A República Centro-Africana está em guerra civil há 10 anos. Pivô entre a África Equatorial e o Sahel, o país possui 5,5 milhões habitantes e uma área maior que França e Bélgica juntas. Conflitos nos vizinhos Chade, Sudão e República Democrática do Congo impactam a nação há décadas, mas o cenário de violência na República Centro-Africana irradia tensões para além de suas fronteiras.
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Em março de 2013, um conglomerado de milícias, a Seleka (“aliança”) tomou a capital, Bangui, e derrubou o general-presidente François Bozizé (2003-2013). Os rebeldes partiram do nordeste centro-africano, a região de Vakaga. O território costuma servir de retaguarda para movimentos armados do Chade e do Sudão, pois se localiza na tríplice-fronteira entre esses países. Lá habita uma parte da minoria muçulmana centro-africana, ressentida pela marginalização política.
Uma coalizão de milícias de autodefesa, a Anti-Balaka (“anti-machete”), expulsou a Seleka da capital em 2014. Em um país de maioria cristã, os Anti-Balaka adotaram o discurso anti-islâmico contra os rebeldes, e logo os dois grupos se digladiam em diversos movimentos armados. Para enfrentá-los, o presidente Faustin-Archange Touadéra, no poder desde 2017, aposta na parceria com Ruanda e nos mercenários russos do Grupo Wagner, inclusive para se manter no poder.
O número de refugiados oriundos da República Centro-Africana saltou de 122 mil em 2013 para 742 mil em abril de 2023, quase metade deles instalados no vizinho Camarões. Segundo o Acnur, de cada 100 mil habitantes do país, 13 mil eram refugiados em 2022. Ou seja, a 4ª maior proporção do mundo, atrás apenas da Síria, do Sudão do Sul e da Venezuela.
O número de deslocados internos chegou a 813 mil no primeiro ano da guerra civil. Voltou a atingir um pico de 750 mil depois das tensas eleições de 2020, no contexto pandêmico de fechamento de fronteiras. Caiu para 488 mil em abril de 2023, um dado ainda muito grave, mas o país sofre com outro deslocamento populacional de médio prazo que tem sido um ingrediente a mais na guerra civil.
A savana da República Centro-Africana atrai criadores de gado transumantes dos países vizinhos, como os fula de Camarões, predominantemente muçulmanos. Por conta das secas no Sahel, seus rebanhos tem atravessado todo o país nas últimas décadas, chegando até o Congo-RDC. Atacados pelas milícias cristãs Anti-Balaka, uma fração dos fula criou um movimento armado em 2015, o “3R” (sigla de “Retour, Réclamation et Réhabilitation”), também acusado de violações aos direitos humanos pela organização HRW. Contudo, as tensões entre esses grupos possuem raízes mais antigas.
Uma mesquita destruída após o ataque coordenado contra muçulmanos, o conflito conhecido como Batalha de Bangui
A República Centro-Africana se ergueu sobre os limites da antiga colônia francesa de Ubangui-Chari, no divisor de águas entre as bacias do Lago Chade e do Congo. A região sofria com as razias escravizadoras organizadas por reinos islâmicos no século XIX, vindas do Sahel e do vale do Nilo, varrendo o planalto que separa os rios Ubangui, tributário do Congo, e o Chari, afluente do Lago Chade. Uma das consequências desse processo secular é um país de densidade demográfica baixa até hoje e um ressentimento ainda presente em relação aos muçulmanos.
A chegada dos franceses cortou os últimos laços do tráfico de escravos, mas trouxe os horrores da colonização. Ubangui-Chari tornou-se parte da periferia da África Equatorial Francesa (AEF). Concessões privadas foram distribuídas pela metrópole, inspiradas no Congo de Leopoldo II, rei belga. A brutalidade do sistema foi denunciada pelo escritor francês André Gide em seu Viagens ao Congo (1927) e inspirou rebeliões como a Kongo-Wara (1928-1931).
Na ordem dos pós-Segunda Guerra, baseada na Carta dos Direitos Humanos da ONU e no principio da auto-determinação dos povos, o ex-padre Barthélemy Boganda foi o principal líder de Ubangui-Chari na luta pela descolonização. Orientado pelo panafricanismo, Boganda defendia que a África Equatorial Francesa não se fragmentasse, e chegou a sonhar com os Estados Unidos da África Latina, englobando o Congo Belga e Angola. Ubangui-Chari se tornou independente em 1960, com o nome de República Centro-Africana, pondo fim à miragem panafricana de Boganda, que morreu em 1959, em um acidente aéreo. Ele também não viu as lideranças africanas escolherem a manutenção das fronteiras desenhadas pelo imperialismo, em 1963, na Conferência de Casablanca.
A história da República Centro-Africana independente foi marcada por ditaduras sucessivas. David Dacko (1960-1966), primo de Boganda, instituiu um partido-único, o MESAN – Movimento pela Evolução Social da África Negra. Ele foi derrubado pelo chefe das forças armadas, Jean-Bédel Bokassa (1966-1979). O novo ditador se declarou “presidente vitalício” em 1972 e instituiu o Império Centro-Africano, em 1976, fazendo-se coroar como Bokassa I.
A velha França fazia vista grossa para a tirania de Bokassa em troca de manter bases militares em Bouar e Bangui, a capital. Mobutu Sese Seko (1965-1997), ditador no vizinho Congo-Zaire, era um dos principais aliados do excêntrico imperador. Em janeiro de 1979, Bokassa decretou que todos os estudantes universitários e secundaristas deveriam comprar uniformes da empresa da imperatriz. Protestos contra a decisão foram reprimidos com o auxílio de tropas do Zaire. Até que veio o pior.
Em abril de 1979, a Guarda Imperial matou mais de 100 estudantes secundaristas na prisão Ngaragba, na capital, a maioria entre 12 e 16 anos. O massacre ganhou repercussão global, inclusive pelas denúncias da Anistia Internacional. Pressionada, a França apoiou um golpe de Estado que derrubou Bokassa em setembro. Mas o ciclo de governos militares não parou por aí, logo veio a ditadura do general André Kolingba (1981-1993) e o multipartidarismo foi restabelecido apenas em 1991.
O primeiro presidente eleitos com a redemocratização, Ange-Félix Patassé (1993-2003), degradou o processo de organização política do país com corrupção e autoritarismo. Enquanto isso a França retirou suas bases da República Centro-Africana para reforçar suas posições em N’Djamena, no Chade do amigo Idriss Déby (1991-2021). Aliado de primeira hora dos franceses, Déby apoiou militarmente o golpe de Estado que levou ao poder o general François Bozizé (2003-2013). O líder chadiano queria um aliado regional em meio às suas rivalidades com o sudanês Omar al-Bashir (1989-2019).
Bozizé tornou rarefeita a autoridade do Estado, principalmente nas fronteiras. Atrofiou o exército com receio de novos motins, e aprofundou a marginalização do nordeste muçulmano. Descontentes, os grupos rebeldes que se levantaram contra o general na Primeira Guerra Civil Centro-Africana (2004-2008) formaram a coalizão Seleka em dezembro de 2012, dando início à guerra civil atual.
Na marcha para a conquista da capital, em 2013, integrantes da Seleka destruíram e pilharam vilarejos, executaram civis e cometeram estupros. Mas atrocidades praticadas pelas milícias Anti-Balaka, visando principalmente às comunidades muçulmanas também foram registradas. Executaram centenas de civis e incendiaram inúmeras moradias.
Em 2014, o Tribunal Penal Internacional iniciou uma investigação sobre os graves crimes cometidos no país desde 2012. Dez anos mais tarde, o órgão emitiu um mandado de prisão contra Nouredinne Adam, vice-líder da Seleka, por crimes contra a humanidade, de guerra e atos de tortura. Em 2018 um Tribunal Penal Especial foi instalado na capital, Bangui, reunindo procuradores nacionais e internacionais para investigar crimes cometidos desde 2003.
A França lançou a Operação Sangaris (2013-2016), sob mandato das Nações Unidas, para intervir na guerra civil centro-africana. Contudo, os franceses resolveram abandonar a iniciativa para concentrar suas forças na Operação Barkhane (2014-2022), no Sahel. Touadéra, o atual governante, imediatamente se voltou para Rússia em busca de novas parcerias militares, enquanto buscava diminuir a importância da Minusca, a missão de paz da ONU no país desde 2014.
Mais uma porta se abria para a entrada de forças do Grupo Wagner em um país africano. Quando Yevgeny Prigozhin – formalmente o patrão das forças de segurança privadas que integram o Grupo Wagner – ainda era um nome desconhecido para o mundo, mas muito familiar para Vladimir Putin.
A tentativa de descobrir o que estava acontecendo custou a vida de três jornalistas russos Orkhan Dzhemal, Alexander Rastorguyev e Kirill Radchenko. Os três viajaram para a RCA em julho de 2018, com o objetivo de investigar a atuação de mercenários russos no país e produzir um documentário, dias depois foram assassinados. Investigações conduzidas pelo governo local falam em assalto na estrada, explicação aceita por Moscou. Investigações de outros jornalistas indicam homens que falavam árabe, com direção dos russos, de acordo com artigo publicado pela Human Rights Watch.
O russo Vladimir Putin e o presidente centro-africano Faustin-Archange Touadéra (2017-atual), na Cúpula Rússia-África, em Sotchi, 2019.
Em 2020, os mercenários russos, com apoio de soldados de Ruanda salvaram Touadéra de uma tentativa de golpe do general François Bozizé, aquele derrubado em 2013. Em 2021, foi a vez de um relatório das Nações Unidas apontar a participação de forças combatentes privadas russas – ou seja, o Grupo Wagner – em execuções extrajudiciais, desaparecimentos e atos de tortura na República Centro-Africana.
Enquanto Touadéra sonha com um terceiro mandato – o que é ilegal segundo a Constituição aprovada em 2015 -, os responsáveis pelos assassinatos continuam desconhecidos e sem punição, assim como boa parte dos horrores cometidos em território centro-africano na última década.
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