Um avião da força aérea dos EUA partiu do aeroporto de Cabul com mais de 600 pessoas, em um dos últimos esforços para dar refúgio aos afegãos que colaboraram com as forças ocidentais.
A retomada do poder pelo Talebã no Afeganistão e a vexatória retirada das tropas americanas, à la Saigon, dominou o noticiário nos últimos dias. A volta ao poder do fundamentalismo teocrático e machista do grupo religioso afegão deve desencadear uma onda emigratória, que começou a se manifestar antes mesmo dos talebãs ocuparem a capital, com a corrida ao aeroporto de Cabul. Ali uma multidão se espremeu e chorou tentando entrar em um dos aviões daqueles que, 20 anos atrás, derrubaram o grupo radical sunita em nome da “guerra ao terror” e dos direitos das mulheres.
Os países ocidentais são os mais preocupados frente a possibilidade de uma nova onda de refugiados atingi-los. E esse risco acaba de crescer significativamente, com o despontar de outro ator político, o ISIS-K, a sucursal afegã do Estado Islâmico, que praticou o atentado terrorista no dia 26 de agosto responsável por mais de 180 afegãos e 13 soldados americanos mortos.
Contudo, os países que mais abrigam refugiados afegãos não são europeus. Como costuma ocorrer em casos de guerras ou perseguições étnicas, são os vizinhos os mais afetados. No caso, são o Paquistão e o Irã os maiores receptores de refugiados afegãos, isso desde os anos 70, quando começou a guerra contra a União Soviética. Agora, com a retirada americana, os dois países demonstram-se menos abertos a aceitar novos refugiados.
Feridos do atentado à bomba ao aeroporto de Cabul são atendidos nas ruas
Há uma mudança generalizada no discurso político vinculado à defesa dos direitos humanos como valor universal. Além do sempre invocado temor de trazer para o próprio território células jihadistas, um número crescente de governos tem caído em mãos de líderes populistas e nacionalistas que mobilizam a xenofobia para obter apoio. Por outro lado, há uma percepção generalizada de que os Estados Unidos não irão mais liderar cruzadas regeneradoras pelo mundo. Ou ainda pior, porque depois de abandonar os curdos na guerra da Síria, agora houve uma traição aos afegãos.
Desde que a volta do Talebã ao poder no Afeganistão foi dada como certa, os países e agências ocidentais se mobilizaram para retirar tropas e funcionários civis do país para evitar que se tornassem alvos de perseguição da parte do novo regime fundamentalista. Além dos ocidentais, havia afegãos que trabalhavam para os serviços diplomáticos e militares europeus e dos Estados Unidos e corriam risco real de serem mortos pelo novo governo. Essa primeira leva de novos refugiados difere-se das demais porque decorre de uma noção implícita de “proteção devida”, por seus trabalhos em favor dos países interventores. Foram esses colaboradores os protagonistas das cenas de caos no aeroporto de Cabul, em tentativas desesperadas de embarcar nos aviões americanos.
Apesar da gritaria, os países europeus receberam muito menos refugiados afegãos ao longo das últimas décadas do que seus vizinhos asiáticos. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) contabiliza 148 mil afegãos vivendo na Alemanha, seguidos de 40 mil na Áustria, 32 mil na França, 30 mil na Suécia e apenas 9 mil no Reino Unido. O contingente não chega nem perto da casa dos milhões vista nos países vizinhos ao Afeganistão. No entanto, o temor de que haja uma entrada em massa de afegãos no continente é gritante – parecem temer uma nova invasão dos bárbaros.
Fonte: ACNUR/Statista
Desde 2001, quando os EUA declararam guerra ao regime do Talebã como parte da “guerra ao terror”, acusando-o de esconder o paradeiro de Osama Bin Laden, o Paquistão e o Irã receberam milhares de afegãos perseguidos pelo regime extremista e fugitivos da situação terrível da guerra em si.
Quando Donald Trump anunciou o acordo para a retirada das tropas dos Estados Unidos, contudo, o governo paquistanes mudou de atitude e passou a sinalizar que não poderia receber um grande número de pessoas sem ajuda externa. Mais pobre que o Irã, o Paquistão alega, desde julho, falta de capacidade para receber mais pessoas, estando no limite de acomodação.
Segundo o ACNUR e o governo paquistanês, existem cerca de 3 milhões de refugiados afegãos no país, metade deles sem registro. A solução de momento sugerida ao ACNUR seria prestar assistência humanitária através da fronteira, com os afegãos retidos em uma faixa de acampamentos fronteiriços, mas do lado afegão.
A posição paquistanesa é firme e já tem gerado violência e abusos na contenção do fluxo migratório. No dia 27 de agosto, dois afegãos foram mortos por militares do Paquistão ao tentarem cruzar a fronteira do posto de Torkham ilegalmente, segundo informações da BBC.
Afegãos se dirigem à fronteira com o Paquistão
A situação no Irã, ao contrário, é de maior abertura. O governo iraniano tem colaborado com o ACNUR para manter as fronteiras abertas desde que a escalada da violência no interior do Afeganistão se agravou. É notável a mobilização histórica do país persa para o acolhimento dos refugiados, provendo acesso a serviços de saúde e educação. No entanto, também o governo iraniano afirmou o plano de manter os novos refugiados próximos à fronteira, prevendo dificuldades na sua assimilação.
O ACNUR dá conta de 780 mil afegãos em refúgio no Irã, dado que também pode estar subnotificado. O Irã apresenta-se como uma espécie de antítese do Talebã, apesar da percepção ocidental de senso-comum apontando para um governo igualmente radicalizado no país. Apesar de ser uma teocracia, o Irã possui liberdades muito maiores relativas àquelas que o Talebã restringiu historicamente no Afeganistão. As mulheres, por exemplo, possuem muito mais liberdade, tendo o direito à educação assegurado pelo regime dos aiatolás.
O país, contudo, se vê como um corredor de refugiados que pretendem chegar à Europa, passando também pela Turquia, que já afirmou intenção de enviar de volta afegãos vindos do Irã. A UE, de certa forma, conta com a disposição do Irã em acolher os solicitantes de asilo para barrar o provável fluxo migratório em direção ao ocidente. E o ACNUR pressiona o Paquistão para que aceite mais refugiados em nome do direito humanitário internacional.
Meninas afegãs estudando em uma escola iraniana. O Irã se tornou um verdadeiro santuário para os refugiados afegãos que fogem das guerras e do fundamentalismo religioso
É essa massa de refugiados tentando desesperadamente escapar do regime do Talebã e entregues à própria sorte que os governos europeus temem que marchem em suas direções em busca de ajuda. As justificativas para recusas são várias, desde a já grande presença de refugiados afegãos e de outras nacionalidades; problemas econômicos e de espaço, incluindo razões sanitárias por conta da pandemia. Imagens icônicas da crise de refugiados sírios ainda queima retinas na Europa.
Desde a crise de 2015, líderes da direita nacional-populista como Marine Le Pen, líder da Reunião Nacional da França; Matteo Salvini, líder da Liga da Itália e Viktor Orban, primeiro-ministro húngaro e líder do Fidesz, entre outros, galgaram apoio nos países europeus. Eles elegeram os imigrantes e refugiados como a principal ameaça à segurança e aos empregos dos cidadãos europeus.
A xenofobia perante essa “invasão bárbara” que supostamente ameaça a “integridade” da Europa cristã e branca, seus empregos e seu “modo de vida”, confronta projetos de acolhimento humanitário. Trata-se de uma situação que constrange os Estados, especialmente os que margeiam o Mediterrâneo e lidam diretamente com as cenas desoladoras de botes abarrotados de imigrantes e refugiados naufragando a meio caminho da salvação. Os partidos tradicionais tentam conter a expansão do discurso anti-imigração que contamina questões maiores e mais complexas como o próprio modelo de democracia liberal.
Cartaz anti-imigração em manifestação da direita radical na Europa, afirmando que os refugiados não são bem-vindos. Trata-se de um trocadilho com a palavra “estupro” (rape) em inglês, unida com “refugiados” (refugees)
A redução do conflito na Síria e a pandemia tornaram as cenas de imigrantes “invadindo” a Europa menos frequentes, o que aparentemente reduziu o apoio à direita radical. Para evitar que volte a crescer, os partidos do centro-liberal têm incorporado parte desse discurso xenófobo, evitando assumir posições demasiadamente favoráveis aos imigrantes.
Armin Laschet, candidato à sucessor de Angela Merkel pela CDU
A Hungria, principal bastião da anti-imigração, mantém sua posição de “não importar problemas sem solução ao solo europeu”. A surpresa vem de outros líderes, como o presidente francês Emmanuel Macron – que chegou ao poder em 2017 derrotando Marine Le Pen – e afirmou dois dias após a queda de Cabul que a França “deveria antever e se proteger de uma onda de imigrantes”.
Já Armin Laschet, presidente do partido CDU da chanceler alemã Angela Merkel e candidato a seu sucessor na eleição federal de 2021, afirmou que “2015 não deve ser repetido”. Laschet subiu ainda mais o tom quando disse que “criminosos devem continuar sendo deportados, inclusive para o Afeganistão”, tratando os refugiados como meros convidados que podem ser expulsos caso cometam uma “ofensa criminal” na Alemanha.
Tais discursos expressam o temor de que uma nova crise de refugiados contamine o debate político em favor das posições populistas anti-imigração, dando novo gás à direita nacional populista. Mas as vítimas são novamente os refugiados.
E há o componente do terrorismo. A associação entre o Talebã e a Al-Qaeda presente no imaginário político internacional permite que os partidos de direita radical explorem o medo do terrorismo acusando a massa de refugiados de esconderem militantes jihadistas disfarçados – como se viu durante a crise de refugiados sírios, associados ao Estado Islâmico.
Os líderes europeus parecem ignorar que, de um jeito ou de outro, esses fugitivos da intolerância e da misoginia talebã chegarão às suas portas: seja caminhando, em busca de alguma salvação, seja como cadáveres, mortos pela perseguição da guerra ou pelas forças de controle de fronteiras.
A imagética violenta do Talebã deve ser explorada por grupos de direita radical para taxar todos os afegãos como potenciais terroristas
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