UGANDA: HOMOFOBIA EM NOME DA SOBERANIA

 

Rafael Pepe Romano

(Bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)
3 de abril de 2023

 

“Some ugandans are gay. Get over it!”. Um rapaz carregava essa frase no seu rosto durante a Parada do Orgulho, em Entebbe, antiga capital de Uganda. “Há ugandeses que são gays. Supere!”. Angústia e tristeza expressas naquele rosto diziam respeito a uma sociedade civil que procura meios de respirar e existir.

Museweni_Uganda

Durante a pandemia de Covid-19, o presidente Museveni aproveitou o isolamento das pessoas para atacar a comunidade LGBT, à qual ele se refere como desviados

“Nosso Deus criador está feliz com o que está acontecendo. Eu apoio o projeto de lei para proteger o futuro de nossos filhos. Trata-se da soberania de nossa nação; ninguém deve nos chantagear nem nos intimidar”, disse o deputado David Bahati, do partido Movimento de Resistência Nacional em sessão no parlamento de Uganda, em 21 de março, que aprovou um “pacote anti-LGBT”.

Em Uganda, relações afetivas com pessoas do mesmo gênero podem resultar em prisão por até dez anos. Piorou: a partir de agora, identificar-se como parte da comunidade LGBT e exercer livremente a própria sexualidade pode levar à prisão perpétua e até à pena de morte. Em 2014, o parlamento havia tentado aprovar uma lei nos mesmos moldes, mas ela foi declarada inconstitucional pela última instância da justiça ugandesa. 

“Ganha o sim”, anunciou Annet Anita Among, presidente do parlamento nacional. Dos 389 deputados, apenas dois votaram contra. Ela ainda destacou que a lei foi aprovada em tempo recorde. Veio a comemoração: “Esta Câmara não hesitará em restringir qualquer direito na medida em que reconheça, proteja e salvaguarde a soberania deste país e sua moral”, concluiu Among.

Nação, moral e soberania… essas palavras tornaram-se perigosamente associadas nesse início de século. Elas costumam ser invocadas por um novo tipo de discurso de intolerância: aquele que pauta a direita mais conservadora e se baseia na defesa da “tradição”.   

 

Uma história de violências 

Antes de ser uma “democracia não-partidária”, Uganda foi, a partir de 1890, um protetorado britânico criado para assegurar ao Império o controle sobre as nascentes do Nilo Branco e, por extensão, sobre todo o curso do Nilo. 

De relevo acidentado, vales extensos e profundos, o sul do território era caracterizado pelo domínio de reinos centralizados, como é o caso de Buganda, cujas elites foram privilegiadas pelos britânicos na montagem da máquina administrativa colonial. Já as populações na parte norte foram obrigadas a aceitar a subordinação com base na força militar. Essa foi a raiz do sangrento conflito étnico que explodiu em 1962, quando da independência de Uganda: as disputas norte/sul passaram a definir a política do Estado que acabava de nascer.

O acordo que conformou o novo país era inusitado: tratava-se de uma monarquia federal e parlamentar, que conferia a Mutesa II, o kabaka (rei) de Buganda, representante dos reinos do sul, o cargo de presidente do país. O sistema esgotou-se em 1966, quando o primeiro-ministro Milton Obote, eleito com a promessa de governar em nome dos interesses do norte, depôs o kabaka e aboliu as autonomias locais, além de reprimir violentamente os oposicionistas que se manifestaram.

Cinco anos depois, em 1971, o próprio Obote experimentou a deposição no golpe militar desferido por Idi Amin Dada, que assumiu as rédeas do governo por oito anos. Ele foi um dos ditadores mais brutais da história africana pós-colonial. Praticou deportações em massa e extermínios motivados por ódio étnico. Deixou pilhas de cadáveres: as estimativas são desencontradas, mas não ficam abaixo dos 200 mil. A brutalidade e a violação sistemática dos direitos humanos delinearam as feições de um regime perverso.

Amin errou os cálculos dois anos depois de se autodeclarar presidente vitalício. Em 1978, resolveu abrir um conflito armado com a vizinha Tanzânia, aliada do exército de ugandeses dissidentes. A ação desastrada do ditador fez com que as tropas rebeldes alcançassem Kampala, capital do país, em abril de 1979. Amin fugiu para a Líbia e foi acolhido pelo ditador Muammar Kadhafi, seu aliado do início ao fim.

Mapa Uganda e vizinhos

 

Ditadores de ontem e hoje

Meses de disputa entre diversos grupos armados se desenrolaram até o final de 1980, quando Obote retomou o poder em meio a uma eleição repleta de irregularidades e denúncias contundentes de fraude. Ele tinha o apoio de Julius Nyerere, presidente da Tanzânia, um trunfo político para o chefe de um Estado que acabara de perder um conflito armado para o seu vizinho. Isso fortaleceria a sua perspectiva de estabilidade no poder.

Para reforçar o seu capital político, Obote alimentou o ódio étnico no país. O conflito permanente resultou em uma insurreição armada liderada pelo jovem Yoweri Museveni e o seu Exército de Resistência Popular, que justificou uma repressão brutal. Até que em junho de 1985 um golpe militar finalmente conseguiu depor Obote.

O Estado colapsava enquanto surgia o Movimento de Resistência Nacional (MRN), força política que, gradativamente, tomou o controle do território ugandês. Como organização política, surgiu a partir da fusão de três grupos armados: os Combatentes da Liberdade de Uganda, o Exército de Resistência Popular e o Movimento Patriótico de Uganda. 

Com o tempo, o MRN incorporou o atual discurso político que associa as cobranças por democracia e direitos humanos a intervenções imperialistas enquanto se tornava cada vez mais ultranacionalista e ultraconservador. Parece contraditório o fato de que a coesão do Estado-Nação recém nascido apenas pôde se firmar por meio desse partido-milícia, centralizada na figura de um único líder, Museveni, no poder desde 1986.

 

A pauta comportamental como instrumento político 

Uganda é uma fortaleza conservadora e religiosa e sempre cultivou intolerância à homossexualidade. No último censo demográfico, realizado em 2014, 82% da população se declarou cristã, sendo 39% católicos, 32% anglicanos e 11% evangélicos. As organizações locais de defesa dos direitos humanos denunciam que crimes de ódio contra a comunidade gay são rotineiros. Os casos não são notificados à polícia por razões óbvias.

O arcabouço legal do país, de fato, carrega a herança das leis coloniais britânicas. Esse é um dado importante, mas não revela a inteireza do problema. Segundo levantamento da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), relações gays consensuais são criminalizadas em mais de 30 dos 54 países do continente africano. A África abriga 46% das nações do mundo que têm a homofobia institucionalizada.

Chamou a atenção a declaração do ditador Museveni pouco antes da aprovação do pacote “anti-LGBT”, dizendo que o Ocidente está obrigando outros países a “normalizar desvios”. “Os países ocidentais devem parar de desperdiçar o tempo da humanidade tentando impor suas práticas a outras pessoas. Homossexuais são desvios do normal. Por que? Precisamos de uma opinião médica sobre isso”, disse em um discurso televisionado para todo o país. A pergunta para a qual ele parece não ter resposta acende um alerta. 

Nesse mesmo Ocidente descrito por Museveni, a ascensão de novos fascismos, que se expressa pela multiplicação das forças de extrema-direita, revela as enormes contradições que têm se manifestado com mais intensidade na atividade política das democracias. São dilemas profundos que expõem as fragmentações sociais complexas dos nossos tempos.

Giogia Meloni em comício do Vox, Sevilha

Em 2021, Giorgia Meloni gritou contra o “lobby LGBT” e exaltou a “família tradicional” em um comício do partido de extrema-direita espanhol Vox 

A “pauta comportamental” é um ponto comum entre os diferentes projetos autoritários que vão de Donald Trump a Vladimir Putin, sem deixar de lado o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro e expoentes da direita nacionalista europeia como o húngaro Viktor Orban, o polonês Andrzej Duda e a italiana Giorgia Meloni. O governo da Itália, por exemplo, se empenha em impedir o registro civil de crianças que são filhas de casais do mesmo sexo. Recentemente, um parlamentar do partido pós-fascista Irmãos da Itália, do qual Meloni é líder, declarou que “gays estão se fazendo passar por pais”. O que, para ele, é um desvio.

O recorrente termo “desvio” torna-se, nesses discursos, um substantivo comum das agendas voltadas à supressão de direitos, sobretudo relativos ao gênero e à sexualidade. É também o elemento de uma narrativa a ser descortinada. O filósofo francês Michel Foucault  fez contribuições importantes sobre o assunto, ao considerar que a sexualidade é um comutador que nenhum sistema moderno de poder pode dispensar. A sexualidade não é o que o poder teme, mas aquilo que se usa para seu exercício: o controle sobre afetos, desejos e pulsões.

 

A universalidade do gênero humano

A questão do comportamento individual” é, no entendimento dos nacionalistas ultraconservadores, indissociável do esforço pela conservação da identidade. A “família tradicional” seria a célula base da sociedade, a única capaz de reproduzir determinada cultura, de modo a garantir que o poder e a tradição sustentem um ao outro. 

Assim, aquilo que não pertence aos padrões da heteronormatividade e da binaridade de gênero (feminino e masculino) é considerado como desvio e patologia – que, do ponto de vista das relações de poder na política, podem ser encarados como ameaça à legitimidade de uma ordem previamente constituída.

Uganda_CAPA

Nem toda a sociedade ugandesa apoia a homofobia estatal

A antropologia é a ciência social que se ocupa da compreensão sobre a alteridade: o outro. A “cultura” pode indicar, para a antropologia, o diálogo complexo que as sociedades travam consigo mesmas e também com outras sociedades, cujo resultado pode ser a troca fecunda de crenças e valores. Mas, para os nacionalistas ultraconservadores,  “cultura” é uma essência imutável e estática no tempo, cujas transformações são incapazes de penetrar em seu tecido.

A “tradição”, por sua vez, é o avesso dos processos históricos que indicam permanente mudança social. Para essa direita autoritária, o controle sobre a sexualidade assume papel fundamental na luta pela hegemonia de uma lógica estritamente binária: o bem versus mal, o saudável versus o patológico, porque é vista como veneno à civilização. O que serve de justificativa para as mais aberrantes violações contra a dignidade humana.

Nada pode justificar, em nome da soberania da nação, a negação das múltiplas formas da existência humana, porque ela esbarra no conceito básico da democracia contemporânea: a nação como um pacto político. Uganda é um exemplo contundente daquilo a que as formas de poder autoritárias submetem a humanidade: um mal estar existencial, resultado de “compromissos novos e ruinosos como formas de violência tão futuristas quanto arcaicas”, para citar o historiador camaronês Achille Mbembe.

A homofobia que invoca a soberania nacional é a negação da multiplicidade do gênero humano. É um pacto anti-civilizatório em nome da barbárie.

 

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