No ano em que o Sudão do Sul comemora dez anos de existência, seu vizinho setentrional, o Sudão, do qual se separou oficialmente em 2011, vive um período de turbulência ocasionado por um golpe de Estado que ainda não está claramente definido, ocorrido em 25 de outubro. São, hoje, dois “Sudãos”, mas é quase impossível falar de um sem citar o outro.
Os dez anos da independência do Sudão do Sul foram marcados por violenta guerra civil (2013-2018) que consumiu os recursos do jovem Estado e destruiu cerca de 190 mil vidas (ou, dependendo das estimativas, o dobro disso). As disputas pelo poder deixaram cerca de 2,2 milhões de desabrigados, em sua maioria que refugiados, principalmente nos vizinhos Uganda e Sudão.
É o quarto maior contingente de refugiados do mundo e a transferência populacional forçada também ocorre no interior do país. O Sudão do Sul ocupa o 10º lugar no ranking global de deslocados internos, com 1,6 milhão de indivíduos.
Refugiados sul-sudaneses em campos da ACNUR na Etiópia
Segundo relatório do Human Rights Watch de julho de 2021, cerca de 8 milhões de sul-sudaneses enfrentam a fome ou subnutrição. O próprio trabalho humanitário ficou prejudicado pela guerra civil: desde 2013, em torno de 128 trabalhadores de organizações humanitárias, na sua maioria sul-sudaneses, foram assassinados.
Um terço das escolas estão destruídas ou danificadas pelos anos de conflito e pelo seu uso por grupos armados. O apagão na educação é ainda mais grave pelo fato do país ser habitado por 70% de pessoas com menos de 30 anos. Nessa primeira década de existência, aproximadamente 4,8 milhões de crianças estão fora da escola, por falta de acesso, de infraestrutura ou pelo fechamento decorrente da pandemia.
No centro da guerra civil do Sudão do Sul está a manipulação da fidelidade e de ódios étnicos entre dinkas e nuers por facções rivais da elite política do país, que disputam o controle das rendas do petróleo. Massacres continuam ocorrendo mesmo depois do acordo de paz de 2018 . A China figura como maior importador de petróleo do país, garantindo o ingresso de divisas para o aparato estatal, o que reduz o impacto das pressões externas sobre o regime pelo respeito aos direitos humanos.
A palavra Sudão tem origem árabe (bilad-al-Sudan) e designava as terras ao sul do Saara onde viviam os negros. A expansão islâmica na África ajudou a criar uma rede de comércio de pessoas escravizadas em “guerras santas”, que fluíam em direção ao Egito, de onde eram despachadas para os mercados árabes.
Muitas rotas de caravanas seguiam o eixo do rio Nilo. O próprio Nilo e seu proverbial regime de cheias regulares era a causa de um Egito sempre visto como celeiro de povos ao longo da história. Por isso, desde o tempo dos faraós, os governantes do Egito buscaram estender seu domínio sobre todo o curso do rio, até suas cabeceiras. Assim surgiram os faraós negros.
Os séculos passaram e vieram o cristianismo e o islamismo. O cristianismo ficou encastelado na Etiópia e, em nome da “guerra santa”, os árabes continuaram lutando para controlar o Alto Nilo e suas águas estratégicas, que conduziam a grandes riquezas.
Em 1821, o vice-rei do Egito Muhammed Ali ordenou a fundação da cidade de Cartum (hoje, capital do Sudão), na confluência entre os Nilos Branco e Azul. Em 1870, o explorador britânico Samuel Baker, a serviço do quediva Ismail, estabeleceu a colônia de Equatoria, na porção meridional do atual Sudão do Sul.
A corrida imperialista pela África fez do Egito um ponto nevrálgico, sobretudo após a inauguração do Canal de Suez, em 1869. A França avançava pelo norte da África em direção ao Alto Nilo. O Reino Unido precisava garantir o controle sobre o Sudão.
Mas bandeira abolicionista empunhada em nome da “missão civilizadora do homem branco” ameaçava a ordem socioeconômica sobre a qual estavam assentados interesses da elite muçulmana. A oposição ao fim do comércio de escravizados desencadeou fortíssima resistência ao domínio europeu: a Revolta Mahadista, encerrada em 1898, com a imposição de um protetorado informal sobre o Egito pelo Reino Unido. Equatoria foi formalmente anexada no ano seguinte.
O Sudão criado pela partilha imperialista agregava uma população majoritariamente islamizada ao norte, na órbita da influência egípcia, enquanto as terras ao sul eram habitadas por grupos predominantemente animistas. Interessados em deter a islamização do sul, os britânicos tratavam desigualmente as diferentes regiões.
Assim, o sul foi isolado e destinado à ação de missionários cristãos, enquanto as províncias do centro e norte foram beneficiadas, a partir de 1920, pela instalação da barragem de Sennar. Situada no Nilo Azul, a represa alavancou a expansão do cultivo de algodão na mesopotâmia de Gezira, entre aquele afluente e o Nilo Branco.
Batalha de Ondurmã, em 1898. A incapacidade da França em ajudar o Reino Unido a vencer os árabes sudaneses pôs fim às suas pretensões sobre o Egito, deixando o caminho livre para a definitiva imposição da “ordem britânica”
A independência sul-sudanesa, em julho de 2011, resultou do longo histórico de marginalização e ressentimento no interior do Sudão.
O Sudão alcançou a independência em janeiro de 1956, na esteira da revolução egípcia que proclamou a república. Os militares egípcios entenderam que sua própria soberania só estaria assegurada se o Egito abrisse mão de manter uma influência de tipo colonial sobre o Sudão, e assim o Reino Unido foi afastado.
A elite muçulmana assumiu o controle, provocando ressentimentos no restante do país. Já em agosto de 1955, na rebelião Anya Nya (“veneno de cobra”), nas províncias meridionais de Equatoria e Bahr el-Ghazal, os manifestantes reivindicavam a separação entre cristãos e muçulmanos. Desde então sucederam-se partidos e lideranças num conflito secessionista permanente.
Em janeiro de 1983 teve início um novo capítulo da guerra civil, quando o ex-integrante da Anya Nya, coronel John Garang, lançou o Movimento Popular pela Libertação do Sudão (MPLS) e seu braço armado, o Exército Popular (EPLS), para lutar por um Estado federado e laico. O movimento falava em unidade nacional e se dirigia a todas as regiões marginalizadas pelo poder central: o sul e também províncias islamizadas como Darfur, no oeste.
O ditador Omar al-Bashir
Em junho de 1989, um golpe militar alçou ao poder Omar al-Bashir. Iniciava-se uma ditadura brutal, justificada pelo fundamentalismo islâmico. A resistência armada de grupos como o EPLS foi combatida com bombardeios aéreos sobre suas bases civis e com o envio de milícias violentas por terra
O Sudão tornou-se um Estado pária na comunidade internacional, principalmente por abrigar bases da Al-Qaeda entre 1992 e 1996. Mas a pressão internacional após os atentados do 11 de setembro de 2001 e a necessidade de melhorar a imagem externa para atrair investimentos estrangeiros forçaram Bashir a mudar de estratégia. Em 2002, representantes do governo sudanês aceitaram negociar com os rebeldes sulistas.
A consequência imprevista foi que outras áreas do país se sentiram marginalizadas. A panela de pressão explodiu com dois movimentos rebeldes na região de Darfur. A resposta de Bashir foi brutal. O conflito em Darfur deixou cerca de 300 mil mortos e foi descrito como genocídio junto ao Tribunal Penal Internacional, que emitiu dois mandados de prisão contra o ditador sudanês.
Em mais um exemplo de lentidão da comunidade internacional para evitar desastres humanitários, as reações frente aos massacres em Darfur parecem ter sido pesadas para não obscurecer o sucesso das negociações com o MPLS e o acesso às promissoras reservas de petróleo no centro-sul do país. O ditador só caiu no final de 2018, quando a população sudanesa saiu às ruas em protesto.
Foi contra o governo de transição estabelecido naquele momento, composto por civis e militares, que os fardados se insurgiram em 25 de outubro de 2021, destituindo os civis.
Deslocados internos da guerra de Darfur: a limpeza étnica marcou o conflito, no qual os sudaneses não-arabizados foram as vítimas
Firmado em 9 de janeiro de 2005, o Acordo de Paz Global encerrou mais de duas décadas de guerra civil no Sudão. Cartum admitia um Sudão do Sul pela concessão de autonomia administrativa, que se tornou soberania depois do referendo realizado em janeiro de 2011, quando 98% da população votaram pela separação. A independência foi proclamada em 9 de julho, com o Sudão do Sul englobando as regiões históricas de Equatoria, Bahr el-Ghazal e Grande Nilo Superior.
Enquanto a comunidade internacional apostava que a independência geraria estabilidade, a própria elite sul-sudanesa iniciou a pilhagem dos recursos do país. A corrupção era azeitada principalmente pelas rendas advindas da exploração do petróleo, não mais controlado a partir de Cartum.
Em dezembro de 2013 estourou a primeira guerra civil do Sudão do Sul, protagonizada pelas etnias dinka e nuer, um conflito difícil de controlar uma vez que os dois grupos respondem por metade da população do país. No centro do palco, movendo as cordas, estão o dinka Salva Kiir, que ocupava a função de presidente, e o nuer e vice-presidente Riek Machar, chefes das milícias antes escondidas sob o manto das forças armadas oficiais. O que está em disputa são os hubs petrolíferos presentes no país.
Riek Mashar e Salva Kiir, os “senhores da guerra” do Sudão do Sul
Na localidade de Bentiu, responsável pela maior produção de petróleo do estado ironicamente chamado de Unidade, ocorreu o pior massacre da guerra civil. Em 15 de abril de 2014, com todos os tons de uma limpeza étnica, milicianos nuers mataram centenas de homens e mulheres dentro de igrejas, mesquitas e hospitais.
A rádio local foi utilizada para incitar assassinatos e estupros, segundo reportou a Human Rights Watch. Na disputa encarniçada pela cidade, o recrutamento de crianças ocorreu às centenas, tanto por rebeldes quanto pelo governo.
A primeira etapa do conflito terminou em agosto de 2015. Recomeçou um ano depois e se estendeu até o acordo de paz, em setembro de 2018. Na segunda etapa, o centro da violência deslocou-se mais para o sul, onde se situa Equatoria.
A maior complexidade étnica da região somou-se à multiplicação de milícias locais armadas pelas forças rivais anteriores, tornando a violência endêmica. Em 2017, o número de refugiados sul-sudaneses saltou de 1,4 milhão para 2,4 milhões, o terceiro maior contingente na época, atrás apenas da Síria e do Afeganistão.
Em fevereiro de 2020, como consequência do acordo de paz assinado em 2018, foi instalado um “governo de união nacional e transição revitalizado”. Salva Kiir continua no comando, e Riek Machar é o primeiro vice-presidente, ao lado de outros quatro. No Sudão do Sul, o único recurso abundante parece ser o número de vice-presidentes.
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