O JIHADISMO ESPARRAMA-SE PELO SAHEL

 

Demétrio Magnoli

29 de agosto de 2022

 

O jihadismo venceu. Os últimos soldados franceses abandonaram o Mali em meados de agosto, colocando um ponto final numa operação militar fracassada de nove anos. Em extensas áreas da região africana do Sahel, civis vivem à sombra da violência do jihadismo.

Forças francesas no sul do Mali, em 2016

No início, tudo indicava sucesso. Em janeiro de 2013, forças francesas chegaram ao Mali e interromperam o avanço de separatistas do norte aliados com jihadistas que avançavam rumo à capital, Bamako. Rapidamente, os insurgentes foram expulsos das cidades de Timbuktu e Gao. O plano francês era treinar tropas locais, capacitando-as a derrotar os rebeldes.

Não funcionou. Ao longo dos anos, as milícias jihadistas espalharam-se pelo país e saltaram as fronteiras, deitando raízes no Níger e em Burkina Faso.

A Operação Serval, na antiga colônia do Mali, expandiu-se em agosto de 2014, quando foi sucedida pela Operação Barkhane, de contraterrorismo no Sahel, abrangendo, além do Mali, o Níger e o Chade, que também fizeram parte do império francês na África.

Na origem, 3 mil soldados foram enviados ao Sahel. Em 2020, após um longo ciclo de ataques dos insurgentes, o contingente francês chegou a 5,1 mil soldados. Adicionalmente, 15 mil “capacetes azuis” da ONU operam no Mali.

 

Fontes do jihadismo no Sahel

A crise no Sahel começou como um subproduto da queda da ditadura de Muhammar Kadhafi na Líbia, em 2011, e da subsequente guerra civil no país da África do Norte. O retorno ao Mali de soldados mercenários contratados pelo antigo ditador líbio deflagrou uma insurgência de separatistas tuaregues que foi explorada pelos jihadistas.

Os tuaregues são bérberes que habitam o deserto do Saara e partes do anel semi-árido do Sahel. A revolta tuaregue propiciou o crescimento de milícias associadas à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico que logo tornaram-se o núcleo das forças insurgentes.

No Mali, no Níger e em Burkina Faso operam o grupo Estado Islâmico no Grande Saara (ISGS) e o Jamaat Nusrat (JNIM), uma milícia ligada à Al-Qaeda. Além deles, no Níger, instalou-se um grupo conectado ao Boko Haram nigeriano. Em Burkina Faso, atua também uma organização jihadista autônoma, o Ansaroul Islam (AI).

A força dos jihadistas decorre, em linha direta, da indisciplina e da corrupção dos exércitos nacionais. Massacres e pilhagens cometidos pelas tropas oficiais nos povoados do Sahel facilitaram o recrutamento de milicianos jihadistas. Colhidos entre os dois fogos, os civis tornaram-se vítimas de um ciclo de violência que cresce incessantemente.

A violência jihadista esparrama-se pelo Sahel

Fonte: The Economist, 19/8/2022

Os exércitos locais treinados pelos franceses transformaram-se em forças políticas fora do controle civil. No Mali, golpes de Estado sucessivos, em 2020 e 2021, instalaram um regime militar. Em janeiro de 2022, os militares depuseram o governo civil de Burkina Faso.

As mortes de civis decorrentes da violência política cresceram geometricamente. No início da Operação Barkhane, as vítimas fatais contavam-se, anualmente, às dezenas; em 2018, ultrapassaram o milhar; de lá para cá, são mais de 2 mil por ano.

 

“Fracasso de todos nós”

Fonte: The Economist, 19/8/2022

A intervenção francesa chegou a uma encruzilhada no início deste ano, quando a junta militar do Mali apelou à proteção de mercenários do Grupo Wagner, que funciona como um braço informal do governo russo, e expulsou o embaixador francês. “Não podemos continuar militarmente engajados ao lado de governos de facto cujas estratégias e objetivos ocultos não compartilhamos”, declarou o presidente francês Emmanuel Macron.

O desenlace desenhava-se há anos. As mortes de dezenas de soldados franceses em nada contribuíram para a popularidade da intervenção. Em março de 2021, numa entrevista a veículos franceses, o presidente eleito do Níger, Mohamed Bazoum, qualificou a intervenção da potência europeia como um “relativo fracasso”, admitindo simultaneamente que se tratava de “um fracasso de todos nós”.

Bazoum fala de um lugar privilegiado, que é a sede do governo, em Niamei. O “fracasso de todos nós” tem significado muito mais nítido para as multidões de deslocados internos e refugiados que vivem em campos precários nos três países sahelianos. São mais de 600 mil no Níger e de 400 mil no Mali – e quase 2 milhões, ou perto de 10% da população, em Burkina Faso.

Em abril, o Grupo Wagner enterrou corpos de vítimas de suas ações nos arredores de uma base militar francesa no Mali e acusou as forças francesas pelo massacre. O regime de Vladimir Putin, engajado na guerra de agressão na Ucrânia, dava o golpe definitivo na Operação Barkhane.

Daí, não havia mais retorno. Florence Parly, ministro da Defesa francês, explicou a decisão de retirada apontando a presença do Grupo Wagner: “não podemos coabitar com mercenários”. A retirada francesa não inclui o Níger, onde permanecerá um pequeno contingente de soldados e, crucialmente, uma pequena força aérea capaz de proteger as principais cidades. No Mali, restam os “capacetes azuis” da ONU, engajados numa missão cada vez mais perigosa.

Família em campo de deslocados internos em Sévaré (Mali), em fevereiro de 2020

 

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