangue na parede, em kibutz israelense atacado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023

A deputada Alexandria Ocasio-Cortez, notória liderança da esquerda do Partido Democrata nos EUA, não compareceu à manifestação da Times Square, convocada por integrantes de sua corrente e denunciou tanto seu “antissemitismo” quanto suas “intolerância e insensibilidade”. Contudo, numa curta nota de repúdio aos atentados do 7/10, ergueu a bandeira do “cessar-fogo imediato”.

Na sequência do ataque do Hamas, Lula da Silva, presidente do Brasil, soltou nota na qual condenava os atentados contra civis mas não mencionava a organização terrorista. Na terça, 10, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, repetiu Ocasio-Cortez, pedindo um “cessar-fogo imediato”. Naquele momento, as estruturas do Hamas permaneciam intactas e a organização terrorista mantinha mais de 200 reféns israelenses.

A solicitação, no contexto em que foi feita, equivale a negar a Israel o direito à autodefesa. Nenhuma nação no mundo se furtaria ao dever de golpear profundamente os terroristas. Entretanto, quando se trata de Israel, exige-se o impossível. Na raiz da exigência encontra-se a noção de que falta ao Estado judeu, por algum motivo, a mesma legitimidade dos demais Estados.

 

Uma lógica depravada

Publicou-se no Brasil, em março, um livro de Daud Abdullah sobre o Hamas. O autor, um scholar muçulmano britânico, opera há mais de uma década como propagandista do Hamas e foi um dos signatários da Declaração de Istambul, de 2009, que conclama a “Nação Muçulmana” a conduzir uma jihad armada contra Israel. A apresentação da edição brasileira do livro é assinada por Celso Amorim, assessor de Lula para assuntos internacionais. Nela, Amorim escreveu: “fiquei muito encorajado com as palavras finais do autor: ‘o Hamas pode desempenhar um papel central na restauração dos direitos palestinos’.”

Daud Abdullah, propagandista do Hamas

O Hamas sempre recorreu ao terror contra civis, explodindo homens-bomba em áreas públicas e lançando foguetes aleatoriamente contra centros urbanos israelenses. O 7/10, porém, representa um salto rumo ao mais elevado patamar do terror. Os militantes armados fuzilaram homens, mulheres e crianças à queima-roupa em povoados e nos kibutzim situados nos arredores da Faixa de Gaza. Uma jovem israelense, tomada como refém, foi exibida, seviciada e seminua, nas ruas de Gaza. Nada disso, porém, foi suficiente para convencer o governo brasileiro a condenar nominalmente o Hamas.

Amorim condenou retoricamente o terror do 7/10, para logo em seguida mencionar a ocupação israelense dos territórios palestinos, sugerindo motivações justas para um ato intolerável. Guilherme Boulos, candidato do Psol à prefeitura de São Paulo, seguiu a mesma linha, que funciona como discurso-padrão de significativas correntes de esquerda. Só que a conexão entre ocupação e terror é, política e historicamente, falsa.

A carta de fundação do Hamas e inúmeros documentos da organização deixam claro seu objetivo: a eliminação do Estado de Israel. O Hamas não luta pela desocupação dos territórios palestinos ou pela divisão da Terra Santa em dois Estados. Seus ataques com homens-bomba, na “segunda Intifada” (2000-2005), enterraram de vez o processo de paz deflagrado pelos Acordos de Oslo de 1993. O terror fundamentalista palestino não admite a existência da nação israelense, em nenhum traçado de fronteiras.

O discurso que conecta ocupação e terror organiza-se sobre uma lógica depravada e destina-se a absolver moralmente os terroristas, convertendo-os em parcela de um movimento progressista de libertação nacional da Palestina. A maioria dos palestinos da Faixa de Gaza, que vivem sob a ditadura violenta do Hamas, não cai nessa. Segundo a mais recente pesquisa do respeitado Jerusalem Media & Communication Centre, feita em 2022, a organização terrorista só contava com o apoio de cerca de 11% da população do território.

Vivian Silver, ativista israelense pelos direitos da mulher e pela paz

Vivian Silver, judia nascida no Canadá, imigrou para Israel em 1974, tornando-se uma ativista pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e pela paz com os palestinos. Viveu no kibutz Gezer até mudar-se para o kibutz Be’eri, quase no limite com a Faixa de Gaza, em 1990. Lá, ajudou a fundar um centro árabe-israelense e tornou-se voluntária no transporte de palestinos do território ocupado que buscavam atendimento médico em Jerusalém. Tudo indica que, no 7/10, ela foi tomada como refém pelos terroristas do Hamas. O terror palestino é a mais eficiente ferramenta do governo Netanyahu na sua permanente sabotagem de negociações com os palestinos.

 

Israel diante do direito humanitário

Israel retirou-se unilateralmente da Faixa de Gaza em 2005. Dois anos depois, o Hamas tomou o poder no território, expulsando a administração da Autoridade Palestina. Desde 2009, sob os diversos governos de Netanyahu, Israel adotou a estratégia da convivência violenta para afastar a possibilidade da paz com os palestinos.

Netanyahu estimulou a divisão dos palestinos em dois governos rivais e congelou as negociações. Por essa via, desmoralizou a Autoridade Palestina, que governa partes da Cisjordânia, e travou confrontos militares periódicos com o Hamas. A postura da organização terrorista que nega o direito à existência do Estado judeu funcionou como álibi político perene para a manutenção do status-quo.

São incontáveis as violações israelenses dos direitos humanos dos palestinos. A expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia realiza-se pela expropriação direta ou oculta dos palestinos. O bloqueio parcial da Faixa de Gaza, mantido desde 2007, colide com o direito humanitário internacional, que veta a punição coletiva de populações civis sob ocupação. O supremacismo judaico, que encontrou representação no Knesset (parlamento de Israel) e no atual governo de Netanyahu, ameaça retirar o direito de cidadania da população árabe-israelense.

Bem antes dos atentados de 7/10, Bezalel Smotrich, um dos fanáticos que ocupam pasta ministerial, advertiu os cidadãos árabes-israelenses com as seguintes palavras: “vocês estão aqui por engano, porque Ben-Gurion [primeiro chefe de governo israelense] não concluiu o serviço em 1948 e não os chutou para fora”. Depois dos atentados, ao som da guerra em Gaza, a ira da sociedade israelense e o extremismo das correntes organizadas em torno de Netanyahu formam um perigoso caldo de cultura.

A União Europeia conclamou o governo israelense a circunscrever sua ação militar aos limites do direito humanitário internacional. Joe Biden, presidente dos EUA, demorou mas, finalmente, chamou Israel a proceder segundo as “regras da guerra”. A retribuição precisa concentrar-se no Hamas, não espalhar-se na forma de uma retaliação contra a população civil da Faixa de Gaza. Ninguém conferiu ao Estado de Israel um passaporte para exterminar inocentes deliberadamente, promover bombardeios indiscriminados ou isolar por completo os 2,3 milhões de palestinos do território.

Fonte: Comissão Europeia

Na sexta, 13, Israel ordenou uma evacuação geral do norte da Faixa de Gaza, onde vivem 1,1 milhão de palestinos. A ONU denunciou o plano como crime de guerra, alertando que o deslocamento forçado deflagrará uma crise humanitária sem precedentes.

De acordo com as ordens, os palestinos que vivem ao norte do Wadi Gaza (um leito de rio temporário) deveriam deslocar-se para o sul, rumo à cidade de Khan Younis e seus arredores. As leis de guerra proíbem evacuações permanentes de civis, mas admitem evacuações temporárias de zonas de combate. Entretanto, tais deslocamentos precisam obedecer a considerações humanitárias. No caso, inexistem as condições mínimas para abrigar centenas de milhares de civis em Khan Younis, ainda mais no contexto do bloqueio de entrada de ajuda humanitária imposto por Israel.

O planejamento militar israelense enfrenta dilemas morais terríveis. A ordem de evacuação deriva do imperativo de assestar um golpe decisivo no Hamas e, ao mesmo tempo, minimizar as vítimas civis. Contudo, ela mesma pode se transformar num horrendo crime de guerra se não for acompanhada pela abertura de corredores humanitários no sul da Faixa de Gaza.  

Um massacre de civis inocentes em Gaza faz parte dos cálculos do Hamas. Serviria para oferecer uma cínica justificativa retroativa a seus atos de depravação, acender a fogueira do ódio entre os palestinos, interromper os acordos de reconhecimento de Israel pelos países árabes e enterrar, por mais uma geração, a chance de paz na Terra Santa. Israel não tem o direito de oferecer uma vitória dessas dimensões aos mensageiros da morte.

 

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