Um atirador matou 22 pessoas no último 3 de agosto, em uma loja do Walmart na cidade de El Paso, Texas, perto da fronteira com o México. O jovem branco, de vinte e poucos anos declarou serem os mexicanos seus alvos. Ele citou diretamente o atentado contra as mesquitas na Nova Zelândia, em março, no qual o perpetrador justificou sua ação em um vídeo on-line como uma reação à “invasão de imigrantes esmagando a raça branca” destinada a “agitar os inimigos políticos do meu povo”. Note-se que a lógica é a mesma que move extremistas islâmicos: grandes morticínios devem ser capazes de provocar uma resposta capaz de desencadear a “guerra total” contra os inimigos
Na postura adotada desde os ataque na Nova Zelândia e encabeçada pela primeira-ministra Jacinda Ardern, não diremos os nomes dos criminosos. Não lhes daremos a satisfação narcísica – que também é um componente importante na mente de terroristas e assassinos seriais – transformando-os em celebridades instantâneas, no mundo dos superegos inflados.
Em longa entrevista à revista The Atlantic, Christian Picciolini, um ex-supremacista que hoje trabalha com a educação e recuperação de outros militantes, ressalta essa competição pela fama e conta que o Grande Evento admirado por esses criminosos que circulam na deep web continua a ser o atentado de Oklahoma, em 1995, quando mais de cem pessoas foram vitimadas pela explosão de um prédio do governo federal. Segundo o diretor de pesquisa do Programa sobre Extremismo da Universidade George Washington, “a crença no poder da matança em massa [agora] está realmente tomando conta de todos os tipos de terroristas”, diferente dos atentados nos anos 1970 e 1980, mais voltados ao ataque a locais que representavam o poder inimigo, de modo a chamar a atenção da imprensa, mas sem perder o apoio da opinião pública.
Fonte: The New York Times, 4/8/2019
Afinal, o que move os assassinos? Será possível continuar a tratar o problema apenas como uma infeliz combinação de facilidade de acesso às armas de fogo com instabilidades emocionais individuais? Em linguagem bem popular: serão só malucos armados? Um número crescente de vozes tem alertado para a necessidade de pararmos de tratar esses atentados como excepcionalidades, pois estaríamos minimizando um problema que se alastra: o radicalismo branco de extrema-direita. Melhor dizendo, há que se separar os crimes com arma de fogo cujas motivações são realmente pessoais (e que ainda respondem pela maioria das ocorrências), desse novo tipo de assassinatos em massa cometidos por indivíduos comprometidos com a ideologia do supremacismo branco.
Com profundas raízes na formação dos Estados Unidos, o pensamento nativista tem se espalhado pelos países ocidentais. O nativismo não deve ser reduzido a uma simples forma de racismo, pois extrapola o aspecto biológico para associá-lo à questão territorial: a terra, a nação. Se você pensou em nazismo, chegou perto. Só que foram os nazistas que se inspiraram no modelo americano e não o contrário.
Na formação dos Estados Unidos, um país de colonos de diferentes procedências, além dos nativos e africanos, uns mandando, outros obedecendo, o discurso iluminista da igualdade entre os cidadãos equilibrou-se pela distinção entre os Wasp (white, anglo-saxon, protestant) e os demais elementos humanos inferiorizados por critérios raciais, religiosos e linguísticos. É dessa ideia que nasceu a Ku Klux Klan. Não é casual que o aumento da miscigenação populacional e cultural nos Estados Unidos e em outros países “brancos” tenha como resposta o aumento dos casos de ataques contra as chamadas “minorias”.
Bandeiras nazistas se misturam com bandeiras confederadas, exaltando um passado no qual o poder branco era incontestável.
À medida que se multiplicam os atentados praticados a esmo contra civis em pontos aleatórios podemos reconhecer a difusão de uma ideologia supremacista branca, que mistura a religião cristã, o liberalismo econômico e chauvinismo nacionalista. A Web e suas redes antissociais viabilizaram o encontro de milhares de anônimos frustrados com suas existências e em busca de bodes expiatórios. Nelas, fala-se com convicção sobre o “genocídio do homem branco” provocado pelo aumento dos fluxos migratórios globais e pela difusão da religião islâmica. A alta natalidade desses povos “inferiores” é vista como a principal ameaça para a hegemonia dos brancos.
Desse entendimento decorre uma diferença importante em relação aos atentados dos “lobos solitários” dos anos 1980 e 1990: seus ataques focam grupos específicos vistos como alienígenas, contra os quais disparam sua ira. No caso dos Estados Unidos, onde o problema é mais grave, o fato do presidente Donald Trump discriminar particularmente os imigrantes latinos reforça todos os preconceitos nativistas e soa como estímulo para a ação de extremistas.
Em outubro de 2018, em Pittsburgh, Pensilvânia, o ataque ocorreu em uma sinagoga e os judeus foram responsabilizados pelo autor do atentado por trazerem os imigrantes aos EUA com o propósito de destruir o país. Em 2015, foram pessoas negras em uma igreja em Charleston, Carolina do Sul. Já gays e feministas são gente que atrapalha muito a reprodução da espécie e as taxas de natalidade, por isso a homofobia e o machismo são outros temas aglutinadores nessas seitas misóginas.
Segundo dados organizados pela Liga Anti-Difamação (ADL) sobre o número de vítimas em ataques extremistas de 2009 a 2018 nos EUA, 73% das mortes foram causadas por atentados da extrema-direita, enquanto 23% foram causados por muçulmanos radicalizados e 3% por extremistas de esquerda. Ou seja, os extremistas brancos têm se mostrado muito mais perigosos que qualquer outra corrente política. No entanto, isso parece não preocupar a maioria das pessoas, cujo pânico é mais facilmente ativado pelas supostas ameaças de imigrantes, como a eleição de Donald Trump bem o demonstrou.
O anúncio de sua candidatura começou com a declaração de que os imigrantes mexicanos estavam trazendo drogas, praticando crimes e cometendo estupros, justificando a necessidade do muro na fronteira. Depois, em resposta a um ataque em San Bernardino, Califórnia, supostamente relacionado ao ISIS, ele pediu uma lei proibindo a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos. Já a violência que praticada pela extrema direita nativista é relativizada, como se viu no episódio de Charlottesville, Virgínia, quando o presidente declarou também existirem pessoas boas do lado dos manifestantes que reunia neonazistas e nativistas radicais.
O suprematismo branco está se tornando um movimento político extremista tão perigoso quanto o radicalismo islâmico e as polícias e governos precisam mudar a maneira como esses casos vêm sendo tratados e julgados. Nos Estados Unidos, enquanto os meios de comunicação dão grande destaque ao terrorismo islâmico, o crescente número de ataques motivados por ódio racial são tratados como casos isolados. “Isto é, num sentido básico, como o fanatismo norte-americano funciona: os cristãos brancos são simplesmente indivíduos, enquanto todos os outros são vulneráveis à demonização por demagogos preparados para explorar o medo daqueles que são diferentes em troca de poder político”, escreve o analista Adam Serwer, na revista The Atlantic.
Enquanto o discurso populista de extrema-direita mobilizar a polarização social e o medo como estratégias para conquistar o poder, esse tipo de atentado violento tende a fazer um número cada vez maior de vítimas, cada vez menos aleatórias. Nesse final de semana, extremistas de direita e esquerda (os denominados Antifas) realizaram passeatas na cidade de Portland, Oregon, sob forte controle policial destinado a evitar confrontos. Comentando a situação, Trump tuitou: “estamos analisando com cuidado nomear a ANTIFA como ORGANIZAÇÃO DE TERROR”, mas ele não disse uma única palavra sobre os grupos de extrema-direita…
É assim que se choca o ovo da serpente.
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