OS NATALISTAS E O MITO DA “GRANDE SUBSTITUIÇÃO”

 

Demétrio Magnoli

20 de janeiro de 2020

 

O mito da “Grande Substituição” orienta a política de Viktor Orban. “Se queremos crianças húngaras, e não imigrantes, e se a economia húngara pode gerar o necessário financiamento, a única solução é gastar tanto quanto possível para incentivar as famílias a terem filhos”. O primeiro-ministro da Hungria organiza sua carreira política em torno do nacionalismo e da xenofobia. A sua declaração, de 9 de janeiro, deflagrou oficialmente uma campanha natalista classificada como de “importância estratégica”. A iniciativa fracassará – mas, antes disso, oferecerá um novo pretexto para os partidos da direita nacionalista europeia.

Os natalistas e o mito da “Grande Substituição”

Viktor Orban (dir.) e Vladimir Putin, líderes do clube dos natalistas

A Hungria não está só. Vladimir Putin, um aliado de Orban, anunciou seus próprios planos para elevar a taxa de fertilidade – isto é, o número médio de filhos por mulher – na Rússia. O plano iniciou-se ano passado, com a promessa de isenções tributárias para famílias numerosas, e avança agora com o pagamento de benefícios diretos para mulheres, já no primeiro parto.

Nacionalismo e natalismo quase sempre andam juntos. O exemplo histórico mais dramático encontra-se no nazismo. A Lebensborn (“fonte da vida”, em alemão), uma associação fundada em 1935 pela SS (a organização paramilitar do partido nazista), destinava-se a inverter a tendência de queda das taxas de natalidade na Alemanha.

Heinrich Himmler, chefe da SS e arquiteto do Holocausto, assumiu pessoalmente a supervisão das atividades da Lebensborn. A associação providenciava recursos para famílias pobres e mulheres solteiras com filhos “racialmente puros”. O aborto, legalizado no caso de fetos com incapacidades detectáveis, foi rigorosamente proibido em qualquer outra circunstância. Em 1939, o regime criou a Cruz de Honra da Mulher Alemã, uma condecoração a mães exemplares de quatro ou mais filhos “arianos”.

Joseph Stalin nunca aceitou ficar à sombra de Hitler. O ditador soviético estabeleceu, em 1944, a Ordem da Glória Maternal, uma condecoração conferida em três classes para mães com nove, oito ou sete filhos. A honraria permaneceu vigente, com modificações secundárias, até o colapso da URSS, em 1991.

Orban ainda não inventou uma condecoração, preferindo passos mais pragmáticos. Desde o início do ano, famílias com quatro ou mais filhos foram isentadas de imposto de renda e seu governo estuda ampliar o benefício para famílias com três filhos. Mais: em dezembro, o governo estatizou seis clínicas de fertilização, prometendo oferecer tratamentos gratuitos de fertilização in-vitro.

 

Declínio demográfico

Nos países ricos, que exibem taxas muito baixas de mortalidade infantil, taxas de fertilidade em torno de 2,1 assegurariam a reposição populacional ao longo do tempo. Na Europa, porém, a taxa média é de 1,59 e são raros os países que alcançam a taxa de reposição. França, Reino Unido, Suécia, Turquia e Romênia giram perto dela, mas são exceções. Na Alemanha e na Hungria, por exemplo, as taxas de fertilidade ficam abaixo de 1,6.

Itália, Espanha e Grécia, casos dramáticos de declínio demográfico, têm taxas inferiores a 1,4. A Rússia, com taxa atual de apenas 1,48, experimentou forte retração demográfica durante a longa depressão econômica da década de 1990, quando a taxa de fertilidade desabou para 1,16, nível inferior até mesmo que o da Segunda Guerra Mundial.

Taxa de fertilidade da Europa

Há pouco, Putin alertou para um novo “período demográfico muito difícil”. Disse, ainda, que “o destino da Rússia e suas perspectivas históricas dependem de quantos nós somos”. Como de costume, ele raciocina em termos de poder geopolítico. Contudo, os impactos mais evidentes do declínio demográfico situam-se na esfera da economia.

A queda das taxas de fertilidade provoca envelhecimento da população. O fenômeno manifesta-se agudamente, há quatro décadas, na Europa. Um dos seus efeitos é o aumento da taxa de dependência da população idosa – isto é, o crescimento da proporção de idosos sobre a população em idade ativa. Alemanha e Itália estão entre os países com maior taxa de dependência. A França, cujas taxas de fertilidade são um pouco maiores, aparece um pouco atrás. A Rússia ainda não está no centro do furacão etário, devido à menor expectativa de vida de sua população.

Taxa de dependência da população idosa na Europa

Das elevadas taxas de dependência derivam, ao menos parcialmente, as crises no equilíbrio dos orçamentos previdenciários. Na Alemanha, elevou-se a idade de aposentadoria para 65 anos. Na França, o governo de Emmanuel Macron tentou, sem sucesso, vencer as resistências sociais ao aumento de 62 para 64 anos.

Orban e Putin acreditam que podem reverter o declínio demográfico pela adoção de agressivas políticas natalistas. Eles estão errados, como evidencia a experiência de outros países. 

 

Orban e a “Grande Substituição”

A Rússia iniciou, em 2007, um programa decenal de incentivos natalistas, com o pagamento de uma “renda maternidade” à mãe, em parcela única, no valor de US$ 7,6 mil, na hora do segundo parto. Mas, desde 2017, a taxa de fertilidade voltou a cair. “Toda a ideia de Putin de que a taxa de natalidade pode ser corrigida apenas com incentivos financeiros é inválida”, explica o demógrafo russo Anatoly Vishnevsky.

A Itália lançou, em 2015, um programa similar ao exposto por Putin, mas até agora não obteve sucesso. A França e a Suécia, cujas taxas de fertilidade estão entre as maiores da Europa, oferecem algo muito mais amplo: uma rede de benefícios sociais que incluem creches e educação infantil gratuitas, além de incentivos tributários. Mesmo assim, as taxas de fertilidade de ambos giram em torno de 1,9, ainda inferiores à taxa de reposição.

 “Na Suécia, imaginamos que as coisas tinham se acertado – até o ano passado, quando a taxa de fertilidade começou a declinar”, registrou Anne Gauthier, da Universidade Groningen, na Holanda. Há um consenso entre demógrafos e economistas: a retração da natalidade nos países ricos só pode ser contrabalançada pela imigração.

Ordem da Glória Maternal, de primeira, segunda e terceira classe, da antiga URSS

Ordem da Glória Maternal, de primeira, segunda e terceira classe, da antiga URSS

Orban é um dos mais proeminentes arautos do mito da “Grande Substituição”: a falsa ideia de que a população europeia está sendo dizimada por uma avalanche de estrangeiros (muçulmanos e africanos). Na sua linguagem, partilhada pela direita nacionalista, a “Grande Substituição” é parte de um plano dos “liberais globalistas” destinado a exterminar a “civilização cristã ocidental”. Não é que ele seja ignorante: o discurso nativista, xenófobo, rende votos.

Angela Merkel é a prova negativa da eficiência da estratégia política de Orban. Seu gesto ousado de 2015, abrindo as portas da Alemanha para a onda de refugiados, baseou-se tanto em valores humanitários quanto num cálculo de longo prazo. A primeira-ministra reconhecia que seu país precisa de imigrantes – ou seja, de jovens – para reequilibrar a balança demográfica e reduzir a taxa de dependência da população idosa.

No plano sócio-econômico, a ideia revelou-se correta. Mas, no plano político, provocou um forte refluxo eleitoral dos partidos moderados – e a ascensão da direita nacionalista. É por isso que, hoje, praticamente todos os grandes partidos europeus repetem, com variações de tom, o discurso irracional da rejeição aos imigrantes.  

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail