O Direito Internacional realiza a necessidade dos Estados se relacionarem de modo racional, dado ser impossível recorrerem perpetuamente à guerra. Até o século passado, não estava previsto que o governo de um Estado interferisse nos assuntos internos de outro Estado em nome de valores humanitários. A vulnerabilidade dos súditos frente aos governantes existiu desde as primeiras sociedades e o que ocorria com as pessoas era assunto exclusivo do Estado soberano. Daí a relevância do surgimento do direito humanitário no século XIX como parte importante do processo civilizatório humano, pois ali começamos a relacionar a legitimidade de um poder político ao respeito à vida humana e aos direitos naturais preconizados pela Filosofia das Luzes.
O advento dos movimentos nacionalistas trouxe, porém, um novo tipo de problema para o Direito Internacional, as chamadas “minorias nacionais”. O princípio da auto-determinação (que fora um dos debates importantes no século XIX entre as forças liberais em ascensão e as forças do Antigo Regime) reconhecia o direito de grupos nacionais lutarem por sua independência política e territorial. O problema eram os Estados pouco interessados em abrir mão de parte de seus territórios e riquezas. Resultado: tais minorias passaram a serem vistas como ameaças aos “interesses nacionais”; e quanto mais pediam autonomia, maiores restrições de direitos civis e políticos sofriam. “O desdobramento disso tudo trouxe o ineditismo de um enorme número de displaced people – os refugiados e os apátridas – que se viram expelidos, como mostrou a pensadora Hannah Arendt, da trindade Povo-Estado-Território.” (Celso Lafer).
No turbilhão provocado pela Primeira Guerra Mundial as questões nacionais vieram à tona. Mas uma delas se destacou: o ataque planejado ao povo armênio, em 1915, por forças do Império Turco-Otomano, que produziram um verdadeiro extermínio, com número de mortos na casa do milhão. Como aprenderíamos com o tempo, inaugurava-se a “Era dos Genocídios”. E a questão não se restringia ao chocante número de mortos, mas aos métodos pelos quais esses números foram produzidos. Desde então a história do genocídio armênio tornou-se um daqueles temas que a diplomacia mundial prefere evitar. Por muitas décadas, houve uma disputa de narrativas entre os sobreviventes armênios e os turcos para contar o quê, como e porque aqueles fatos ocorreram.
E enquanto diplomatas, governos, jornais e igrejas debatiam a veracidade do massacre, Adolph Hitler extraía o significado profundo daquela lição da História. Ao tranquilizar seus soldados em relação às possíveis consequências decorrentes da invasão da Polônia, em setembro de 1939, o führer lançou a pergunta cínica: “Quem fala, ainda hoje, sobre o extermínio dos armênios?”
Nós falamos! Falamos porque aprendemos o que aquela história significou. E devemos isso a um homem que dedicou a vida a compreender aquele novo fenômeno (de povos exterminados por seus governos) e a encontrar meios legais para punir tais atos.
Há pessoas que marcam o curso da História pela força de suas convicções. É o caso de Raphael Lemkin, o criador da palavra e do conceito de genocídio e pai da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio da ONU. Judeu, polonês, ele cresceu observando os pogroms que volta e meia ocorriam em sua comunidade. Estudava Linguística na universidade no início dos anos vinte, quando ouviu falar pela primeira vez do caso armênio, acompanhando-o atentamente.
Interessado na questão da punição de mandantes de massacres como método dissuasório capaz de conter a cadeia de comando, transferiu os estudos para a carreira de Direito. Dedicou-se ao assunto, levantou dados e elaborou uma proposta para a recém-criada Liga das Nações a propósito dos crimes de guerra. É interessante observar que a formação primeira de Lemkin, a de linguista, pontua todo o seu trabalho, no qual se destaca a precisão da palavra, que traduz uma precisão conceitual. Nomeando corretamente o novo fenômeno saberíamos agir mais prontamente e com maior eficácia na hora de dar uma resposta. Assim, ele sugeriu à Liga a adoção dos termos – barbárie – para falar do extermínio deliberado de uma população apenas pelo fato de pertencer a um grupo, e – vandalismo – para a destruição de patrimônio cultural visando apagar a história de um grupo. Barbárie e vandalismo deveriam ser classificados como crimes de guerra. Mas a Liga das Nações nada fez.
Raphael Lemkin era promotor público quando a Polônia foi invadida pela Alemanha. Ele fugiu para a Lituânia e Suécia, onde passou lecionar Direito Internacional na Universidade de Estocolmo. Ali decidiu estudar as leis nazistas, tanto na Alemanha quanto nos países ocupados, sua conclusão é que havia um método de incitação do ódio e da violência em larga escala.
“Ninguém estudou a ocupação alemã como uma forma de jurisprudência. Aqui está um advogado que olha para esse horror e tenta entendê-lo como um sistema de leis. Sua principal percepção era que a ocupação, não apenas na Polônia, mas em toda a Europa, havia invertido toda a tradição da jurisprudência européia. E você tem esses decretos insanos. Ele foi o primeiro estudioso a notar a insanidade desse tipo de jurisprudência, a entender seu incessante preconceito racial e a ver que as evidências que ele encontrava de extermínio de grupos não era uma crueldade acidental ou incidental de ocupação, mas a essência de todo o programa. (…) Lemkin publicou suas descobertas em 1944 em Axis Rule in Occupied Europe, e esse livro, agora esquecido, é um raro exemplo de erudição como heroísmo: pesquisa empírica paciente e obstinada por um especialista em direito, cuja finalidade é discernir a lógica infernal do despotismo.” (The Legacy of Raphael Lemkin)
Raphael Lemkin
No final de 1941 Raphael Lemkin chegou aos Estados Unidos e logo foi convidado a integrar o Departamento de Guerra, em Washington, onde continuou sua campanha pela criação de mecanismos legais de punição à discriminação. Foi por essa época que o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, disse que estava ocorrendo um “crime sem nome” na Europa. Então, o advogado-linguista compreendeu que aquele crime de nova natureza precisava de um vocábulo próprio para defini-lo. E assim ele inventou a palavra genocídio, pela junção do radical grego gen, de família, grupo, com o sufixo latino cídio, de assassinato. Além disso, Lemkin apontou os indícios característicos do novo crime, tomando como referência o ocorrido com os armênios e o que estava ocorrendo naquele momento aos judeus, na Europa dominada pelo nazismo.
Para que se entenda a enormidade do trabalho de Raphael Lemkin, é importante sublinhar que quando ele criou a palavra genocídio e descreveu o crime, em 1941, o mundo ainda não conhecia Auschwitz e Treblinka. Foi a intuição derivada da indignação moral de alguém que, sendo judeu e polonês, acabou diretamente atingido pelo problema da discriminação estatal, tanto no plano individual quanto coletivo, antevendo toda a monstruosidade ali contida.
Essas questões foram consideradas pelos representantes dos Estados Unidos quando da instauração do Tribunal de Nuremberg, em 1945. O tribunal militar internacional formado por juízes e advogados dos quatro países aliados pretendia encerrar o longo período da Segunda Guerra Mundial com uma declaração de fé na superioridade da força da lei sobre a força do vencedor. Dessa vez não haveria acordos humilhantes para os vencidos. Dessa vez os responsáveis diretos pela guerra seriam levados ao banco dos réus e obrigados a responderem por seus crimes.
A decisão de sediar os julgamentos na cidade de Nuremberg tinha significado. Ali grandes comícios do Partido Nazista haviam sido realizados. Chamava-se Lei de Nuremberg (1935) a primeira ação de discriminação legal dos judeus com base nas teorias raciais de “pureza de sangue”, proibindo casamentos entre arianos e judeus. Julgar os líderes nazistas em Nuremberg foi uma contra-narrativa emitida por uma nova ordem que se afirmava pelo compromisso com a crença na igualdade fundamental de toda a humanidade.
Foram julgados 24 chefes políticos e militares nazistas entre 1945 e 1946, mas nem todos os principais líderes foram punidos já que alguns se suicidaram. As condenações foram de mortes a longas penas de prisão. Outros 100 réus de diversos setores da sociedade alemã foram incluídos nos processos, que se estenderam até 1949.
O fato é que “genocídio” ainda não havia sido reconhecido e tipificado como crime pelo Direito Internacional e os réus de Nuremberg foram julgados por “crimes de guerra” e “crimes contra a paz” e “crimes contra a humanidade”, já constantes da Convenção de Haia de 1907, que proibia, por exemplo, o ataque a civis.
Enquanto o mundo tomava conhecimento do Holocausto e aprendia a defini-lo como um genocídio, Lemkin reorganizava mais uma vez seus argumentos a partir do aprendizado em Nuremberg. Lições do julgamento: as ações de extermínio contra os judeus não foram precedidas de nenhum tipo de declaração oficial de guerra – assim como no caso armênio -, e o agressor era o próprio Estado. As leis anteriores referiam-se sempre a um agressor externo, não ao Estado que resolve aniquilar uma parte de sua própria população em função de uma característica religiosa, étnica ou política específica! Compreender que o massacre armênio e o Holocausto eram crimes da mesma natureza, compartilhando ideologias e métodos, foi a obra de Raphael Lemkin.
Sempre pensando do ponto de vista legal, formulou a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (ou simplesmente, Convenção contra o Genocídio) para ser apresentada na então recém-criada Organização das Nações Unidas. A Convenção contra o Genocídio foi votada e aprovada no dia 9 de dezembro de 1948. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada no dia 10. Lemkin praticamente ignorou a Declaração, considerando-a inclusive uma “concorrente” aos olhos da ONU. Para o advogado, “declarações” pouco resolviam, ao contrário de leis e regras bem definidas.
Desde então se entende que genocídio é uma ação política perpetrada por um Estado ou uma força que assume o controle sobre partes de um território (em casos de guerra civil, p.ex.) e que se caracteriza por cinco etapas, listadas no segundo artigo da Convenção contra o Genocídio:
Na presente Convenção, entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como:
O texto da Convenção também é bastante detalhado na previsão dos crimes. Outra novidade é o entendimento de que atos cometidos pelos Estados, em momentos de paz ou guerra, contra estrangeiros ou contra seus próprios cidadãos podem ser enquadrados como “crimes estatais”, que são de 4 tipos:
Texto integral da Convenção contra o Genocídio
Ratificação da Convenção contra o Genocídio, assinada em 14 de outubro de 1950, em Nova York. Raphael Lemkin está de pé a direita
Uma corte criminal internacional permanente estava nas ambições da ONU desde seu surgimento, como garantia de efetividade dos acordos consagrados em 1948. Mas a Guerra Fria congelou a possibilidade de grandes consensos internacionais capazes de viabilizar tais ações. Foi seu término, portanto, que, ao instaurar a nova ordem mundial baseada na globalização, trouxe consigo um período de caos internacional com novos e velhos temas aparecendo no teatro da política e exigindo coragem para inovar.
A União Soviética chegou ao fim em 1991; a Guerra da Bósnia e a desintegração da Iugoslávia começaram em 1992; “limpeza étnica” tornou-se um tema cotidiano na imprensa e, dessa vez, as leis contra aqueles crimes existiam! Só não havia nenhum Estado muito interessado em intervir nos Bálcãs…
O choque da opinião pública mundial frente à inação dos Estados Unidos e Europa Ocidental trouxe à memória os temas da Primeira Guerra Mundial. Criou-se um ambiente favorável à realização de uma série de conferências diplomáticas preparadas pela ONU destinadas a criar uma corte criminal. Após alguns anos de negociações, um encontro em Roma com representantes de 148 nações, entre junho e julho de 1998, votou o Estatuto para a criação da Corte Criminal Internacional (ICC, na sigla em inglês). Ficou decidido que apenas crimes ocorridos depois do dia 1º de julho de 2002 seriam julgados. Votaram a favor 120 países; 7 votaram contra; 21 se abstiveram.
O estabelecimento da Corte Criminal Internacional representa progresso no combate aos crimes de guerra. Hoje 106 nações participam da Corte, o que lhe confere ampla legitimidade. O tribunal está sediado em Haia, Holanda, mas pode ser realizado em outros locais. Julga casos de “crimes estatais” (genocídio; crimes contra a humanidade; crimes de guerra; agressão) promovidos por comandantes e militares do alto escalão. É composto por quatro órgãos: a presidência, as divisões judiciais, o escritório do promotor e o secretariado.
No que diz respeito à sua atuação, julga indivíduos acusados de crimes definidos no Estatuto de Roma, sejam eles chefes, auxiliares ou cúmplices. É diferente da Corte Internacional de Justiça, que julga os Estados mandantes de crimes internacionais. Além disso, a ICC só possui jurisdição sobre pessoas que pertençam a Estados assinantes do Estatuto, e mesmo assim cada Estado mantém o dever primordial de processar suspeitos de crimes de guerra em suas próprias cortes. Estados Unidos, China e Rússia não ratificaram o Estatuto.
A Corte Criminal Internacional é uma instituição desvinculada da estrutura da ONU, com quem mantém relação de cooperação.
Texto integral do Estatuto de Roma
Membros do TPI -Tribunal Penal Internacional – ou ICC – Corte Criminal Internacional
Olhando hoje para o legado de Raphael Lemkin o cenário é um pouco frustrante. Começa pela banalização do termo genocídio no debate público, com o enfraquecimento de seu grave significado e implicações. Prossegue com a multiplicação de “crimes estatais” desde que a Convenção foi assinada, em 1948. E torna-se trágico quando percebemos que os governos aprenderam a evitar a palavra genocído, uma vez que dizê-la implica em reconhecer um fato e agir em nome de vidas humanas em perigo, provocando então o efeito oposto, que é a negação até o limite (como ocorreu em Ruanda, por exemplo).
É porque está escrito no Artigo 1º da Convenção contra o Genocídio:
“As Partes Contratantes confirmam que o genocídio, seja cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime do direito dos povos, que desde já se comprometem a prevenir e a punir.”
Michael Ignatieff, um estudioso da obra de Lemkin comenta:
“Aqueles que deveriam usar a palavra “genocídio” nunca a deixam escapar da boca. Aqueles que infelizmente a usam, banalizam para validar todo tipo de vitimização. Escravidão, por exemplo, é chamada de genocídio quando – o que quer que fosse, e era uma infâmia – era um sistema para explorar, em vez de exterminar os vivos. Os povos aborígines do meu próprio país falam de um genocídio microbiano, a tremenda hecatombe de vítimas aborígines de doenças europeias nos séculos XVI e XVII. Você não pode falar em “genocídio microbiano”, pois os micróbios não têm intenções. O genocídio, como uma palavra, ativa uma intenção genocida. “Genocídio” não tem significado algum, a menos que a palavra possa ser conectada a uma clara intenção de exterminar um grupo humano, no todo ou em parte. Todas essas questões retóricas são de alguma importância porque chamar cada abuso ou crime de genocídio torna cada vez mais difícil levar as pessoas à ação quando ocorre um genuíno genocídio.” (The Legacy of Raphael Lemkin)
O fato é que o genocídio se consagrou como uma modalidade de crime típica do século XX, respondendo por um expressivo número dos mortos no século. Estudos apontam para o aumento da frequência dos casos de extermínio em massa, revelando como tais atos passaram a ser considerados “parte do jogo”. As pessoas se acostumaram com sucessivos morticínios que ficarão sem punição. A frase de Hitler ainda ecoa…
O mesmo Ignatieff afirma que Lemkin era um idealista que tentou construir um edifício legal no qual pudesse viver em segurança. É uma bela imagem para alguém que passou a vida deslocado. O judeu polonês acreditava na unidade da humanidade e que a solidariedade bastaria para que as pessoas se movessem para defender umas as outras. Ignatieff, avaliando a questão hoje, com todas as experiências e debates produzidos até aqui, busca salvar o legado de Lemkin com um novo enfoque:
“(…) Não é essa “civilização humana” que compartilhamos, e sim nossas diferenças. O que significa ser um ser humano, o que define a identidade que partilhamos como espécie, é o facto de sermos diferenciados por raça, religião, etnia e toda a multiplicidade de diferenças individuais que nos dão as nossas identidades como criaturas humanas. É uma característica nossa, uma característica biológica nossa – nenhuma outra espécie se diferencia desta maneira. Isso significa um senso de alteridade, um senso de que os seres humanos são outros, que eles são distintos de nós, está na base da própria consciência de nossa individualidade.”
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