O mito da “Grande Substituição” orienta a política de Viktor Orban. “Se queremos crianças húngaras, e não imigrantes, e se a economia húngara pode gerar o necessário financiamento, a única solução é gastar tanto quanto possível para incentivar as famílias a terem filhos”. O primeiro-ministro da Hungria organiza sua carreira política em torno do nacionalismo e da xenofobia. A sua declaração, de 9 de janeiro, deflagrou oficialmente uma campanha natalista classificada como de “importância estratégica”. A iniciativa fracassará – mas, antes disso, oferecerá um novo pretexto para os partidos da direita nacionalista europeia.
Viktor Orban (dir.) e Vladimir Putin, líderes do clube dos natalistas
A Hungria não está só. Vladimir Putin, um aliado de Orban, anunciou seus próprios planos para elevar a taxa de fertilidade – isto é, o número médio de filhos por mulher – na Rússia. O plano iniciou-se ano passado, com a promessa de isenções tributárias para famílias numerosas, e avança agora com o pagamento de benefícios diretos para mulheres, já no primeiro parto.
Nacionalismo e natalismo quase sempre andam juntos. O exemplo histórico mais dramático encontra-se no nazismo. A Lebensborn (“fonte da vida”, em alemão), uma associação fundada em 1935 pela SS (a organização paramilitar do partido nazista), destinava-se a inverter a tendência de queda das taxas de natalidade na Alemanha.
Heinrich Himmler, chefe da SS e arquiteto do Holocausto, assumiu pessoalmente a supervisão das atividades da Lebensborn. A associação providenciava recursos para famílias pobres e mulheres solteiras com filhos “racialmente puros”. O aborto, legalizado no caso de fetos com incapacidades detectáveis, foi rigorosamente proibido em qualquer outra circunstância. Em 1939, o regime criou a Cruz de Honra da Mulher Alemã, uma condecoração a mães exemplares de quatro ou mais filhos “arianos”.
Joseph Stalin nunca aceitou ficar à sombra de Hitler. O ditador soviético estabeleceu, em 1944, a Ordem da Glória Maternal, uma condecoração conferida em três classes para mães com nove, oito ou sete filhos. A honraria permaneceu vigente, com modificações secundárias, até o colapso da URSS, em 1991.
Orban ainda não inventou uma condecoração, preferindo passos mais pragmáticos. Desde o início do ano, famílias com quatro ou mais filhos foram isentadas de imposto de renda e seu governo estuda ampliar o benefício para famílias com três filhos. Mais: em dezembro, o governo estatizou seis clínicas de fertilização, prometendo oferecer tratamentos gratuitos de fertilização in-vitro.
Nos países ricos, que exibem taxas muito baixas de mortalidade infantil, taxas de fertilidade em torno de 2,1 assegurariam a reposição populacional ao longo do tempo. Na Europa, porém, a taxa média é de 1,59 e são raros os países que alcançam a taxa de reposição. França, Reino Unido, Suécia, Turquia e Romênia giram perto dela, mas são exceções. Na Alemanha e na Hungria, por exemplo, as taxas de fertilidade ficam abaixo de 1,6.
Itália, Espanha e Grécia, casos dramáticos de declínio demográfico, têm taxas inferiores a 1,4. A Rússia, com taxa atual de apenas 1,48, experimentou forte retração demográfica durante a longa depressão econômica da década de 1990, quando a taxa de fertilidade desabou para 1,16, nível inferior até mesmo que o da Segunda Guerra Mundial.
Há pouco, Putin alertou para um novo “período demográfico muito difícil”. Disse, ainda, que “o destino da Rússia e suas perspectivas históricas dependem de quantos nós somos”. Como de costume, ele raciocina em termos de poder geopolítico. Contudo, os impactos mais evidentes do declínio demográfico situam-se na esfera da economia.
A queda das taxas de fertilidade provoca envelhecimento da população. O fenômeno manifesta-se agudamente, há quatro décadas, na Europa. Um dos seus efeitos é o aumento da taxa de dependência da população idosa – isto é, o crescimento da proporção de idosos sobre a população em idade ativa. Alemanha e Itália estão entre os países com maior taxa de dependência. A França, cujas taxas de fertilidade são um pouco maiores, aparece um pouco atrás. A Rússia ainda não está no centro do furacão etário, devido à menor expectativa de vida de sua população.
Das elevadas taxas de dependência derivam, ao menos parcialmente, as crises no equilíbrio dos orçamentos previdenciários. Na Alemanha, elevou-se a idade de aposentadoria para 65 anos. Na França, o governo de Emmanuel Macron tentou, sem sucesso, vencer as resistências sociais ao aumento de 62 para 64 anos.
Orban e Putin acreditam que podem reverter o declínio demográfico pela adoção de agressivas políticas natalistas. Eles estão errados, como evidencia a experiência de outros países.
A Rússia iniciou, em 2007, um programa decenal de incentivos natalistas, com o pagamento de uma “renda maternidade” à mãe, em parcela única, no valor de US$ 7,6 mil, na hora do segundo parto. Mas, desde 2017, a taxa de fertilidade voltou a cair. “Toda a ideia de Putin de que a taxa de natalidade pode ser corrigida apenas com incentivos financeiros é inválida”, explica o demógrafo russo Anatoly Vishnevsky.
A Itália lançou, em 2015, um programa similar ao exposto por Putin, mas até agora não obteve sucesso. A França e a Suécia, cujas taxas de fertilidade estão entre as maiores da Europa, oferecem algo muito mais amplo: uma rede de benefícios sociais que incluem creches e educação infantil gratuitas, além de incentivos tributários. Mesmo assim, as taxas de fertilidade de ambos giram em torno de 1,9, ainda inferiores à taxa de reposição.
“Na Suécia, imaginamos que as coisas tinham se acertado – até o ano passado, quando a taxa de fertilidade começou a declinar”, registrou Anne Gauthier, da Universidade Groningen, na Holanda. Há um consenso entre demógrafos e economistas: a retração da natalidade nos países ricos só pode ser contrabalançada pela imigração.
Ordem da Glória Maternal, de primeira, segunda e terceira classe, da antiga URSS
Orban é um dos mais proeminentes arautos do mito da “Grande Substituição”: a falsa ideia de que a população europeia está sendo dizimada por uma avalanche de estrangeiros (muçulmanos e africanos). Na sua linguagem, partilhada pela direita nacionalista, a “Grande Substituição” é parte de um plano dos “liberais globalistas” destinado a exterminar a “civilização cristã ocidental”. Não é que ele seja ignorante: o discurso nativista, xenófobo, rende votos.
Angela Merkel é a prova negativa da eficiência da estratégia política de Orban. Seu gesto ousado de 2015, abrindo as portas da Alemanha para a onda de refugiados, baseou-se tanto em valores humanitários quanto num cálculo de longo prazo. A primeira-ministra reconhecia que seu país precisa de imigrantes – ou seja, de jovens – para reequilibrar a balança demográfica e reduzir a taxa de dependência da população idosa.
No plano sócio-econômico, a ideia revelou-se correta. Mas, no plano político, provocou um forte refluxo eleitoral dos partidos moderados – e a ascensão da direita nacionalista. É por isso que, hoje, praticamente todos os grandes partidos europeus repetem, com variações de tom, o discurso irracional da rejeição aos imigrantes.
Δ
Quem Somos
Declaração Universal
Temas
Contato
Envie um e-mail para contato@declaracao1948.com.br ou através do formulário de contato.
1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos © Todos os direitos reservados 2018
Desenvolvido por Jumps