10 de junho de 2024
Os crimes de guerra cometidos pelo governo de Netanyahu em Gaza podem ser comparados aos atos bárbaros do Hamas em 7 de outubro de 2023? A resposta positiva veio de Karim Khan, o chefe da promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI), em 20 de maio, quando ele solicitou ordens de prisão para o primeiro-ministro de Israel, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e três líderes da organização terrorista palestina.
A solicitação de Khan não provocou surpresa, mas indignação – em Israel e nos EUA. Mesmo antes de uma decisão dos juízes do TPI, que podem ou não atender ao pedido do promotor, vozes do governo e da oposição israelenses reagiram furiosamente. A Casa Branca também a criticou, em termos duros. Pela primeira vez, o TPI dá um passo na direção de processar líderes eleitos de um país democrático.
Benjamin Netanyahu, o indiciado de mais alto perfil, é primeiro-ministro de Israel desde 2009, apenas com curta interrupção. Sua atual coalizão de governo, formada em dezembro de 2022, abrange supremacistas judaicos de extrema-direita e renega o compromisso israelense com a paz pela divisão da Terra Santa em dois Estados. Em 2023, patrocinou uma tentativa de reforma judicial destinada a subordinar a Corte Suprema à maioria parlamentar.
Netanyahu (esquerda) e Gallant
Gallant, o ministro da Defesa, antigo comandante do Comando Sul das Forças de Defesa de Israel (IDF), integra o Likud, partido de Netanyahu, mas tornou-se rival do primeiro-ministro ao manifestar oposição à reforma judicial. Por isso, em março de 2023, o chefe de governo anunciou sua demissão, revertida após uma onda de protestos sociais.
A rivalidade ganhou novos capítulos desde a deflagração da guerra em Gaza. Nos últimos meses, Gallant juntou-se ao coro de críticas ao primeiro-ministro, acusando-o de não oferecer um plano para o “day after” – ou seja, para a criação de uma administração árabe-palestina no território, após a eventual cessação das hostilidades. Não por acaso, o ministro da Defesa figura é alvo permanente da retórica incendiária dos supremacistas abrigados no gabinete de governo.
Os indiciados do Hamas estão entre as mais altas lideranças da organização terrorista. Yahya Sinwar, nascido em 1962 no campo de refugiados de Khan Younis, serviu pena de prisão em Israel entre 1989 e 2011, quando foi incluído numa troca de prisioneiros palestinos pelo soldado israelense Gilad Shalit. Escolhido como líder da organização em Gaza em 2017, emergiu como cérebro da barbárie de 7 de outubro.
Da esquerda para a direita, Sinwar, Haniyeh e Deif
Ismail Haniyeh, também nascido em 1962, mas no campo de refugiados de al-Shati, em Gaza, é o principal líder político do Hamas. Nas eleições palestinas de 2006, foi eleito primeiro-ministro, mas demitido no ano seguinte pelo presidente da Autoridade Palestina (AP), Mahmoud Abbas. Mesmo assim, no contexto do conflito entre a AP e o Hamas, continuou a operar como chefe de governo em Gaza até 2017, quando Sinwar o substituiu. Atualmente, Haniyeh vive no exílio, no Qatar.
Mohammed Deif, nascido em 1965 no campo de Khan Younis, é uma figura subterrânea, quase fantasmagórica, que lidera as Brigadas al-Qassam, o braço militar do Hamas. Seu nome integra a lista de “terroristas globais” do Departamento de Estado dos EUA e, ainda, a lista de terroristas criada pela União Europeia.
No horizonte previsível, são mínimas as probabilidades de que qualquer um dos cinco indiciados sente-se no banco de réus do TPI. Israel não é Estado-parte do tribunal, que só tem a prerrogativa de solicitar as prisões porque a AP aceitou a jurisdição do órgão multilateral e os crimes de guerra denunciados ocorreram em território palestino. Já o Hamas, que não é um Estado, mantém seus líderes na clandestinidade ou em países que rejeitam a jurisdição do TPI.
Contudo, como no caso da ordem de prisão emitida contra o presidente russo Vladimir Putin, o gesto de Khan tem impactos profundos na esfera política. E, nessa esfera, atinge Israel de modo muito mais contundente, pois o Hamas não tem compromissos com a ordem internacional baseada em regras.
Sede do Tribunal Penal Internacional, em Haia (Holanda)
A guerra conduzida por Israel em Gaza isolou internacionalmente o Estado judeu. As ondas de manifestações pró-Palestina nos EUA e na Europa moveram peças cruciais no tabuleiro político. Nações europeias como Noruega e Espanha reconheceram formalmente um Estado Palestino. A corte de Haia, da ONU, um órgão distinto do TPI, analisa ação sul-africana que acusa Israel de genocídio. Joe Biden, um presidente americano notoriamente pró-Israel, pressiona o governo Netanyahu a interromper as ações militares em Gaza. Nunca foi tão precária a posição diplomática do Estado de Israel, que arrisca converter-se em Estado-pária.
Se o corpo de juízes do TPI aceitar a requisição do promotor, Netanyahu experimentará a condição de Putin, ficando praticamente impedido de circular por países que acatam a jurisdição do tribunal e, portanto, têm a obrigação legal de prendê-lo. Um chefe de governo israelense incapaz de visitar a Europa perde as condições indispensáveis para o exercício de seu mandato. Ao contrário da Rússia, e justamente por ser uma democracia, Israel não tem o privilégio de ignorar o sistema de regras da ordem ocidental.
Khan nasceu na Escócia, de mãe britânica e pai paquistanês. Estudou Direito no King’s College, em Londres. É um muçulmano, da minoria religiosa Ahmadi, tradição fundada em 1889 por um indiano que seus seguidores consideram profeta. No Islã, muitos classificam os Ahmadi como blasfemos e o Paquistão, um Estado oficialmente islâmico, proibiu suas práticas religiosas. Segundo um depoimento do promotor, a perseguição religiosa o conduziu ao campo dos direitos humanos.
“Determinação” e “vigor” – Khan prometeu imbuir o TPI dessas qualidades ao assumir o posto de promotor-chefe, em 2021. O tribunal sofre críticas incessantes por ter concentrado seus indiciamentos em ditadores e senhores da guerra africanos. Segundo o promotor, a percepção de que a lei internacional é “aplicada seletivamente” arrisca implodir o TPI. Sob Khan, Putin juntou-se à coleção de alvos. Mas processar um chefe de governo israelense tem significado simbólico diferente: a corte estaria dizendo que democracias também cometem crimes abomináveis.
Karim Khan
O caminho jurídico do promotor circunda as acusações mais óbvias, ligadas aos bombardeios israelenses em áreas civis. O direito humanitário admite ataques “proporcionais” a escolas ou hospitais quando eles são utilizados como santuários por forças combatentes – e o Hamas, comprovadamente, emprega táticas desse tipo.
Por isso, na peça acusatória, Khan evita a armadilha da discussão sobre a “proporcionalidade” das ações israelenses. Também não menciona a acusação de genocídio, que exigiria provas de um plano estatal israelense destinado a eliminar a população de Gaza.
O núcleo da acusação contra Netanyahu e Gallant é o “uso da inanição como arma de guerra”. No início dos combates, Israel bloqueou inteiramente a entrada de água e alimentos em Gaza. À época, ministros israelenses, inclusive Gallant, tornaram explícita a intenção de impor um “cerco total” ao território palestino. A ajuda humanitária só acabou chegando a Gaza, e em quantidades insuficientes, depois que Israel teve que ceder às crescentes pressões internacionais.
O presidente americano Joe Biden qualificou como “ultrajante” a peça acusatória contra Israel. Talvez o adjetivo seja mais apropriadamente empregado para descrever a punição coletiva infligida pelas forças de Israel aos civis palestinos emparedados na Faixa de Gaza.
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