Manifestantes do “11J” em um bairro de Havana. “É a economia, estúpido”
Luis Manuel Otero Alcántara, 34 anos, integra a lista de centenas de presos políticos do “11J” – o 11 de julho de 2021 – em Cuba. Seu crime? Ser um artista que, junto com dezenas de outros – músicos, atores, bailarinos, artistas plásticos, performers – vinha se manifestando em nome da liberdade de criação e expressão que o governo cubano decidiu coibir por meio do Decreto 349, de 2018. O governo obriga todos os artistas a se registrarem junto às polícias, ao mesmo tempo em que transferiu o tema de censura do Direito Cível para o Penal, criminalizando a liberdade de expressão. Essa foi a origem do Movimento San Isidro, em 2018.
O nome de Alcántara se destaca numa lista de 14 casos de cubanos que a organização Human Rights Watch selecionou para acompanhar, por terem sido presos pelo Estado cubano de modo arbitrário. Mas esses 14 casos são apenas para dar rosto e nome ao que na verdade são centenas de pessoas presas; 155 casos foram diretamente verificados pela organização. O material recolhido permite falar em maus tratos, tortura e vícios de processo, segundo relatório publicado na semana passada pela HRW para marcar o primeiro aniversário das manifestações de 11 de julho de 2021.
Luis Manuel Otero Alcántara e Maykel Castillo, presos e condenados
Há um ano, milhares de cubanos – sobretudo mães cubanas – saíram às ruas para protestar contra a carestia e contra a falta de liberdade que assolam o povo e que foram terrivelmente agravadas pela pandemia. Em diferentes cidades era possível ouvir gente cantando o rap “Pátria e Vida”, uma letra e um título que mexem com o maior lema proferido por Fidel Castro: “pátria ou morte”.
Os manifestantes foram espontaneamente às ruas porque estão cansados da falta de comida, vacina, energia, liberdade de expressão. Desde 1959, ano da Revolução Cubana, não se via manifestações dessa magnitude.
Otero Alcántara e seu amigo Maykel Castillo Pérez (Osorbo), também preso, são jovens, negros, pobres e estão entre os coautores de “Pátria e Vida”. Ambos foram condenados por “ultraje aos símbolos da pátria”, “desordem pública”, “atentado” e “difamação”, com penas de cinco e nove anos de reclusão, respectivamente. Como ocorre com vários detidos, sobretudo aqueles cujas prisões podem gerar maior ruído externo, o governo ofereceu a Alcántara a possibilidade de deixar a ilha indefinidamente, mas o rapper recusou a oferta.
A troca de comando em Cuba, de Raúl Castro para Miguel Díaz-Canel, veio acompanhada do entendimento de que o maior inimigo político do Partido Comunista Cubano hoje é o mundo virtual, por onde circulam informações impossíveis de controlar totalmente. Eis um traço que se repete atualmente em países autoritários quando ocorrem revoltas populares: cai o sinal; nada de internet. Foi o que aconteceu naquele 11 de julho.
De fato, o efeito contágio é inegável: os participantes relatam que decidiram sair às ruas, em diferentes cidades, depois de virem os filmes e fotos postados nas redes sociais a partir de San Antonio de Los Baños, um distrito no subúrbio de Havana onde tudo começou por conta de um apagão de energia de mais de sete horas. Combustão espontânea.
O pastor Rosales Fajardo
O governo também foi rápido em acionar o aparato repressivo, resultando em um morto, centenas de feridos, mais de 1,4 mil presos, dos quais 700 permanecem encarcerados e 300 ainda aguardam julgamento.
É o caso de Lorenzo Rosales Fajardo, um dos 14 casos selecionados pela HRW. Fajardo é pastor evangélico, tem 50 anos, reside em Santiago de Cuba. Foi preso junto com seu filho de 17 anos por acompanhar a manifestação. Agiam pacificamente porque, como explicaram seus parentes, a religião os impediria de, por exemplo, gritar frases contra o presidente. O pai ficou dois dias preso; o filho, uma semana. Segundo contaram seus familiares, o jovem foi levado para uma prisão improvisada, onde teve servida comida azeda e água suja e sofreu com privação de sono, desnudamento e toda a sorte de humilhações.
Dia 6 de agosto, Fajardo foi transferido para uma prisão de segurança máxima e só então a família conseguiu se comunicar com ele, embora só o tenha visitado em 16 de outubro. Seu julgamento foi realizado a portas fechadas entre 20 e 21 de dezembro; seu advogado foi proibido de apresentar as provas de defesa. O réu foi condenado a sete anos de prisão por “desacato” e “atentado”, acusado de pretender levar os vizinhos para o protesto, para falar contra o presidente. Segue na prisão.
Desde os anos 1990, o caminho encontrado pelo governo cubano para equilibrar o balanço de pagamento foi criar leis de atração para o turismo, junto com a facilitação de relações com a Espanha e suas empresas. Assim chegam os dólares e as incontornáveis “propinas” (gorjetas) pedidas aos turistas. É assim que as pessoas que não trabalham diretamente com o turismo completam seu sustento, com o dinheiro que escoa a partir de quem tem acesso aos turistas.
Toda a longa fase da ascensão chavista na Venezuela, que incluía alta dos preços do petróleo e política externa bolivariana, ajudou Havana a melhorar as contas públicas e as condições de vida da população. Houve, ainda, a ajuda do Brasil, no governo de Lula da Silva, com o financiamento para a construção do porto de Mariel, uma grande obra, geradora de muitos empregos.
Mas a última década assinalou um retrocesso constante. A Venezuela de Nicolás Maduro se tornou mais pobre e mais repressiva que Cuba. Depois, dois anos de pandemia provocaram o colapso do turismo. Eis a receita da crise econômica catastrófica que levou o povo às ruas.
A crise cubana está provocando uma nova diáspora. A Patrulha de Fronteira dos EUA prendeu mais de 118 mil cubanos na fronteira seca com o México entre janeiro e maio de 2022, enquanto a Guarda Costeira interceptou quase três mil desde outubro de 2021, a cifra mais alta dos últimos cinco anos.
Para alguns dos “indesejados” existe a opção dada pelo governo para que saiam indefinidamente de Cuba, o que exige ter um segundo passaporte e condições financeiras para se manter. Apenas neste ano foram registrados 145 mil processos de emigração, informa a historiadora da arte e ativista Carolina Barrero Ferrer, uma das que preferiu partir depois de ser detida várias vezes. Carolina integra o grupo de artistas contestadores; agora, no exílio, se dedica a viajar para contar o que está ocorrendo em Cuba. Na semana passada esses exilados organizaram atos em diversas cidades lançar luz sobre a violação de direitos desses presos políticos do 11J.
Mais do que a fuga política, é a fome que realmente pressiona os cubanos hoje.
Carolina Ferrer (de meias brancas) é uma das centenas de cubanos que foram “aconselhados” pelo governo a deixar a ilha. Aqui, aparece na manifestação realizada em Madri em 11 de julho de 2022
O governo cubano segue a cantilena de que todos os problemas do país decorrem do embargo econômico imposto pelos EUA há décadas. Todos os presos, condenados ou não, seriam “colaboradores”, “mercenários” ou “provocadores” da trama urdida pelos Estados Unidos para desestabilizar o regime. Reclamar da eterna escassez de alimentos, atendimento médico precário ou falta de perspectiva de emprego é visto como antipatriótico e passível de prisão. Liberdade de expressão é um direito humano não reconhecido pelo regime cubano.
A resposta do governo às manifestações veio em agosto de 2021, com o Decreto 35 e várias normas complementares destinadas a restringir a liberdade de expressão na internet. Desde maio, a Assembleia Nacional aprovou um novo código penal com muitas normas vagas, cheias de brechas interpretativas. Mas há um artigo bastante claro criminalizando a posse de recursos financeiros vindos do exterior para “financiar atos contra o regime”. Isso porque um imenso número de cidadãos cubanos sobrevivem com a ajuda financeira que recebem de amigos e parentes que vivem em outros países.
Esses cidadãos, tratados como “inimigos públicos”, sofrem abusos e violações de direitos nas mãos dos agentes do Estado. Como padrão dos casos avaliados pela HRW, os detidos permaneceram dias ou semanas sem qualquer contato com familiares ou advogados e os julgamentos apresentam todo o tipo de vício, da recusa de provas e testemunhos de defesa à supervalorização de testemunhos de agentes policiais. As irregularidades incluem assédio e intimidação de familiares dos presos, amigos e advogados.
Ato de exilados cubanos em 11 de julho de 2022, em Ottawa, no Canadá
“Funcionários implicados em abusos incluem membros do serviço de inteligência, conhecidos em Cuba como “seguranças do Estado”; forças militares; a Polícia Nacional e uma brigada especial do Ministério do Interior conhecida como “boinas pretas”. “Brigadas de resposta rápida”, nome pela qual são conhecidos os grupos de civis organizados pelo governo, estiveram implicados em vários espancamentos. Juízes e promotores, que em Cuba carecem de independência do governo, facilitaram processos criminais abusivos e participaram deles”, aponta o relatório. Forçoso sublinhar o quanto esse aparato repressivo, seus instrumentos e métodos se parecem com os empregados pelo governo de Maduro para controlar a população da Venezuela.
A Human Rights Watch conclui: “as violações de direitos no contexto dos protestos em Cuba seguem padrões que sugerem claramente a existência de um plano para impedir que as pessoas protestem, castigar os que o fazem e gerar temor para evitar novas manifestações multitudinárias contra o regime”.
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