DESAPARECE A UNIÃO SOVIÉTICA, VOLTA A RÚSSIA IMPERIAL

12 de julho de 2021

OS LIMITES DO DESENVOLVIMENTO SOVIÉTICO

A bandeira da União Soviética com a foice e o martelo tremulou pela última vez no alto do Kremlin no dia 25 de dezembro de 1991. Sua remoção marcou o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas criada a partir da revolução bolchevique de 1917. Naquela mesma noite foi hasteada a bandeira tricolor da  Rússia. 

Na base de evento histórico tão importante quanto inesperado estava Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista (PCUS) e, portanto, o homem mais poderoso da União Soviética. Ele foi o principal responsável pelas mudanças políticas (glasnost) e econômicas (perestroika) que conduziriam à desintegração pacífica da superpotência nuclear.

As reformas implantadas eram uma tentativa de consertar um sistema político que sugava os recursos do país em prol de uma elite dirigente: a cúpula do PCUS. O modelo de democracia liberal ocidental parecia ser a resposta e, acreditava-se, adotá-lo traria rápido desenvolvimento interno, maior competitividade internacional e maior bem-estar social. O que muita gente não imaginava é que essas reformas provocariam o fim da União Soviética.

A súbita implosão da superpotência comunista foi um abalo sísmico profundo, que reconfigurou a ordem política internacional. Começou dois anos antes, em novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim, e terminou com o desaparecimento do antagonista que dava sentido à bipolaridade da Guerra Fria.

Em 2017, no centenário da revolução, a Rússia de Vladimir Putin não se preocupou com celebrações. Em Moscou, no museu ao qual o tema foi relegado, um filminho na saída sintetizava em poucos minutos a história dos feitos soviéticos e terminava com uma bandeira soviética se desmanchando e a foice e o martelo se transformando na águia imperial, com suas duas cabeças guardando leste e oeste, redesenhando o símbolo da Grande Rússia.   

 

A burocratização da União Soviética

O Estado policial e a planificação econômica criados por Stalin mantiveram-se inalterados mesmo após as denúncias de Nikita Kruschev no XX Congresso do PCUS, em 1956. Aos poucos, em parte graças à forte coesão nacional promovida pela vitória na guerra e à nova posição de superpotência, a federação das repúblicas comunistas começou a se estabilizar e o “novo homem soviético” se tornou um fato.

“O soviético era uma pessoa muito boa, ele iria para os Urais, para o deserto, em nome de um ideal, não em troca de dólares. (…) A hidrelétrica do Dniepr, a batalha de Stalingrado, as caminhadas no espaço: tudo isso foi ele. O grande sovok! Até hoje acho bom escrever: URSS. Aquele era o meu país, agora eu moro num país que não é meu. Vivo num país estranho” (depoimento de Ielena Iúrievna para a jornalista Svetlana Aleksiévitch, em O fim do homem soviético, p. 63).

Fila em supermercado urss

No país de informações censuradas, a fila na porta dos supermercados ajudava a calcular o nível de escassez de produtos

Não havia mais ambiente político que justificasse o deslocamento de populações inteiras para os campos de trabalhos forçados, embora seguissem ocorrendo os súbitos “desaparecimentos” de pessoas. Uma contradição do Estado Soviético foi a expansão ilimitada da burocracia estatal – obrigatoriamente filiada ao PCUS – em paralelo ao desenvolvimento econômico do país, acarretando em aumento dos custos de manutenção da máquina pública.

Os projetos de industrialização na Sibéria e Ásia Central, realizados à custa de imenso sofrimento humano, tiveram resultados irregulares, em geral muito abaixo das expectativas. O próprio gigantismo das metas impostas pelos planos quinquenais, elaborados em escritórios distantes, tornava impossível cumprir tudo o que era planejado.

Enquanto isso, o povo soviético aguardava a normalização da vida, do abastecimento de alimentos, do acesso a bens de consumo duráveis – sobretudo quando a Europa Ocidental começou a experimentar um padrão de vida material muito mais confortável graças à ajuda do Plano Marshall. Contudo, a ênfase na indústria pesada e na fabricação de armamentos impostas pela Guerra Fria justificava a permanente necessidade de esperar mais um pouco, provocando crescente insatisfação social. E o resultado foi muita gente comum adotar uma postura cínica perante a vida pública.

É o que conta a tecnóloga Anna Ilínitchna, em depoimento a Aleksiévitch: “Ficávamos nas cozinhas, xingando o poder soviético e contando piadas. (…) A nossa vida noturna… ela não era nem um pouco parecida com a vida diurna. Nadinha! De manhã todos nós íamos para o trabalho e virávamos cidadãos soviéticos normais. Como todos os outros. Suávamos pelo regime. Ou você se conformava com isso, ou ia trabalhar de zelador ou de vigia, não tinha outro jeito de se manter. Voltávamos do serviço para casa… E de novo bebíamos vodca na cozinha, ouvíamos o Vyssótski, que era proibido. Captávamos no chiado do radinho de onda curta a Voz da América” (O fim do homem soviético, p. 83).

 

O custo de ser superpotência

No início dos anos 1980, o custo dos gastos militares se tornou injustificável frente às filas cada vez mais longas e às prateleiras vazias. O mercado negro crescia e evidenciava a existência de dois universos: o dos membros do Partido, com acesso aos produtos do exterior, e o restante da população.

O primeiro sinal de fissura do sistema soviético surgiu na Polônia, um Estado satélite do bloco oriental. Operários qualificados que trabalhavam nos estaleiros de Gdansk fundaram o Solidariedade, um inédito movimento sindical não controlado pelo Partido Comunista. Entre questões prementes de liberdade de expressão e organização, os metalúrgicos poloneses não deixaram de apontar a falta de papel higiênico como exemplo máximo de desorganização econômica.

mísseis parada militar

A exibição em praça pública do arsenal militar era parte fundamental do jogo político da Guerra Fria

A ineficiência do sistema produtivo deixou a União Soviética para trás quando os Estados Unidos começaram a revolução tecnológica da informática, na década de 1970. O custo dos armamentos seria multiplicado em muitas vezes, mais do que já custavam armas atômicas, mísseis balísticos intercontinentais, submarinos nucleares.  Com a política da perestroika, viria à luz o montante dos gastos militares do gigante comunista: 18% da renda nacional.

O programa de defesa espacial contra os mísseis soviéticos, o Strategic Defense Initiative (o famoso “guerra nas estrelas”), lançado pelo governo de Ronald Reagan, obrigava os soviéticos a demonstrarem fôlego mantendo altíssimos gastos militares. Há quem defenda a tese de que o governo americano agia calculando o resultado – o Estado soviético estava à beira da falência.

 

Uma nova geração e um acidente nuclear

As sucessivas mortes dos líderes máximos, Leonid Brejnev, em 1982, Yuri Andropov, em 1984 e Konstantin Tchernenko, em 1985, escancararam a necessidade dos gerontocratas do PCUS passarem o bastão para uma nova geração de líderes. Então, Mikhail Gorbachev, um homem da burocracia, foi escolhido para ocupar simultaneamente os cargos de primeiro-ministro e secretário-geral do Partido.

cúpula soviética Brejnev

A cúpula de anciãos que governava a União Soviética no início dos anos 1980

A partir de março de 1985 quando tomou posse, Gorbachev iniciou reformas econômicas dando início à perestroika. O ousado líder compreendia ser impossível reformar o sistema de produção, baseado no rígido planejamento estatal, sem mudar também o modelo político. O descongelamento proposto implicava em aceitar críticas. A glasnost (“transparência”) era uma lufada de ar fresco projetada para injetar ânimo transformador na sociedade como um todo.  

A explosão de um dos reatores da usina nuclear de Chernobyl, em abril de 1986, provocando o maior desastre nuclear da história e um dos mais dramáticos acidentes ambientais no planeta, abalou as muralhas do Kremlin. A reação inicial expôs o modus operandi autoritário: a decisão do Politburo de negar o que era desmentido dia a dia pelos equipamentos medidores de radiação nos países vizinhos; a demora em evacuar as cidades para não admitir o problema, expondo milhares de pessoas à radiação; a preocupação em proteger o território russo em detrimento das repúblicas vizinhas…

A necessidade de controlar as informações pôs um freio à glasnost favorecendo os setores do Partido que se opunham às reformas e defendiam manter tudo sob controle e segredo. Mas Gorbachev captou o mau-humor da sociedade soviética e decidiu avançar. Segundo o historiador Tony Judt não havia outra opção pois, “para a geração de Gorbachev, o retrocesso ao tempo das detenções em massa e dos expurgos promovidos pelo Partido era impensável” (Pós-guerra – uma história da Europa após 1945, p. 595).

Durante seis anos, as reformas empreendidas pela nova administração garantiram a liberdade de presos políticos; viabilizaram uma imprensa independente, bem como a publicação de livros e artigos até então proibidos; trouxeram dissidentes exilados de volta; em alguns casos, houve até restituição de terras confiscadas durante os anos de coletivização forçada.

Contudo, as expectativas iniciais de enriquecimento rápido não se confirmaram e os resultados da liberdade econômica da perestroika foram muito ruins. A maioria da população nem sequer entendia os mecanismos de uma economia de mercado sem previdência social, pois subitamente todas as redes de proteção do chamado socialismo real deixaram de existir.  A “desestatização” das relações econômicas deu-se a toque de caixa, resultando em privatizações mafiosas nas quais os administradores comunistas das empresas estatais dirigiram esses processos em seu próprio benefício ou de indicados.  

mcdonalds urss

Uma das imagens mais surpreendentes da época: inauguração da primeira loja da rede de lanchonetes americana, em Moscou, janeiro de 1990

 

Afeganistão: o “Vietnã soviético”

Em 1979, tropas da União Soviética entraram no Afeganistão para ajudar o governo marxista contra os guerrilheiros muçulmanos mujahedins. A inesperada resistência rendeu aos grupos de guerrilha os apoios da Arábia Saudita, do Paquistão e dos Estados Unidos. O conflito se estenderia por uma década inteira. Os pífios resultados obtidos por Moscou e o grande número de soldados mortos ou mutilados tornaram inevitável a comparação com o desempenho dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Além do desgaste político, a URSS cambaleava sob a crise financeira decorrente do custeio do conflito.

A longa mobilização de tropas soviéticas trouxe uma consequência imprevista, pois o convívio permitiu aos soldados das diferentes repúblicas compreenderem que o “nacionalismo soviético”, na verdade, era uma máscara para justificar a “russificação” das repúblicas. Foi ficando claro que os ocupantes do Kremlin preservavam operavam como sucessores do antigo Império Russo

tanques abandonados no Afeganistão

Tanques soviéticos abandonados nas terras áridas do Afeganistão

Em maio de 1986, as tropas soviéticas começaram a deixar o Afeganistão. Era parte da estratégia do novo governo e sua glasnost. Encerrando a guerra, Gorbachev também esperava amainar aquele tipo de discurso crítico na base militar. Os últimos soldados saíram três anos depois. 

 

O desarmamento nuclear como autodefesa

O sucesso da nova diretriz representada pela glasnost dependia, em parte, de um reordenamento da política externa da União Soviética. A necessidade de reduzir despesas e cortar gastos militares não podia ser vista como enfraquecimento da superpotência comunista.  

A condução da nova política externa ocorreu sob a batuta de Edouard Shevardnadze, chanceler de 1985 a 1989. Membro do Partido Comunista da Geórgia desde o final da Segunda Guerra Mundial, Shevardnadze foi um dos pais da perestroika e era membro do Comitê Central do PCUS, onde defendeu a indicação de Gorbachev para Secretário-Geral. 

Coube ao chanceler a difícil missão de negociar com o governo do republicano Reagan que, em direção oposta, falava em endurecimento da Guerra Fria. No célebre discurso sobre o “Império do Mal”, de 1983, o presidente americano descrevera a URSS como um “centro demoníaco” no mundo.

Depois de uma primeira reunião infrutífera com Reagan em 1985, em Genebra, o acidente de Chernobyl empurrou Gorbatchev para um novo encontro, em outubro de 1986, na capital da Islândia. A Conferência de Desarmamento em Rejkjavick marcou uma mudança definitiva na Guerra Fria, pois parte dos acordos determinava a destruição bilateral de mísseis de médio alcance e congelava os investimentos em novas armas. Outro tema da reunião foi a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão.

Gorbachev e Reagan, em 1987, assinam o Tratado INF, de redução de mísseis nucleares intermediários

 

A DESINTEGRAÇÃO DO BLOCO SOVIÉTICO

Gorbachev entrará para a História com o mérito de haver evitado que o colapso da União Soviética degenerasse em guerra civil e, ainda mais assustador, provocasse um embate nuclear. O que muitos críticos consideram uma postura vacilante do líder soviético – e talvez, à época, fosse mesmo – era a sua indisposição para o confronto. Um líder máximo da União Soviética disposto a negociar e ceder era algo inédito.

Quando Gorbachev deixou claro que, desta vez, não haveria intervenção das tropas do Pacto de Varsóvia para conter manifestações populares no Leste Europeu, a panela de pressão começou a apitar. O ano de 1989 foi marcado por manifestações generalizados da sociedade civil nos países do bloco soviético, com milhares de pessoas nas ruas pacificamente dizendo “basta” e pedindo liberdades.  Na Polônia, a central sindical Solidariedade obteve reconhecimento legal.

corrente humana bálticos

Nas repúblicas bálticas, uma das primeiras grandes manifestações civis a atingir a unidade da URSS

As coisas começaram a ganhar velocidade a partir de 23 de agosto de 1989, aniversário de 50 anos do Pacto Ribbentrop-Molotov assinado por Stalin e Hitler estabelecendo a não-agressão e, secretamente “entregando” Letônia, Estônia e Lituânia para a ocupação de forças soviéticas. O PCUS, que sempre negara a existência daquela cláusula, finalmente a reconheceu, uma semana antes do aniversário.

Naquela quarta-feira, uma corrente de mãos dadas com mais de 660 quilômetros de extensão e cerca de dois milhões de pessoas se formou ao longo da rodovia Vilnius-Riga-Talin, unindo as três repúblicas bálticas para lembrar ao mundo porque eles haviam se tornado parte da União Soviética.

Em outubro, cercado de grandes expectativas, Gorbachev foi à Alemanha Oriental para o aniversário de 40 anos da criação do Estado. Em um discurso para uma plateia de estudantes, ele mandou um aviso ao premiê linha-dura, Eric Honecker: “Um governo que não muda junto com a vida está condenado ao desaparecimento”. Tradução: Moscou não mobilizaria o Pacto de Varsóvia para manter a ordem na Alemanha Oriental. Semanas depois, o maior de todos os símbolos da Guerra Fria veio abaixo. O Muro de Berlim foi derrubado em 9 de novembro. Uma página da História estava sendo virada naquele instante – e todos sabiam disso. 

 

A última reação do mamute soviético

A própria União Soviética não resistiria por muito mais tempo.  As elites políticas comunistas das 15 repúblicas aderiram à nova onda separatista, muitas delas mobilizando sentimentos nacionalistas retrógrados. Na prática, o que estava em curso era uma violenta disputa entre diferentes grupos da burocracia, incluindo aqueles que ainda defendiam o regime, pelo controle dos recursos existentes, cuja posse originaria as futuras elites econômicas nacionais.

Ironicamente, foi a república da Rússia quem deu o golpe de morte no Estado soviético, quando o Congresso de Deputados do Povo declarou-se soberano para convocar eleições presidenciais. Boris Yeltsin, político do PCUS com longa história, que já havia sido prefeito de Moscou, venceu e foi empossado em julho de 1991. Nos últimos anos, Yeltsin seguia linha de ruptura com o Partido e, na prática, pretendia conduzir a perestroika e a glasnost às suas últimas consequências. Na condição de presidente eleito, ele tinha algo de que Gorbachev carecia: a legitimidade do voto popular.

gorbachev charge

Gorbachev, estadista sem Estado

Quando os parlamentos da Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão seguiram o gesto autonomista – porque não se falava abertamente em deixar a federação soviética – Gorbachev ainda tentou propor um novo arranjo, com a reorganização de poderes numa Comunidade de Estados Independentes (CEI). A assinatura do novo tratado estava prevista para agosto, mas foi suspensa devido à tentativa de golpe de Estado contra Gorbatchev.

Era a última chance do establishment burocrático-militar do PCUS reagir às mudanças que cancelavam seu poder. Gorbachev “desapareceu” em 19 de agosto e, quando se consumava o golpe, aconteceu o inesperado. Yeltsin foi às ruas de Moscou, já tomadas por manifestantes agitados, e convocou o povo se unir contra os golpistas, exigindo o retorno do idealizador da glasnost.

A reação no exterior foi rápida na condenação do golpe de Estado. No terceiro dia, sem conseguir conquistar manter a coesão das Forças Armadas e sob intensa pressão, os golpistas desistiram e Gorbachev foi reconduzido à capital. Agora, era Gorbachev quem devia seu poder a Yeltsin. A União Soviética havia ficado mais frágil que a Rússia. A velha carapaça do Estado Soviético não servia mais…

No 25 de dezembro de 1991, a bandeira com a foice e o martelo baixou pela última vez e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixou de existir. Gorbatchev escolheu deixar o Kremlin num dia santo, o Natal.

 

A VOLTA DA ÁGUIA IMPERIAL RUSSA

A morte da União Soviética foi decidida duas semanas antes da partida definitiva de Gorbachev. No 8 de dezembro, os presidentes das repúblicas da Rússia, da Ucrânia e da Bielorrússia reuniram-se em Minsk para assinar o Pacto de Belaveja, que previa uma nova forma de associação entre esses países e punha fim ao Estado comunista criado pela Revolução de 1917. A Comunidade de Estados Independentes (CEI) foi criada oficialmente em 21 de dezembro, quando os mesmos presidentes voltaram a se reunir para referendar os Protocolos de Alma-Ata. Nas semanas seguintes, à exceção das três repúblicas bálticas, todas as demais repúblicas da antiga URSS aderiram à CEI.

Assinatura do Protocolo da Alma-Ata

Os presidentes das antigas repúblicas soviéticas reunidos para formar a CEI

A Rússia pós-comunista, porém, manteve os mesmos objetivos estratégicos desenhados na época dos czares, como o controle das saídas para o Mar Negro, o Pacífico, o Ártico e o Báltico. Como era de se imaginar, a rivalidade com a Ucrânia produziu os capítulos de maior tensão, começando pelo acesso ao mar Negro e aos “mares quentes”, passando pela península da Criméia, para onde os tártaros haviam obtido o direito de retornar na época de Gorbatchev, terminando com as armas nucleares instaladas na região.

Não por acaso, durante o governo de Bill Clinton, os Estados Unidos tiveram como uma de suas linhas mestras a aproximação com Kiev, que controlava recursos importantes do velho arsenal soviético. O presidente dos EUA e Boris Yeltsin tiveram algumas rusgas públicas à época.

Já a região do Cáucaso, também estratégica, seria abalada pelo separatismo checheno. Em dezembro de 1994, Yeltsin ressuscitou a alma imperial russa ao assinar um decreto afirmando que a Rússia “protegeria por todos os meios necessários os interesses de seus concidadãos no estrangeiro”. A política de “russificação” de Stalin ressurgia na Rússia pós-soviética.

Dias antes, o exército russo invadira a Chechênia, onde permaneceria por dois anos até se retirar sem ter resolvido o problema. O governo russo recebeu cobranças duras do Ocidente em decorrência de sucessivas violações de direitos humanos durante o conflito.

 

Órfãos de um sonho

Idosas vendem seus pertences

Os mais velhos foram os que mais tiveram dificuldades para se adaptar. Vender os próprios pertences era, muitas vezes, a única opção

O fim da União Soviética atingiu milhões de pessoas que simplesmente não compreendiam suas novas “nacionalidades” e continuaram a reivindicar a “pátria soviética”. A reorganização política provocou conflitos sangrentos, porém localizados. Na Rússia, Yeltsin concedia autonomia informal às minorias, sem jamais solucionar os conflitos latentes.

Em 1993, deflagrou-se uma crise constitucional entre a presidência e o parlamento russo. Yeltsin recorreu às tropas para conter a população, a um custo de 187 mortos e 400 feridos, segundo estimativas do próprio governo. A democracia não se instalaria de uma hora para outra, e os vícios autoritários não paravam de se manifestar.

A nova Rússia manteve o processo de desestatização e desregulamentação das atividades econômicas, deixando subitamente milhões de trabalhadores em condição precária. O resultado imediato foi caótico e brutal, sobretudo, para os mais vulneráveis. Em 1999, mais de 13% da população russa estava desempregada.

 

O novo czar

O ex-integrante do PCUS e membro da KGB, Vladimir Putin foi ministro de Yeltsin e eleito seu sucessor no ano 2000. De lá para cá, mais de duas décadas depois, o presidente russo permanece no poder e não há sinais de que pretenda deixá-lo. Diferente da geração de Gorbachev e Yeltsin, que acreditava ser possível conduzir reformas em ambiente democrático, a de Putin nunca teve essa preocupação. Para os novos donos do poder na Rússia, o importante é preservar o status de potência nuclear e assegurar aos “amigos do czar” o acesso privilegiado ao mundo dos negócios.

Putin a cavalo

Putin ama a imagem de líder viril, que governa com pulso firme e dá rumo ao povo simples. Um novo czar..

Putin impede qualquer contestação ao seu poder e, em estratégia tipicamente populista, confunde-se com a própria Rússia. Denúncias de assassinatos e envenenamento de opositores, como no caso de Alexey Navalny, se tornaram marca registrada do putinismo. O presidente governa sem qualquer oposição real, pois controla os parlamentares e capturou as instituições que poderiam servir de freios e contrapesos a seus abusos.

Nenhum veículo de mídia está fora de controle ou censura do Kremlin. Putin opera pelo medo, subordina o Judiciário e manipula tecnologias para controlar as redes sociais

O líder russo restaurou a antiga aliança imperial entre o Kremlin e Igreja Ortodoxa, que voltou a desfrutar de liberdade com a glasnost. O pacto com as autoridades religiosas funciona como veículo de ação no campo dos símbolos e valores – matérias constitutivas da política. Enquanto o líder viril desfilava para fotos, estimulava-se a homofobia e restringia-se os direitos civis da comunidade LGBT.

A captura política da religião veio mesmo a calhar desde os atentados do 11 de setembro de 2001. A “guerra ao terror” de George Bush forneceria ao governo russo um excelente pretexto para lidar com minorias separatistas, especialmente quando muçulmanas, ajudando a transformar a islamofobia em discurso político. Hoje, o governo da Chechênia, aliado de Moscou, utiliza-se da mesma retórica homofóbica.

“Ideias antiquadas estão de volta: do Grande Império, da “mão de ferro”, do “caminho peculiar da Rússia”… Restituíram o hino soviético, existe um Komsomol, só que ele se chama Náchi, existe o partido do poder, que copia o partido comunista. O presidente tem o mesmo poder do secretário-geral, Absoluto. Em vez do marxismo-leninismo, a Igreja Ortodoxa…” (O fim do homem soviético, p. 29). 

 

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