DIREITOS CIVIS SOB QUARENTENA

 

Demétrio Magnoli

30 de março de 2020

 

As pessoas podem ser colocadas sob quarentena em cenários de emergência humanitária, mas não os direitos civis. Essa mensagem foi enfatizada por um grupo de especialistas em direitos humanos da ONU, num comunicado publicado em 16 de março.

O apelo, dirigido aos Estados, adverte para tentativas de utilizar a emergência sanitária como ferramenta destinada a reprimir oposicionistas ou dissidentes. “Enquanto reconhecemos a severidade da atual crise de saúde e sabemos que o uso de poderes de emergência é permitido pelas leis internacionais, urgentemente lembramos aos Estados que qualquer resposta emergencial ao coronavírus deve ser proporcional, necessária e não-discriminatória”.

 

Imagem de satélite dos canais de Veneza depois da imposição da quarentena

A China é um destinatário óbvio da mensagem. Na etapa inicial da epidemia, o regime chinês silenciou os médicos de Wuhan que tentavam dar o alerta sobre a nova doença. Na etapa seguinte, a imposição da quarentena coletiva na província de Hubei foi realizada por vasta mobilização de meios policiais e militares. Hoje, quando declinam as taxas de infecção no país, acentua-se a vigilância eletrônica dos cidadãos aperfeiçoada durante a crise sanitária.

Os especialistas da ONU não mencionaram o triste papel desempenhado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – mas teriam o dever de fazê-lo. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, celebrou repetidamente as iniciativas chinesas, calando-se sobre a repressão aos médicos e a violação sistemática de direitos básicos dos cidadãos. Ghebreyesus cobriu-se com o manto da proteção da saúde global para deflagrar uma operação política de aproximação da OMS com o governo chinês.

“Estamos em guerra” – a expressão “guerra ao coronavírus”, extraída do senso comum, figurou no núcleo do discurso à nação proferido pelo presidente francês Emmanuel Macron no mesmo dia em que os especialistas da ONU publicaram seu apelo. A substituição do conceito de emergência sanitária pelo de guerra tem implicações potenciais dramáticas.

Na guerra, governos adquirem poderes arbitrários, editando leis de exceção, estabelecendo tribunais especiais e decretando censura à imprensa. Macron certamente não pretendia extrapolar as fronteiras da democracia, mas forneceu um álibi perfeito a regimes tirânicos determinados a expandir ainda mais suas ações repressivas.

 

Em nome da “guerra”

Chen Qiushi em Hong Kong, durante as manifestações de protesto de agosto de 2019

Chen Qiushi, um advogado e ativista de Wuhan, passou a postar vídeos sobre o cenário em sua cidade desde 24 de janeiro, dia seguinte ao início da quarentena. Os vídeos revelaram o estado crítico dos hospitais e informaram reportagens da rede americana CNN. Não duraram muito. Logo após a morte do doutor Li Weinlang, um dos primeiros médicos a soar o alerta, o ativista foi colocado sob quarentena forçada.  

Num vídeo de 30 de janeiro, Chen Qiushi confessou que estava assustado: “Diante de mim, está o vírus; atrás, a polícia chinesa”. Ele tinha razão. Sua detenção e quarentena forçada não decorreram de algum sintoma da Covid-19 ou de teste de infecção, mas do seu desafio à censura estatal. Logo depois de isolar Chen Qiushi, o regime apagou todas as suas postagens nas mídias sociais.

A OMS exibe a China como modelo. A ditadura egípcia segue seu exemplo. Em 17 de março, o regime comandado pelo ex-general Abdel Fatah al-Sisi cassou a credencial jornalística da repórter Ruth Michaelson, que trabalha para o jornal britânico The Guardian. Dez dias depois, ela foi expulsa do país. Seu “crime”? Informar que uma investigação científica descobriu que o Egito tem muito mais casos de infecção do que os oficialmente comunicados.

A investigação, aceita para publicação na respeitada revista médica Lancet, estimou que, semanas atrás, quando o governo egípcio registrava três casos de infecção, a epidemia já se alastrava para algo entre 6 mil e 19 mil pessoas. No dia seguinte à publicação da reportagem, Michaelson foi convocada para uma reunião de mais de três horas com funcionários do serviço de inteligência que a acusaram de reportar falsidades e disseminar o pânico. Sua expulsão coloca um ponto final na presença de correspondentes de jornais britânicos no Egito, pois o jornalista Bel Trew, do Times, foi expelido do país em março de 2018.

 

Quarentena da informação

 Os casos de Chen Qiushi e Ruth Michaelson indicam uma tendência. Preocupada com a imposição de quarentena sobre os direitos humanos e as liberdades civis, a organização Human Rights Watch (HRW) publicou extenso documento sobre os limites das prerrogativas emergenciais dos governos. Nele, encontra-se um elenco sumário de violações flagrantes do direito à livre expressão e à informação cometidas sob o pretexto da “guerra” à pandemia.

Ruth Michaelson, correspondente do The Guardian expulsa do Egito

A HRW menciona o já conhecido caso da China, que intimidou e colocou sob detenção inúmeras pessoas dedicadas a reportar online sobre a epidemia, uma prática classificada oficialmente como “disseminação de boatos”. Cita, ainda, o Irã, cujo regime entrega-se sistematicamente à censura da internet e, na hora do início da epidemia, ocultou informações sobre a amplitude da emergência sanitária. Um terceiro caso é o da Tailândia, onde jornalistas online e agentes de saúde que criticam a resposta governamental à crise sofrem intimidações oficiais e ameaças de ações judiciais retaliatórias.

Mas o relatório também reserva elogios a governos que cumprem o dever de fornecer informação correta às sociedades, como os da Coreia do Sul, de Taiwan e de Cingapura. Nesses países, a epidemia vem sendo contida sem o recurso a quarentenas forçadas ou à vigilância policial autoritária. A credibilidade obtida pelos governos conferiu-lhes autoridade moral para persuadir os cidadãos a seguir regras apropriadas de distanciamento social.

“A situação é séria. Levem a sério.” No seu primeiro discurso político televisionado desde que chegou à chefia de governo, há quase 15 anos, a primeira-ministra alemã Angela Merkel apostou na responsabilidade coletiva e na solidariedade social. Nem todos os governos democráticos fizeram a mesma aposta.

Os populistas de direita Donald Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro, no Brasil, preferiram falar de um “vírus chinês”, apostando na xenofobia, e enveredaram pelos caminhos do negacionismo, subestimando a pandemia. Sem surpresa, clamaram contra a imprensa, acusando o jornalismo de difundir pânico e ampliar as consequências de “uma gripezinha”. Eles invejam os governantes da China e do Egito, que têm os meios para colocar sob quarentena a liberdade de informação.

 

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