Adotamos a distinção entre “terror de Estado” e “terrorismo” proposta no Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino) para diferenciarmos os atos de violência ou terror político produzido por atores não estatais daqueles resultantes de decisões governamentais. (Leia mais em O que é terrorismo?)
O cientista político David C. Rapoport, autor de vários estudos sobre o tema, propõe que o terrorismo contemporâneo seja divido em quatro ondas, caracterizadas pela causa e difusão geográfica, ou seja, para que uma “onda” seja reconhecida é fundamental o caráter internacional dessas ações. Assim:
Naturalmente, o fato de haver um padrão de ações e motivações em determinado período não significa que não possam ocorrer atos terroristas com causas diferentes.
A característica tática mais marcante da quarta onda é o terrorismo suicida praticado por homens dispostos a morrer em nome de Deus, em atentados com grande poder de destruição e letalidade. O desconhecimento do Ocidente sobre o Islã contribuiu para dificultar o diálogo, marcado pela caricatura do homem-bomba islâmico, generalizando para milhões de pessoas os atos de alguns milhares de indivíduos.
O século XXI começou, de fato, no 11 de setembro de 2001, quando o mundo inteiro foi inundado pelas imagens das Torres Gêmeas (World Trade Center), localizadas na cidade de Nova York, sendo atingidas por aviões de passageiros sequestrados. O intervalo entre a primeira e a segunda colisão, de aproximadamente 20 minutos, foi o suficiente para que a notícia já tivesse corrido o mundo e todas as televisões e rádios do planeta estivessem olhando para as edificações, a tempo de verem claramente a segunda torre ser atravessada por um Boeing.
Menos de 40 minutos depois, um terceiro avião atingiu uma das laterais do Pentágono, em Washington, a capital federal dos EUA. O quarto avião sequestrado naquela manhã caiu antes de atingir o alvo porque um levante dos passageiros impediu que os terroristas concluíssem seu intento. A cores e ao vivo para todo o planeta, os EUA eram atacados em seu próprio território, apenas pela segunda vez na história.
Com uma diferença fundamental: enquanto o primeiro ataque foi desferido pelo Japão, o novo agressor não tinha território fixo e se organizava em células independentes. A base de Pearl Harbor era um alvo militar, num contexto de guerra – ou seja, sujeita às leis de guerra, que existem exatamente para disciplinar a violência e proteger as populações. Fazer implodir o WTC, um centro empresarial e um ícone turístico frequentado por civis e matar mais de três mil pessoas entre explosão, fogo e escombros definitivamente estava fora das regras.
As células terroristas descentralizadas constituem um elemento político bastante perturbador, na medida em que nenhuma paz de fato pode ser negociada e assegurada. A prática diplomática estatal não pode ser aplicada a quem acredita em uma ordem transcendente. Atores até então desconhecidos do grande público se tornaram mundialmente temidos em questão de dias: Osama Bin Laden e a Al-Qaeda. O terrorismo nunca foi tão eficaz.
Uma imagem vale mais que mil palavras…
O filósofo Douglas Kellner descreveu os primeiros efeitos do ataque:
“A novidade do espetáculo de terror de 11 de setembro resultou da combinação de sequestro de aviões e de seu uso para colidir com prédios e desestabilizar a vida urbana e econômica. Os alvos eram simbólicos, representando o capital global e o poder militar americano, mas tiveram efeitos materiais, desestruturando o setor aéreo, os negócios localizados no centro de Nova York e a própria economia global, por meio do fechamento dos EUA e de outros mercados de ações e subsequentes desacelerações no mercado de capitais mundial. De fato, como resposta ao drama do espetáculo do terror, um desligamento sem paralelo ocorreu em Nova York, Washington e outras grandes cidades dos EUA, com o governo e as empresas fechando durante o dia e o sistema de companhias aéreas cancelando todos os voos. Wall Street e o mercado de ações ficaram fechados por dias. (…)
De repente, a vulnerabilidade e a ansiedade sofridas por muitas pessoas em todo o mundo também foram vividas profundamente pelos cidadãos dos EUA, em alguns casos pela primeira vez. Os ataques terroristas tiveram, portanto, efeitos materiais, tentando prejudicar os EUA e a economia global, e efeitos psíquicos, traumatizando uma nação com medo. O espetáculo de terror foi transmitido por toda a aldeia global, com o mundo inteiro assistindo ao ataque aos EUA e às tentativas de Nova York de lidar com os ataques.”
A Guerra Fria ideológica da segunda metade do século XX foi substituída pelas “guerras de religião” no início do século XXI. A nova onda terrorista desempenhou um papel decisivo na redefinição do ambiente geopolítico internacional.
Dois fenômenos históricos confluíram para o surgimento da “quarta onda terrorista”: a revolução tecnológica, que começou na década de 1970 e produziu a internet e o “tempo real” nas comunicações a longa distância, e o fim da Guerra Fria, que criou um vácuo ideológico e a impressão de uma “Nova Ordem” liderada pelos EUA.
O presidente George Bush (pai) anunciava a “Pax Americana”, ao lado dos ex-presidentes Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, os responsáveis pelo fim da Guerra Fria
Toyotismo, produção just in time, fundos de ações, empreendedorismo: a reorganização da economia mundial e da divisão internacional do trabalho concentraram a riqueza nos polos geradores de tecnologia, nos quais profissionais muito bem formados e remunerados desenvolvem as inovações. Já a produção de bens manufaturados e de matérias-primas é mantida ou deslocada para regiões onde os custos sociais e trabalhistas são menores. Então, temos mercadorias mais baratas, mas também o aumento do desemprego e das tensões sociais.
Isso não deve levar à relação automática entre pobreza e terrorismo, pois diversos estudos demonstram que os ideólogos e mais destacados militantes desses movimentos religiosos se originam nas classes médias e altas mais escolarizadas, incluindo passagens por universidades no Ocidente. O que esse contexto material nos diz, é que no mundo globalizado, tecnologia e pobreza convivem estreitamente, em interações complexas com seus ambientes sociais.
O impacto das redes sociais é assunto atual. Aprendemos, nas duas últimas décadas, que os mesmos meios de comunicação que servem para aproximar pessoas e difundir conhecimento são usados para alimentar discursos de ódio e violência. Os homens envolvidos em movimentos radicais com tendências terroristas compreenderam a força das novas tecnologias, que permitiam furar todos os filtros e falar diretamente com as pessoas comuns em todo o mundo.
Se o objetivo era difundir o medo na sociedade para forçar mudanças políticas, a capilaridade e instantaneidade das novas tecnologias permitiu transmitir o horror imediato e sem limites. Celulares, câmeras, luzes, trucagens, pirataria… A internet forneceu um meio barato para a alimentação de extremismos, com suas teorias conspiratórias e argumentos avessos à razão. Os meios de comunicação dos quais dispõe o terrorista da “quarta onda” demonstram que o discurso religioso e reacionário, do ponto de vista dos costumes, convive muito bem com as tecnologias de ponta, lança-mísseis, celulares e drones.
O Estado Islâmico furou o filtro das redes de comunicação e inundou as redes de imagens brutais
Como explica o FBI: “Extremistas violentos internacionais e domésticos desenvolveram uma presença extensa na internet por meio de plataformas de mensagens e imagens, vídeos e publicações online. Isso facilita a capacidade dos grupos de radicalizar e recrutar indivíduos receptivos a mensagens extremistas. A mídia social também permitiu que terroristas internacionais e domésticos obtivessem acesso virtual sem precedentes a pessoas que vivem nos Estados Unidos em um esforço para permitir ataques em sua terra natal.”
A politização da religião não é um fenômeno novo, mas ganhou dimensões inéditas no último meio século.
Aiatolá Khomeini, fundador do Estado teocrático no Irã
O evento inaugural ocorreu em 1979, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini assumiu a direção da Revolução Iraniana, convertendo-a num movimento teocrático destinado a impor um regime desvinculado das influências ocidentais. Contra o mundo laico do Ocidente corrompido, Khomeini pregava o resgate do Islã, de suas tradições e da lei corânica.
Apesar do tremendo impacto causado pela Revolução Iraniana, sua repercussão no mundo muçulmano demorou mais a ser percebida, porque os iranianos seguem a vertente xiita do Islã, enquanto a maioria dos muçulmanos segue a vertente sunita. O que o Irã governado pelo clero xiita demonstrou foi a viabilidade da existência um Estado teocrático islâmico em um mundo dominado pelo Ocidente. Com isso, um novo ímpeto militante se apossou de uma parcela dos crentes.
A invasão do Afeganistão pela União Soviética, em 1979, forneceu o motivo para que voluntários sunitas fundamentalistas, vindos de diferentes lugares, se unissem. A guerrilha mujahedin foi crucial para manter a resistência afegã e combater as tropas soviéticas.
O Afeganistão se transformou em um grande cadinho onde se misturaram homens vindos da Arábia Saudita, Síria, Egito, Iraque e outros países islâmicos, que depois espalhariam o jihadismo como sementes. Alguns homens eram dedicados ao estudo do Corão – como o egípcio Ayman al-Zawairi, o principal mentor da Al-Qaeda – e ajudaram a difundir uma interpretação radical do Islã, apelando a uma nova “guerra santa” para restaurar a unidade perdida.
A jihad ou “guerra santa” é um conceito muito importante para a religião islâmica, mas não é um dos cinco “Pilares da Fé”. Esse conceito não deve ser interpretado de forma literal, pois a “jihad” é, em primeiro lugar, do crente consigo mesmo, para se tornar uma pessoa melhor e mais próxima de Deus. Pegar em armas para difundir o Corão foi um fenômeno importante na história de formação e expansão do império islâmico, sobretudo por atribuir poder aos seus líderes, mas nenhum muçulmano está obrigado a isso. Lutar e morrer em nome da fé é uma escolha pessoal.
Ayman Al-Zawahiri, morto em julho de 2022, após uma operação especial dos EUA, sucedeu Bin Laden no comando da Al-Qaeda. Sua condenação a ataques indiscriminados contra civis muçulmanos colocou em lados opostos Al-Qaeda e Estado Islâmico
É importante diferenciar a jihad do jihadismo, um fenômeno político que surgiu associado a essa quarta onda terrorista, na qual a violência é justifica pela fé.
O jihadismo propõe a guerra à ordem mundial para reunificar o Islã, ou seja, restaurar o império teocrático, unido por uma só lei religiosa, que se sobrepõe e ultrapassa os Estados Nacionais. Para atingir tal objetivo é preciso derrotar o Ocidente (cristão, racionalista, liberal, incluindo a liberdade das mulheres e gays), representado pelos EUA, o “Grande Satã” de Khomeini.
Em 2013, dois anos após a morte de Osama Bin Laden, Al-Zawahiri escreveu em suas “diretrizes gerais para a jihad” que “o objetivo de atacar os EUA é exauri-lo e fazê-lo sangrar até a morte, para que tenha o mesmo destino da antiga URSS e desabe sobre seu próprio peso, como resultado de suas perdas militares, humanas e financeiras. Consequentemente, seu controle sobre nossas terras enfraquecerá e seus aliados cairão um após o outro.”
Um artigo publicado pela BBC explica que jihadistas dividem o mundo entre aqueles que seguem o Islã e os que não seguem, e contra os quais, em determinadas circunstâncias a guerra em defesa da fé pode ser aprovada. Isso inclui líderes e governos muçulmanos acusados de terem abandonado as recomendações da sharia, o que os tornaria alvos legítimos de ataque.
Quando o cientista político americano Samuel Huntington publicou, em 1996, o “Choque de Civilizações” apontando para a reorganização da geopolítica mundial a partir de identidades religiosas, a oposição entre Cristandade e Islã ganhou legitimidade no discurso político. Os meios de comunicação no Ocidente, por exemplo, fixaram a caricatura do muçulmano-homem-bomba e da muçulmana-de-burca.
Esse discurso alimentou, entre grupos fundamentalistas cristãos, a ideia de que existe realmente um conflito civilizacional em curso. E, assim como entre muçulmanos radicalizados, as redes sociais e deep web ajudaram a produzir e disseminar teorias da conspiração, entre as quais se destaca a do “genocídio do homem branco”, uma reação à crise econômica e imigratória que atingiu o Ocidente depois de 2008.
Tendo os EUA como maior centro de propagação dessas ideias, a extrema-direita cristã mobiliza o nativismo para responder ao mundo globalizado e multicultural. Assim, fundem-se o homem cristão e branco, em luta heroica para defender “seu mundo” e “seus valores” contra os imigrantes que não param de chegar, enquanto os governos são manipulados por banqueiros judeus (sim, a conspiração dos Sábios do Sião e o antissemitismo adquirem um novo impulso).
Atentado em Oslo, na Noruega, 22 de julho de 2011. Um fanático anti-islâmico começou explodindo uma bomba em um prédio governamental e depois assassinou 67 jovens e feriu outros 33 em um acampamento de verão na ilha de Utoya
A radicalização ocorre de maneira individual e é apresentada ao público como ação de “lobos solitários”. Contudo, não se trata de “loucura”, mas de opção tática para dificultar as medidas de inteligência contraterrorista. Na década de 1990, a extrema-direita definiu sua tática como “resistência sem liderança”, indicando que a forma difusa dos ataques não é um acaso, mas um método deliberado, que reflete bem o individualismo exacerbado presente no imaginário da sociedade dos Estados Unidos.
Ao longo do tempo, o uso da tática terrorista banalizou-se, transformando-se cada vez mais em um modo violento e autoritário de fazer política. A partir dos anos 1990, encerrado o período da descolonização e estabelecidos os novos Estados africanos e asiáticos, as organizações internacionais como ONU, OEA e União Europeia começaram a discutir mais amplamente o fenômeno do terrorismo, reconhecendo-o como um problema transnacional.
As imbricações do terrorismo com o crime organizado por intermédio de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas foram compreendidas ao longo do tempo, graças a reportagens e relatórios produzidos por organizações envolvidas. Contudo, o reconhecimento dos problemas não significa unidade de pontos de vista na hora de negociar a definição de um termo que seja reconhecido consensualmente.
Um exemplo positivo ocorreu em 1996, quando vários países da América Latina viviam o medo do terrorismo promovido por organizações radicais de esquerda, os países membros da OEA (Organização dos Estados Americanos) foram capazes de firmar a Declaração de Lima, cujo texto afirma:
“1. Que a observância do direito internacional, o pleno respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, o respeito à soberania dos Estados, o princípio da não intervenção e a estrita observância dos direitos e deveres dos Estados consagrados na Carta da OEA constituem o marco global para prevenir, combater e eliminar o terrorismo.
2. Que a violência terrorista corrói a convivência pacífica e civilizada, afeta o Estado de Direito e o exercício da democracia e põe em perigo a estabilidade das instituições nacionais e o desenvolvimento socioeconômico de nossos países.
3. Que o terrorismo, como forma grave de violência organizada e sistemática, que visa gerar caos e medo na população, resulta em morte e destruição e é uma atividade criminosa condenável.
4. Sua mais enfática condenação de todos os atos terroristas, onde e por quem foram cometidos, e todos os métodos utilizados para cometê-los, independentemente da motivação invocada para justificar os atos.”
O terrorismo global impôs às pessoas comuns o custo das regras e dos exageros securitários
A maioria dos acordos e convenções assinados reflete, contudo, a dificuldade de estabelecer amplos consensos, restringindo-se a aspectos táticos. São os casos da Convenção Internacional para a Supressão do Terrorismo à Bomba, de 1997, ou da Convenção Internacional para a Supressão de Financiamento do Terrorismo, de 1999.
Parte importante da dificuldade de se chegar a uma definição para terrorismo amplamente aceita deve-se ao fato de que, se durante a “segunda onda” eram os defensores dos movimentos que lutavam por autodeterminação, os responsáveis por dificultar o estabelecimento de amplos acordos, agora o maior obstáculo origina-se dos Estados (democráticos ou não), preocupados em evitar que seus agentes de segurança possam ser levados a tribunais por crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Reconhecendo que o terrorismo global não é um fenômeno de curta duração, em 2017 a Assembleia Geral da ONU criou um escritório dedicado ao contraterrorismo para desenvolver sua própria estratégia global, independente dos Estados e governos.
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