Adriano Lucchesi

(Diretor da Atlantic Connection Travel)

 

Precisamente às 11:28 da manhã de 12 de agosto de 2000, horário de Moscou, uma forte explosão foi detectada pelo NORSAR, instituto norueguês de monitoramento sísmico. Minutos depois, às 11:30, uma segunda explosão ainda mais forte, equivalente a 3,5 graus na escala Richter (equivalente ao impacto de duas toneladas de TNT), decretou o destino final do submarino nuclear russo Kursk.

Nas águas geladas do mar de Barents, a 80 quilômetros da península de Kola, leste de Murmansk, o Kursk submergiu a uma profundidade de 116 metros, sepultando todos os 118 tripulantes à bordo. Investigações posteriores concluíram que as explosões mataram a maioria deles instantaneamente, mas pelo menos 23 sobreviveram e poderiam ter sido salvos.

Vladimir Putin, em seu primeiro ano como presidente da Rússia, rejeitou ofertas de resgate dos Estados Unidos, Reino Unido e Noruega. Somente após diversas tentativas frustradas por parte da marinha russa, e a certeza de que não haveriam informações militares comprometedoras, Putin aceitou a oferta externa. Era tarde: já estavam todos mortos.

 

O destino dos opositores

Em 7 de outubro de 2006, aniversário de 54 anos de Putin, foi assassinada a tiros, no elevador de seu edifício, centro de Moscou, a jornalista e escritora Anna Politkovskaya. Crítica ferrenha da segunda guerra da Chechênia e do governo, a defensora dos direitos humanos é autora do livro Putin’s Russia: life in a failing democracy.

Terroristas chechenos ocuparam uma escola em Beslan, na região autônoma da Ossétia do Norte, em 1 de setembro de 2004, fazendo mais de mil reféns. Diante do avanço policial, os terroristas deflagraram um massacre que terminou com 333 mortes, inclusive 186 crianças. Durante a crise, Politkovskaya foi envenenada quando se deslocava para a escola num voo da Aeroflot, após ingerir chá servido por um agente disfarçado de comissário de bordo.

Dois anos mais tarde, pouco antes de ser assassinada, a jornalista perguntou ao ex-agente de segurança da FSB (antiga KGB) Alexander Litvinenko se a sua vida estava em risco. A resposta foi positiva: Litvinenko recomendou-lhe que deixasse a Rússia imediatamente.

O próprio Litvinenko seria a vítima seguinte do Kremlin. Ele morreu em Londres, em 23 de novembro de 2006, envenenado com polônio radioativo por antigos colegas do serviço secreto russo. Autor do livro Blowing Up Russia: the secret plot to bring back KGB power, Litvinenko investigava dois temas explosivos para Moscou: o envolvimento direto do governo russo nos atentados terroristas chechenos de 1999 a conjuntos residenciais em Moscou e o suposto passado de pedofilia de Putin, nos seus tempos de agente de inteligência.

Os atentados sempre foram atribuídos a terroristas chechenos, que negam veementemente a autoria. Putin sempre usou tais atentados como argumento fundamental para as guerras na Chechênia, reativando o nacionalismo russo e também legitimando seu governo autoritário e violento.

Boris Nemtsov foi assassinado com quatro tiros pelas costas, em 27 de fevereiro de 2015, a poucos metros do Kremlin, quando voltava a pé para casa, em companhia de sua namorada. Político liberal de oposição, vice-primeiro-ministro entre 1997 e 1998, no governo de Boris Yeltsin, notabilizou-se por atacar a corrupção generalizada do governo russo, com documentos e provas concretas sobre as operações fraudulentas do governo. Dois dias antes de sua morte, havia organizado um protesto contra a anexação da Crimeia e a ocupação russa do Donbass. Estava prestes a divulgar um dossiê sobre a criminosa política russa na Ucrânia.

Tanto o assassinato de Politkovskaya como o de Nemtsov foram atribuídos oficialmente a pistoleiros de aluguel chechenos, que foram condenados e presos, mas jamais foi divulgado quem teria sido o mandante dos crimes. No caso de Nemtsov, Putin afirmou publicamente que aliados políticos de Nemtsov teriam cometido o crime com a única intenção de implicar o Kremlin.

A lista de jornalistas e adversários políticos assassinados durante a dinastia Putin é longa – aqui, citamos apenas os casos mais conhecidos fora da Rússia. Já a lista dos que são enviados para prisões nos confins da Sibéria é ainda mais extensa, como o opositor Alexei Navalny, também envenenado, em agosto de 2020. Todos os casos possuem envolvimento direto do FSB, julgamentos de fachada e falsos condenados. Não se trata de suspeita ou hipótese: há investigações conclusivas, dentro e fora da Rússia, que expuseram os detalhes de cada episódio.

 

Fábulas putinistas

As barbáries vão muito além dos envenenamentos e assassinatos de opositores. Uma série de investigações independentes apontam o Kremlin como autor dos atentados de 1999 em Moscou, contra o próprio povo russo. Na época, Putin ainda era o primeiro-ministro de Yeltsin, mas já havia traçado seu plano de criar uma narrativa para invadir e aniquilar a Chechênia. Já o massacre na escola de Beslan foi perpetrado indiretamente pelas forças de segurança de Moscou, quando invadiram a escola sob um comando direto de Putin, mesmo sabendo da presença de centenas de crianças.

E claro, há as guerras. O modus operandi é sempre o mesmo: a propaganda putinista extrai algum fato verdadeiro e constrói uma fábula rigorosamente falsa a partir dele. O que vem a seguir é o extermínio de cidades e civis, até a reconquista do controle militar e político.

É a história das guerras do Cáucaso (Chechênia, Daguestão, Ingushetia) ou de conflitos externos congelados, onde os territórios ocupados (Transnístria, Abkhazia, Ossétia do Sul, Donbass) vão sangrando aos poucos. Com o êxodo dos habitantes originais, prevalecem os que apoiam o governo russo, os que são beneficiados com a guerra e a corrupção, ou aqueles que não tem alternativas senão aceitar um novo passaporte russo.

O separatismo dentro da própria Rússia sempre foi mais vigoroso e evidente que na Ucrânia ou na Georgia. Os argumentos de “desnazificação” ou “proteção à população russa” na Ucrânia são rigorosamente falsos. Para dar algum traço de verossimilhança à narrativa separatista, a Rússia utiliza-se de tropas mercenárias, como o Grupo Wagner, organização paramilitar que, de fato, é controlada pelo governo russo.

Por essa via, Putin consegue negar, quando conveniente, a participação direta das tropas russas em diversos conflitos. Exemplos não faltam: Síria, Líbia, República Centro-Africana, Mali e Moçambique, onde os limites entre exército russo e o Grupo Wagner praticamente inexistem. O grupo mercenário esteve presente na anexação da Crimeia e na invasão do Donbass, com destaque especial ao míssil russo que abateu o voo 17 da Malaysian Airlines em 2014, matando todos os 298 passageiros.

O putinismo sintetiza a convergência do que existia de mais corrupto na antiga URSS e o que existe de mais podre na Rússia atual. Mas a Rússia é muito mais do que isso. A vitória da Ucrânia, ainda que distante e a um custo altíssimo, poderá representar não apenas a sua liberdade mas, ironicamente, também a dos seus agressores.