INDEPENDÊNCIA OU MORTE: A SEGUNDA ONDA TERRORISTA

 

Adotamos a distinção entre “terror de Estado” e “terrorismo” proposta no Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino) para diferenciar atos de violência ou terror político produzido por atores não estatais daqueles resultantes de decisões governamentais. (Leia mais em O que é terrorismo?).

O cientista político David C. Rapoport, autor de vários estudos sobre o tema, propõe dividir o terrorismo contemporâneo em quatro ondas, caracterizadas pela causa e difusão geográfica. Ou seja: para caracterizar uma “onda”, é fundamental identificar o caráter internacional dessas ações. Assim:

  • Primeira onda: surge na Rússia no início da década de 1880, associada aos anarquistas. Daí a junção “anarcoterrorismo” e a falsa noção de que anarquismo é caos e destruição.
  • Segunda onda: associada aos movimentos nacionalistas (como o assassinato de Sarajevo que conduziu à Primeira Guerra Mundial), ganhou legitimidade com o princípio de autodeterminação e incluiu as lutas de descolonização. 
  • Terceira onda: aparece na década de 1970 com a “nova esquerda” ultrarradical, que volta a empregar táticas terroristas em nome da revolução proletária. 
  • Quarta onda: começa em 1979, com a Revolução Iraniana, trazendo as ideologias religiosas de perfil teocrático para o tabuleiro político. 

Naturalmente, o fato de haver um padrão de ações e motivações em determinado período não significa que não possam ocorrer atos terroristas com causas diferentes.

Pintura Futurista-dinamismo-de-um-automovel

O dinamismo de um automóvel (1913), de Luigi Russolo. Os futuristas captaram a excitação febril, ao mesmo tempo selvagem e voraz, trazida pela modernidade industrial. O mundo das máquinas e da velocidade combinava com certo desapego à vida

 

Uma nova ordem internacional

Depois de duas guerras mundiais, a ideia da violência regeneradora baseada na “lei do mais forte” estava incorporada ao senso comum: a Natureza , explicara Darwin, era assim. A incorporação da linguagem militar e de uma certa lógica de guerra por grupos políticos contestadores, sobretudo quando postos diante de grande assimetria de forças, trouxe a violência física para o campo das ações admissíveis no território da política. Essa legitimação da violência teria efeitos ainda mais nocivos quando incorporada pelos Estados, sempre prontos a esgrimir argumentos de segurança para avançar sobre as liberdades públicas.    

Quando falamos em “segunda onda terrorista” identificamos a mundialização do fenômeno. A tática extremista foi adotada nas lutas anticoloniais na África, Ásia e Oceania, após a Segunda Guerra Mundial. O enfraquecimento do poder das metrópoles europeias, a ascensão de duas novas superpotências e a incorporação definitiva do princípio de autodeterminação ao direito internacional, expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, tornaram irreversível o processo de descolonização. Com as independências, novos atores ganharam voz no palco da política internacional, especialmente representado pela Assembleia Geral da ONU.   

O imperialismo era uma ferida aberta e parte da influência dos Estados Unidos na Guerra Fria esteve em aparecer como crítico do sistema colonial e defensor da autodeterminação dos povos. A União Soviética também apoiava a descolonização e enxergava nas lutas de independência o germe de revoluções socialistas. Reino Unido e França tiveram que aceitar, muitas vezes pela força das armas, o fim de seus impérios e das riquezas advindas da exploração de povos além-mar. 

Ho Chi Min

Ho Chi Minh: nacionalista, terrorista, comunista. As muitas faces de um líder político no conturbado século XX

As lutas por independência, pelo direito à autodeterminação, acabaram trazendo novos olhares sobre os significados da luta armada. Casos exemplares como o do Vietnã, onde Ho Chi Minh e seu partido Viet Minh, um dia chamados de terroristas, comandaram a guerra de libertação nacional combatendo sucessivamente japoneses, franceses e norte-americanos até se sentarem à mesa como vitoriosos chefes de Estado.

A partir dos anos 1960 começaram a se multiplicar as críticas ao uso abusivo das palavras “terrorismo” e “terrorista”, utilizadas como uma espécie de espantalho para encerrar qualquer debate sobre temas territoriais relacionados à autodeterminação.

Na Argélia, Palestina, Reino Unido e Espanha, movimentos como a FLNA (Frente de Libertação Nacional da Argélia), a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), o IRA (Exército Republicano Irlandês) e o ETA (Euskadi Ta Askatasuna, em basco, ou Pátria Basca e Liberdade) deixaram milhares de vítimas, entre mortos e feridos, provocando torrentes de debates sobre o significado de “autodeterminação”, “terrorismo”, “terror de Estado”, dos quais derivam as disputas de opinião e os consensos legais. 

 

O direito à autodeterminação

No começo do século XX, enquanto os anarquistas eram caçados indiscriminadamente por acusações de atos terroristas (“Primeira onda”), grupos nacionalistas começaram a adotar a mesma tática para chamar a atenção da opinião pública. Lembremos que foi o assassinato do imperador austríaco por um nacionalista sérvio, em 1914, o deflagrador da Primeira Guerra Mundial.

Pintura: atentado de Sarajevo, 1914

O atentado de Sarajevo, em 6 de junho de 1914. O nacionalista sérvio atirou no futuro imperador austro-húngaro e matou os já moribundos Estados não-nacionais que ainda sobreviviam na Europa e entorno

Em 1919, quando os líderes dos países vencedores se reuniram na Conferência de Paris para estabelecer acordos sobre as reparações de guerra, o princípio da autodeterminação imposto pelos Estados Unidos foi incorporado como base das negociações. Assim foram extintos os impérios austro-húngaro e turco (o russo havia desaparecido em 1917, por força da revolução bolchevique) e substituídos por sete novos países, redesenhando as fronteiras territoriais do leste europeu.

As poucas colônias alemãs foram redistribuídas entre os vencedores.  Ninguém perguntou a opinião dos colonizados. Depois de outra guerra mundial, em 1948, a Carta da ONU reafirmou o direito à autodeterminação e ao autogoverno. 

Nesse quadro, atos terroristas passaram a estar justificados a priori pela necessidade de se lutar contra uma força externa dominadora, cujo poder só existia devido à total opressão. O ato terrorista, essencialmente simbólico, pareceu cada vez mais aceitável ou mesmo “justo”, por expressar a brutal assimetria de poder entre o opressor (e seus prepostos) e os oprimidos. 

Como explicava Frantz Fanon, ativo militante da luta pela independência da Argélia: “Nas regiões coloniais, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e frequentes, mantêm contato com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado.” (Os condenados da terra, Civilização Brasileira, RJ, 1968, p. 28).

Franz Fanon

Frantz Fanon, psicanalista nascido na França, militante político, engajou-se na luta pela independência da Argélia

 

O movimento terceiro-mundista

A Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, reuniu os líderes dos primeiros bem sucedidos movimentos de descolonização, ocorridos na Índia, China, Egito e na própria Indonésia, entre outros. A proposta era formarem um bloco para atuar fora da lógica bipolar da Guerra Fria e somarem forças para cobrar das potências ocidentais seu compromisso com a Carta da ONU e o direito a autodeterminação dos povos. Configurava-se o bloco político do “Terceiro Mundo” (o “Primeiro Mundo” eram os países capitalistas desenvolvidos e o “Segundo”, os países socialistas).

Irmanados pelo passado colonial, herdeiros de opressões e deficiências similares, os países que compuseram o movimento terceiro-mundista foram bastante marcados pelas ideias estatistas e socializantes em voga. Para setores da imprensa conservadora no ocidente, esses governos estavam associados a “perigosos revolucionários” e a “organizações terroristas”.

Tal impressão foi reforçada quando outro famoso “terrorista”, Fidel Castro, conclamou os delegados participantes da Primeira Conferência de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina (Havana, janeiro de 1966) a “responder à violência do imperialismo com a violência armada da revolução”. Por outro lado, conflitos étnicos muitas vezes dificultavam a estabilização dos novos países independentes, conduzindo à ditaduras brutais, com acusações generalizadas de “terrorismo”. 

Apesar da retórica, a verdade é que tanto a União Soviética quanto os Estados Unidos interferiam nesses cenários, estimulando ou refreando o uso da violência contra os inimigos, desde que não degenerasse em guerra geral.  

Conferência de Bandung

Sessão plenária da Conferência de Bandung. Nascia o Movimento dos Países Não-Alinhados

 

Minorias nacionais

Encerrado o processo de descolonização afro-asiático na década de 1970, a questão do direito à autodeterminação continuou a ser a maior causa das ações terroristas. Os protagonistas já não eram povos colonizados, mas minorias étnicas absorvidas durante os processos de formação dos Estados-Nação contemporâneos, que passaram a exigir independência. Era, por exemplo, o caso dos bascos na Espanha; é o caso dos curdos, cujas terras situam-se na fronteira da Turquia com a Síria.

A diferença, nesses casos, é que a ONU não reconhecia a priori o direito à autodeterminação de minorias nacionais, diferentemente do que ocorre com territórios colonizados. O entendimento é que as minorias nacionais contam – ou deveriam contar – com autonomias negociadas e posse plena dos direitos civis.

A multiplicação das causas de minorias separatistas, a partir do final dos anos 1970, foi acompanhada pelo deslocamento das ações classificadas como terroristas para dentro do território de Estados soberanos, com a clara intenção de causar maior impacto sobre os centros de governo. Os debates e diretrizes adotados por esses grupos mostram o uso consciente das táticas terroristas como arma política. Bascos, catalães, corsos, irlandeses, palestinos, albaneses, curdos… a lista nunca mais parou de crescer. 

Cartaz do ETA

Um manifesto político pintado em um muro em Belfast, na Irlanda do Norte, onde o IRA, assim como o ETA no País Basco, reivindicavam independência e autodeterminação

 

Na segunda onda do terrorismo, os assassinatos individuais de monarcas cederam lugar aos de ministros e chefes de polícia e, com o tempo, miraram gente comum. Os debates no interior desses grupos, calcados em uma suposta dialética marxista, levaram à chamada “ação-reação-ação”: provocar ações que promovessem respostas ainda mais brutais da parte dos governos, evidenciando a opressão e o caráter discriminatório do Estado. Objetivo: conquistar o apoio popular. 

Para o historiador Eric Hobsbawm, “O ativismo de minoria, em forma de guerrilhas e terrorismo rurais ou urbanos, continuou, e na verdade se tornou endêmico no mundo desenvolvido e em partes significativas do sul da Ásia e da zona islâmica. Os incidentes de terrorismo internacional, na contagem do Departamento de Estado americano, aumentaram quase continuamente de 125 em 1968 para 831 em 1987, e o número de suas vítimas de 241 para 2905.” (A Era dos Extremos, Cia das Letras, SP,  p. 443).

 

Terroristas ou combatentes da liberdade? 

Pela primeira vez, graças ao novo palco da Assembleia Geral da ONU, o monopólio do discurso político das potências ocidentais começou a ser arranhado e suas atitudes contraditórias passaram a ser apontadas. Por isso, muitos Estados árabes, africanos e asiáticos votavam contra qualquer ação antiterrorismo, argumentando que os movimentos de libertação eram invariavelmente denunciados como “terroristas” pelos regimes contra os quais lutavam.  Para eles, ao condenar genericamente o terrorismo, a ONU agia em defesa do status quo

Os novos Estados independentes propunham uma nova perspectiva, focada nas causas da violência (miséria, frustração, ressentimento, desespero). Em meio aos debates, o valor negativo da palavra “terrorista” foi transmutado em algo positivo, associado à liberdade, revolução e idealismo. Os vietcongues foram enaltecidos como “guerreiros da liberdade”; a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) também adotou o título, bem como os radicais sionistas do Irgun, do mais tarde primeiro-ministro israelense Menachem Begin.

Yasser Arafat e Khofi Annan

Yasser Arafat, o líder e maior símbolo da OLP, e Kofi Annan, chefe da ONU, em encontro no ano 2000 

O palestino Yasser Arafat, líder da Organização para a Libertação da Palestina, entendeu a batalha de comunicação para ganhar a simpatia do grande público ao afirmar, em seu discurso na Assembleia Geral, em 1974: “A diferença entre o revolucionário e o terrorista reside na razão pela qual cada um luta. Pois quem defende uma causa justa e luta pela liberdade e libertação de suas terras dos invasores, colonos e colonialistas, não pode ser chamado de terrorista…” 

Por outro lado, em nome de combaterem o inimigo oculto, os Estados deslizaram para práticas ilegais, como o financiamento de forças paramilitares, esquadrões da morte, centros de tortura clandestinos e prática de assassinatos seletivos… A normalização desses expedientes por parte de instituições de controle dos Estados deu sustentação e facilitou a execução de muitos crimes, financiados com dinheiro público e ao arrepio das leis que deveriam proteger. 

 

A “socialização do sofrimento”

A radicalização das ações e o número de vítimas cresceram junto com a “aldeia global”, anunciada pelo teórico da comunicação Marshall McLuhan nos anos 1960. Isso significou que, diante da crescente integração das comunicações e do consequente aumento na oferta de informações, era necessário ser muito chocante para capturar a atenção do público em segundos e causar pressão intolerável sobre os governos.

Na década de 1990, quando a Guerra Fria acabou e a globalização acelerou, os atos terroristas foram ganhando mais visibilidade com atentados em estações de trem e cafés que serviam para envolver as pessoas comuns na rede do pânico. É o que fica claro no estudo sobre o ETA conduzido pelo sociólogo Jerónimo Ríos Sierra, a partir de entrevistas com antigos militantes.

O autor descreve “uma mudança tática na forma de atuar do ETA em relação às suas vítimas” denominada de “socialização do sofrimento”. Nas palavras de um dos entrevistados: “A socialização do sofrimento não se coloca como uma simples socialização. É a socialização do sofrimento vivido. Não do alheio. De tudo o que sofrem os familiares de membros da organização, e de qual é o sofrimento dos independentistas que não podem exercer seu direito de decisão.” Mas o efeito real dos atos de terror destinados a “socializar o sofrimento” foi o repúdio da maioria, e mesmo os que apoiavam a causa começaram a questionar os métodos. 

Certamente a “banalização do mal” tem parte de sua pedagogia associada a esse fenômeno, pois a opinião pública foi saturada de sangue e distanciamento.

Munich memorial

Parentes e amigos dos atletas israelenses assassinados por terroristas palestinos do grupo Setembro Negro durante a Olimpíada de Munique, em 1972, aguardam a chegada dos corpos no aeroporto de Lod, em Tel-Aviv.  

 

A reação internacional

De acordo com David Rapoport, o ethos revolucionário criou laços significativos entre grupos nacionais separados, reafirmando o velho ideal internacionalista de esquerda. Em contrapartida, como foi feito antes com anarquistas e comunistas, os conservadores não apenas chamavam de terrorismo qualquer coisa que contestasse o status quo recorrendo à violência, como atribuíam as ações de um grupo em particular a todos os seus aliados, criminalizando internacionalmente entidades políticas distintas.

O fato é que o debate internacional não criava consensos capazes de produzir leis e acordos, e as únicas ações efetivas antiterrorismo continuavam a ser os acordos bilaterais de extradição entre Estados e a cooperação da Interpol.  

Até que as ações terroristas começaram a afetar seriamente o setor privado, ao se concentrarem no sequestro de aviões durante a década de 1970. Finalmente as diferenças políticas foram removidas em favor da criação de uma legislação sobre segurança na aviação.

A partir daí, diferentes convenções internacionais criminalizaram atos associados ao repertório terrorista, como sequestro, cárcere de reféns, ataques a funcionários de governos, ataques à bomba contra instalações de governos estrangeiros e financiamento de atividades criminosas.

Um evento paralelo, que também ajudou a facilitar acordos e criminalizar atos terroristas, foi a dificuldade encontrada por muitos dos novos países independentes para se estabilizarem e criarem aparatos de Estado capazes de garantir a autogestão e a autodeterminação. Muitas das lutas pelo poder degeneraram em guerras civis e acusações mútuas de terrorismo entre oponentes. Era hora de transformar heróis em criminosos e ganhar apoio internacional. 

Duas militantes do IRA

Duas militantes do IRA, em 1978. Ou duas terroristas? Depende de quem conta a história

 

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