Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante foto oficial da VII Cúpula da CELAC, em Buenos Aires, Argentina
Estranho o tempo no qual um governo se inicia após uma disputa eleitoral acirrada, marcada pela ideia de “frente ampla pró-democracia e antifascista”, mas não vacila em manter constrangedor silêncio sobre o fato de antigos aliados latino-americanos serem ditaduras que não dão aos seus cidadãos o direito a eleições e imprensa livres. Mais: tais ditaduras se utilizam de grupos paramilitares para calar seus opositores e manipulam o Poder Judiciário a fim de manter uma mal ajambrada aparência de legalidade enquanto cometem sucessivas violações de direitos humanos.
“A esquerda brasileira permaneceu estagnada no tempo, ficou presa a um mundo que mudou”, segundo a avaliação do insuspeito ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica, antigo líder Tupamaro e ícone da esquerda latino-americana. Será que ele se tornou um porta-voz dos interesses de Washington? É um chiste, claro, incontornável quando se sabe que essa é a resposta padrão da esquerda petista para dez entre dez perguntas sobre os problemas vividos em Cuba, Nicarágua ou Venezuela. Já dizia o filósofo francês Jean-Paul Sartre, conhecido por suas simpatias pelo stalinismo, “o inferno são os outros”.
Em nome de um antiamericanismo quase infantil, em um mundo que vê a polarização da Guerra Fria como uma imagem cada vez mais distante no retrovisor, o Partido dos Trabalhadores (PT) aceita ser avalista de regimes que infringem abertamente os direitos humanos, com denúncias aceitas nos mesmos tribunais internacionais aos quais a esquerda recorreu para denunciar as barbaridades do governo de Jair Bolsonaro. O Brasil continua fechando os olhos para violações de direitos humanos cometidos por governos “amigos” – mudou o presidente e mudaram os “amigos”, não os crimes com os quais o Estado brasileiro coonesta voluntariamente.
Direitos Humanos não têm ideologia, sua validade está em sua universalidade.
No fatídico domingo de 8 de janeiro de 2023, caracterizado pelo assalto golpista às sedes dos três poderes, em Brasília, assistimos à turba bolsonarista vociferante e descerebrada atacar os símbolos da República em nome de impedir, entre outras coisas, “ameaças comunistas” representadas exatamente por esses regimes ditatoriais que se dizem de esquerda e que Lula e o Partido dos Trabalhadores insistem em apoiar. O temor frente à “ameaça” pode ser (e é) delirante, mas essas teorias também crescem porque o PT, sobretudo quando encabeçando o governo, se nega a emitir um comunicado dizendo com todas as letras que a defesa da democracia e dos direitos humanos são valores universais e inegociáveis.
Nicolás Maduro, o ditador “amigo”, com a presidente do PT, Gleisi Hoffmann
Lula usou a oportunidade, na semana passada durante a cúpula da Celac, de louvar a resistência da democracia e das instituições brasileiras frente à tentativa de “assalto aos céus” bolsonarista. Contudo, desperdiçou a oportunidade de conclamar todos os países latino-americanos a se comprometerem com a democracia e os direitos humanos. Fora isso, o documento oficial produzido no final da reunião em Buenos Aires tem pouco significado.
Não foi apenas omissão. O presidente brasileiro recorreu às velhas fórmulas mágicas “soberania”, “autodeterminação” e “unidade latino-americana” para erguer uma barreira protetora contra suposta “ingerência externa”. Acontece que a pressão diplomática pelo respeito a direitos básicos não configura “ingerência”, especialmente quando as violações estão registradas em denúncias comprovadas e detalhados relatórios de ONGs.
Por que um cidadão que não se identifica com o PT e suas propostas deveria acreditar que o partido apoia um regime, mas não pretende fazer igual por aqui? Lula disse que seria presidente de todos os brasileiros, mas parece só se preocupar de fato com aqueles que apoiam suas ações e as do partido, em quaisquer circunstâncias. Será que cobrar do maior partido brasileiro compromisso coerente com os direitos humanos será, em breve, um “desvio” passível de acusações de simpatias ao bolsonarismo?
No tuíte, o presidente cubano Díaz-Canel, em encontro reservado com Lula na cúpula da Celac
Existem aproximadamente mil presos políticos em Cuba nesse momento, incluindo menores de idade, parte deles ainda aguardando indiciamento e julgamento após serem presos durante as manifestações de rua que tomaram conta do país no ano passado. Acusações? As de sempre, “agente do imperialismo”, “ameaça ao Estado”. Quem são? De cantor de rap que ousou contestar o lema da revolução castrista, passando por donas de casa que não conseguem alimentar seus filhos, desempregados e adolescentes sem perspectivas em um país que não consegue produzir uma economia viável.
Quem olhar para a lista de presos e condenados sem as lentes da ideologia, verá que a maioria é constituída de pobres e pretos, num país onde se faz necessário buscar com lupa pessoas pretas em posições de destaque na alta cúpula do Partido Comunista Cubano. Mas a militância que aqui é tão sensível ao tema, não vê isso em Cuba. Pessoas para quem Cuba não é um país, mas sim, parafraseando a exilada cubana Carolina Ferrer, “o Graal onde a esquerda latino-americana continua a depositar os seus sonhos às custas das pessoas reais”.
Esperto, o governo cubano comandado pelo presidente Miguel Díaz-Canel aprendeu que é melhor deixar partirem todos aqueles que possuem conexões externas. De certa forma, trata-se da elite intelectual e econômica cuja prisão geraria muitos ruídos e pressões sobre Havana. Livres para protestar fora da ilha, não parecem causar grande alvoroço interno. São eles os “agentes do imperialismo” denunciados pelas autoridades cubanas.
O governo cubano é um dos únicos no mundo a manter relações diplomáticas com a Coreia do Norte (o mais totalitários dos regimes existentes hoje, muito mais que o chinês). Havana respeita a soberania norte-coreana – personificada pela dinastia Kim.
O mesmo argumento certamente embasou a importante viagem internacional que Díaz-Canel realizou há poucas semanas, num roteiro por países tão democráticos quanto a Turquia, a Rússia e a China. O cubano buscava ajuda econômica para amenizar a crise que inviabiliza a restauração da ordem na ilha, além de recursos de repressão mais efetivos.
Lula afirmou na reunião da semana passada: “o que eu quero para o Brasil, quero para a Venezuela: respeito à minha soberania”. Mas a soberania pertence a Lula? Ou a soberania pertence à nação, representada circunstancialmente por um presidente escolhido pela maioria dos eleitores – cujo voto foi, antes de tudo, pela preservação da democracia e da ordem constitucional? A Constituição brasileira tem compromisso explícito com a defesa dos direitos humanos. O moderno conceito de soberania nacional não se realiza separadamente do princípio de autodeterminação dos povos – que, por sua vez, só se realiza plenamente na ordem democrática.
Luisa Ortega, então procuradora-geral da Venezuela, com Maduro, no Palácio de Miraflores, em 1 de abril de 2017. Dias depois, ela denunciou as farsas judiciais conduzidas contra opositores, perdeu seu cargo e rumou ao exílio
Será que alguém se dispõe a defender a existência de democracia na Venezuela de Nicolás Maduro? Um país que, sem guerra, produziu uma marcha de emigrantes similar à provocada pela Guerra da Síria, de aproximadamente seis milhões de pessoas em 2020, parte das quais em terras brasileiras, cujo desalento aparece diariamente nos jornais impressos e na televisão.
A economia é apenas uma dimensão da tragédia. O Estado venezuelano converteu-se num aparato de natureza criminosa, associado a grupos paramilitares que atuam simultaneamente como grupos de extermínio nas periferias, ajudando a manter o medo e o controle sobre os mais pobres, e como perseguidores dos opositores políticos, jornalistas ou quem ouse reivindicar direitos civis.
A ironia foi o governo Bolsonaro falar tão mal de Maduro e, no fundo, caminhar na mesma direção, tentando carregar o Exército como cúmplice e beneficiário. Na Venezuela, Maduro e seus companheiros de farda e de terno encobrem operações de expulsão de famílias de grandes áreas onde surgem empreendimentos imobiliários para uma “nova elite”.
É importante que Lula use seu capital político em Caracas para ajudar a trazer o país vizinho para a mesa de negociações. A mesma coisa vale para a Nicarágua governada pelo ditador Daniel Ortega. Mas, sem proferir uma única palavra contra esse desastre humanitário e ignorando voluntariamente o drama de milhões de imigrantes e refugiados, não haverá meio dessa foto ficar boa para o governo do PT.
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