ISRAELENSES LUTAM PELA DEMOCRACIA

 

Demétrio Magnoli

31  de julho de 2023

 

Em Israel, é a democracia que está em jogo. A aprovação parlamentar da primeira etapa da reforma da Suprema Corte provocou a retomada do movimento social de resistência ao plano do governo de Benjamin Netanyahu. A oposição rejeita a cínica proposta de apaziguamento do primeiro-ministro. As centrais sindicais articulam uma greve geral. Os reservistas prometem não comparecer às suas unidades militares.

Na história de Israel, destacam-se dois marcos fundamentais. A guerra de 1948 assinalou a independência. A Guerra dos Seis Dias, em 1967, assinalou a ocupação dos territórios palestinos. Se o governo triunfar no embate em curso, 2023 será lembrado como o ano em que o Estado judeu renunciou ao sistema democrático em nome da tirania de uma maioria circunstancial.

 

Democracia e tirania

Todas as democracias precisam de um Judiciário independente e de um tribunal constitucional com a prerrogativa de derrubar atos de governo que ameaçam as instituições. Mas, nos sistemas parlamentaristas, como o de Israel, tal necessidade é  ainda mais aguda.

As democracias presidencialistas caracterizam-se pelo equilíbrio entre três poderes separados: Executivo, Legislativo e Judiciário. Os dois primeiros são partidários, enquanto o terceiro é não-partidário.

O sistema funciona por meio dos chamados freios e contrapesos (checks and balances). O Legislativo tem a prerrogativa de produzir leis e fiscalizar os atos do Executivo. O tribunal constitucional julga a legalidade dos atos do Executivo e do Legislativo. Mesmo nos casos em que o presidente eleito conta com maioria parlamentar, os juízes da corte suprema podem anular leis ou decretos que atentem contra a Constituição.

No parlamentarismo, porém, o gabinete de governo (Executivo) é uma emanação do Parlamento (Legislativo). Por definição, o governo dispõe de maioria parlamentar. Existem, portanto, apenas dois poderes: o Parlamento, partidário, e o Judiciário, não partidário. Sem um tribunal constitucional independente e com prerrogativas garantidas, a maioria governista poderia violar as leis, os direitos e as liberdades. É precisamente este o rumo adotado pelo governo de Netanyahu.

No sistema parlamentarista israelense, o presidente (chefe de Estado) é uma figura quase simbólica. Tem as funções de convidar o líder do partido mais votado a ocupar o cargo de primeiro-ministro e formar um gabinete, que será confirmado pelo Knesset, e de apontar os juízes da Suprema Corte, a partir de nomes escolhidos pelo Comitê de Seleção Judiciária. O poder concentra-se no parlamento (Knesset), que determina a composição do governo.

A Suprema Corte é constituída por 15 juízes. O poderoso Comitê de Seleção Judiciária, responsável pela submissão dos potenciais juízes ao presidente, compõe-se de três juízes da Suprema Corte, dois ministros do gabinete de governo, dois representantes do Knesset e dois da associação nacional de advogados.

São necessários sete votos, entre os nove integrantes do Comitê, para aprovar candidatos a juízes supremos. O mecanismo garante, desse modo, que os nomes escolhidos representem um amplo consenso entre políticos e juristas. Na etapa final da reforma planejada por Netanyahu, a composição do Comitê seria alterada, com a ampliação do peso dos políticos.

Israel, porém, como o Reino Unido, não tem uma Constituição escrita. Seu arcabouço jurídico repousa sobre a Lei Básica. Por isso, a Suprema Corte apoia-se no chamado “princípio da razoabilidade” para julgar atos do governo. O método possibilita anular atos que violam os fundamentos da igualdade perante a lei e os direitos de cidadania tradicionalmente reconhecidos.

A etapa inicial da reforma de Netanyahu, aprovada pelo Knesset em 24 de julho, restringe ao extremo a aplicação do “princípio da razoabilidade”. Na prática, a maioria parlamentar poderá fazer quase tudo. O nome disso é tirania de uma maioria circunstancial.

 

Democracia, tirania e cidadania

O gabinete de Netanyahu, cujo núcleo é o seu partido, o Likud, reúne uma coleção de partidos religiosos e de extrema-direita. Algumas de suas figuras situam-se nas franjas extremas do supremacismo judaico.

O ministro da Habitação e Construção, Yitzhak Goldknopf, é um fundamentalista religioso que liderou uma campanha para impedir a companhia aérea israelense El Al de voar aos sábados. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, é um supremacista que se opõe ao direito dos cidadãos árabes adquirirem casas. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, é um extremista que mantém na sua sala de visitas um retrato do terrorista Baruch Goldstein, condenado pelo atentado que matou 29 muçulmanos palestinos e feriu outros 125 numa mesquita de Hebron, em 1994.

Pátio interno da Suprema Corte de Israel, em Jerusalém

A ofensiva contra a Suprema Corte deriva de uma confluência de interesses. Netanyahu almeja interromper os processos judiciais sobre corrupção que o cercam há anos. Os fundamentalistas religiosos pretendem alargar as exceções legais que privilegiam judeus ultraortodoxos. Os supremacistas judaicos querem expandir os assentamentos nos territórios ocupados, anexar partes da Cisjordânia ocupada e, no limite, revogar a cidadania dos árabe-israelenses.

O último item evidencia mais uma singularidade de Israel. O país abrange uma significativa minoria nacional formada por palestinos, descendentes da população árabe que habitava o território enquadrado nas fronteiras do Estado judeu em 1949. A minoria árabe palestina somava 1,84 milhão de pessoas, segundo o censo de 2017, ou algo perto de 21% da população total. Essa população tem cidadania israelense e, ao menos em tese, direitos iguais aos judeus israelenses.

A Suprema Corte é a única instância capaz de assegurar os direitos legais da minoria de cidadãos árabes. A reforma do governo Netanyahu destina-se, no fim das contas, a destruir o escudo que protege tais direitos. Na direita dura de Israel, não faltam vozes que clamam pela cassação da cidadania dos árabes israelenses. Se concluir seu serviço, o governo abrirá as portas para uma regressão brutal: o surgimento, sobre as cinzas da democracia, de um Estado judaico teocrático. É contra isso que a sociedade israelense se mobiliza.   

 

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