AUTORITARISMO SE ESPALHA COM O VÍRUS

 

Eugênio Bucci

(Jornalista, Professor Titular da ECA-USP e articulista do jornal O Estado de S. Paulo)
20 de abril de 2020

 

O vírus do autoritarismo será mais perigoso que o novo coronavírus? Ou, como será a vida depois da morte? Ou, menos metaforicamente, como vai se comportar a sociedade globalizada depois que o anjo degolador da Covid-19 fizer o seu trabalho? Haverá volta ao “normal”?

Esse anjo não mata apenas pessoas. O nosso velho modo de viver entrou em agonia. Vemos isso claramente no congestionamento dos cemitérios e nos cadáveres insepultos nas ruas de Guayaquil, no Equador, mas há mais. Em muitas nuances dos dias e das noites, insinua-se o presságio de que alguns pilares daquilo a que nos habituamos a chamar de civilização está morrendo. Pedaços dos antigos sistemas de ideias fenecem. Pode ser um parâmetro ultraliberal de economia, pode ser a forma de planejamento da saúde pública, pode ser a crença inabalável de que há soluções nacionais para impasses globais, pode ser o individualismo primitivo – mas estamos vivendo uma morte aos pedaços. E o que virá no lugar?

A pergunta virou mote de tertúlias virtuais – evidentemente. A classe média fútil e as celebridades vãs, que falam pelos cotovelos sobre uma quarenta outonal como se fosse um retiro prazeroso, derramam-se pelas obscenas redes sociais onde lançam suas fabulações acerca da purificação espiritual do planeta.

Se nos falta uma imagem do inferno, ei-la. Uns tratam o vírus como se ele estivesse prestando um favor cósmico para nos despertar. A enfermidade globalitária vai nos converter para a necessidade de “salvar o planeta”. Esquecem-se, esses e essas aí, de que a imensa maioria dos habitantes do mencionado “planeta” não têm casa para ficar dentro nem dispensa para guardar enlatado por dois anos, não têm estoque de álcool gel. Não têm reservas financeiras para comprar um respirador artificial no câmbio negro e escondê-lo no escritório. Não têm estoques industriais de máscaras, não têm água limpa na torneira.

De onde vem esse delírio de que a Covid-19 iguala pobres e ricos? Vem da classe média egofrênica. Em seu mariantonietismo desinibido, a classe média, macaqueando as celebridades, não vislumbra a possibilidade de que outras pessoas não dispõem de uma adega para testar novas combinações gastronômicas enquanto ficam no isolamento, e de que podem não ter também brioches para fazer o dejejum. Mas são esses e essas, mariantonietistas, que aventam uma futurologia suspeita de que, depois de passada a pandemia, o mundo inteiro estará mais fraterno, mais ecológico, mais “do bem”, mais vacinado.

 

Se o mundo muda, como ficam os direitos humanos?

Isso aí não vale. Haja paciência. Enquanto a classe média se farta de performances ostentatórias, os burgueses puro-sangue somem do mapa e ficam na deles. Não são tolos. Espreitam que há algo de mais grave no horizonte. Não está descartada a margem estatística de que a pandemia deixe de legado à humanidade um cenário pior do que ela mesma.

Os financistas ainda ganham em cima, mas não tiram fotos para as colunas sociais – evasão de privacidade – para fazer pose de solidários gourmets. As celebridades, no entanto, abusam. Para frenesi das plateias digitais, especulam sobre o futuro, lançam as indagações essenciais do tempo: o que acontecerá com os campeonatos de futebol?, minha filha vai ter que ter aula a distância até o final do ano?, haverá mercado para a cultura?, o clube vai dar desconto nas mensalidades?, como fazer amor pelo whatsapp?, em qual código secreto Deus manda suas mensagens na pandemia?

Fora isso, há outra questão – supérflua na opinião dessa gente, mas grave o suficiente na percepção dos donos do dinheiro – que ronca no porão escuro da crise sanitária: qual o futuro da liberdade? Falo aqui da liberdade em seu sentido mais aberto. Falo da liberdade que, como sabemos, é o princípio e o fim de toda cultura baseada nos direitos humanos – o adjetivo “livre” é o primeiro a aparecer na Declaração de 1948 (no artigo primeiro), e o substantivo “liberdades” é o último (no artigo 30). Não se trata de saber do futuro dos empregos, da saúde, dos leitos nos hospitais, do mercado, da economia, mas sim de saber o que vai se passar com os direitos humanos. Resistirão aos ataques do autoritarismo? Você sabe?

manifestante

A cultura dos direitos humanos será disso ainda mais confinada? Ou, ao contrário, vai se expandir, com mais legitimidade, mais assimilação e mais respeito?

Mudando a perspectiva, mas sem sair do tema, poderíamos perguntar: os efeitos dessa moléstia fatal vão isolar os populistas mais chucros? Ou terminarão por fortalecer as soluções antidemocráticas?

Fiquemos atentos. Fiquemos atentos, entre outros motivos, porque podem sobrevir as duas coisas ao mesmo tempo. É possível que alguns dos populistas mais bestiais percam sustentação, sim, mas é possível também que os governantes mais truculentos, se souberem se associar à ciência, domesticando-a, ganhem ainda mais poder.

Se isso vier a acontecer, a notícia não será boa. E já há sinais de que pode mesmo vir a acontecer alguma coisa por aí. Entre outras tendências, o totalitarismo chinês deve se fortalecer na pós-pandemia, tanto internamente como no cenário das relações internacionais. Se uma perspectiva assim se confirma, não necessariamente teremos mais democracia e mais liberdade no mundo depois da Covid-19.

De minha parte, devo declarar que não quero desafinar o coro dos que apostam na boa-vontade geral. Também considero possível que, no Brasil, a gravidade da avalanche de óbitos que se avizinha consiga alertar mais gente para o erro criminoso cometido pelas autoridades que menosprezam a ciência e que não dão valor à vida humana (que reduzem a vida humana a um dígito menor na engenharia dos indicadores macroeconômicos).

Talvez as crenças democráticas se fortaleçam e talvez saiam desacreditados aqueles que bradam e perdigotam que tudo não passa de “gripezinha”. Talvez, apenas talvez. Esse vírus pode, sim, agravar o estado de saúde das nossas democracias. Não que seja esse o desfecho mais provável, mas precisamos pensar um pouco mais sobre esse risco maligno. É preciso pensar a respeito com menos deslumbramento, com menos afetação new age, com menos autoajuda. O risco é real.

 

Natureza: o inimigo invisível   

Recentemente, pouco antes de a Covid-19 ser promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ao grau de epidemia global, o jornalista Ricardo Setti me escreveu para comentar uma passagem rápida, ligeira, mas deveras aziaga, que ele leu no livro A Terra inabitável, de David Wallace-Wells (publicado no Brasil no ano passado pela Companhia das Letras). Em se tratando de Ricardo Setti, lógico, eu comprei o livro na hora. Eu o considero um dos maiores talentos que já brilhou nas redações brasileiras – das quais, para nossa infelicidade, ele se afastou desde que resolveu viver com a família em Barcelona.

Lá fui eu ler A Terra inabitável. Logo vi: o Setti tem razão. Na segunda metade de sua extensa reportagem sobre o aquecimento global e suas consequências funestas (como o aumento exponencial da eclosão de inúmeras epidemias), o autor adverte (no capítulo “Política do consumo”) sobre um cenário nada utópico. É um alerta breve, mas matador.

“Em um mundo com novos perigos”, escreve Wallace-Wells, “os cidadãos trocarão as liberdades por segurança, estabilidade e algum seguro contra perdas climáticas”. Ele anota, então, que o “neoliberalismo” poderá vir a se impor como “um verdadeiro Estado mundial preocupado quase que exclusivamente com o fluxo do capital”. Eu paro na palavra “neoliberalismo”, que me parece datada. Penso mais em termos de um “neoliberalismo” repaginado ou, simplesmente, no capital. Em tal ordem mundial, por evidente, não estaria na agenda o compromisso de fortalecer as garantias individuais ou os espaços democráticos. O capital tem outras prioridades. O autoritarismo político lhe serve bem.

Esse não é o único desdobramento contemplado pelo livro. Há outros possíveis, igualmente tanáticos. O autor não despreza que sobrevenha, entre outras possibilidades, uma hipertrofia da influência de Estados não-democráticos nascidos de experiências autodeclaradas comunistas, como Rússia e China. Putin e Xi Jinping têm lá suas metas para alargar seus domínios e, com certeza, a ampliação das liberdades não é uma delas.

A terra inabitável

As catástrofes ambientais constituem excelente oportunidade para que governos que flertam com o autoritarismo se utilizem de uma verdadeira “pedagogia das medidas de exceção” para desconstruir as democracias

 

O mais preocupante é que, seja num desdobramento (o triunfo de um “neoliberalismo” com um aggiornamento), seja no outro (o alargamento das áreas de influência de Estados oriundos de um, digamos, ex-comunismo, reorganizados nos moldes de um capitalismo de Estado, mais ou menos mafioso), teríamos a solidificação de um sistema de mando tirânico, avesso a alternâncias reais. De acordo com a hipótese trabalhada por Wallace-Wells, o aquecimento global e suas tragédias subsequentes operariam como uma chantagem para convencer as pessoas a abrir mão de suas privacidades e liberdades em troca de uma gestão autoritária, mas pretensamente mais eficiente, uma vez que só assim seria possível combater as ameaças vindas da natureza, como as epidemias.

É claro que o estrago que vem sendo desencadeado pelo novo coronavírus, bem o sabemos, não pode ser debitado ao aquecimento global. Não se trata disso. O alerta de David Wallace-Wells nos interessa por outra razão. Ele nos previne que, premidas por emergências que extrapolam a capacidade das rotinas estatais de resolução de crises, as sociedades podem se render a permutar liberdade por uma presumível segurança. Nos momentos de extrema pressão, a democracia pode assumir as feições de um luxo dispensável ou, no mínimo, postergável.

Volto a insistir: não acredito que isso seja a tendência predominante – mas, para que não aconteça, é fundamental que estejamos atentos. A qualquer deixa, uma autoridade ou outra diz lá que a democracia pode esperar. No Brasil mesmo, na noite de 3 de abril de 2020, uma sexta-feira, o Jornal Nacional exibiu trechos de uma coletiva em que o ministro Paulo Guedes, da Economia, em manga de camisa, tendo ao lado dois outros ministros engravatados (Onyx Lorenzoni era um deles), expressou com absoluta clareza, mais uma vez, a ideia de que democracia atrapalha. 

A crise da Covid-19 estava começando. O número de casos fatais não ultrapassara ainda a casa do milhar, eram algumas centenas, mas já se sabia que o baque seria tétrico. Aí, o ministro da Economia, a título de pregar a união nacional e de defender as providências de sua pasta para distribuir recursos aos mais necessitados (providências lentas demais), saiu-se com essa:

“As críticas de que houve demora no programa e tal eu considero oportunismo político. Eu não considero uma coisa séria. Eu acho que a atitude séria agora é nos ajudar a resolver os problemas. (…) Eu peço que justamente haja muita… um espírito de união realmente em torno desse lema de que nenhum brasileiro será deixado para trás e que a defesa da saúde e o emprego dos brasileiros está acima de qualquer diferença. Daqui a três quatro meses, [quando] nós superarmos essa crise, atravessarmos esse problema de saúde, podem voltar de novo com o barulho natural de uma democracia. Pode todo mundo chutar todo mundo de novo, começar a brigalhada, todo mundo atacando todo mundo, mas primeiro estamos todos juntos, porque juntos somos mais fortes. Todos juntos, pra resolver o problema da saúde brasileira. Ali na frente a gente volta a brigar de novo, porque democracia é barulhenta, tem sempre briga mesmo, e com isso nós estamos acostumados. Mas eu acho que nesse momento, de ameaça da saúde do povo brasileiro, não é o momento para tentar explorar politicamente quaisquer problemas que tenhamos.”

 O pronunciamento lamurioso do ministro reflete (ainda que de forma irrefletida) e torna voluntarioso (ainda que de forma involuntária) o discurso de que a democracia pode esperar. Segundo tal mentalidade, a democracia não ajuda quando o momento é tenso. Sem entender exatamente por quê, o ministro entende a função da democracia como externa à função de governar. A democracia assume, nesses casos, a aparência de um “barulho”, nas palavras dele, um ruído. Ela deve aparecer, portanto, em períodos já programados – como as eleições, talvez – e deve sumir nos outros. Deve sumir, especialmente, quando uma catástrofe natural precisa ser debelada.

Policiais em favele em El Salvador

É preciso perguntar se é justificável ou mesmo legítimo – sob qualquer pretexto – que a população civil seja abordada por agentes que mais parecem ir à guerra. Quem são os inimigos?

Não é o caso aqui de empreendermos uma exposição do conceito de democracia – embora o conceito empregado pelo ministro não tenha pé nem cabeça –, mas é o caso, sim, de registrar que quando alguém tem tal entendimento do que seja a democracia está de saída predisposto a trocá-la por segurança, estabilidade e um sistema de garantias ideológicas. Segundo essa predisposição, a democracia não é eficiente quando se trata de “resolver problemas” e, como para enfrentar uma pandemia, precisamos de eficiência para resolver problemas, não podemos recorrer à democracia.

A fala do ministro é problemática, sem dúvida, mas é uma fiel expressão do senso comum. De um jeito ou de outro, muita gente pensa (ou não pensa) mais ou menos por aí. Muita gente acha que democracia é uma espécie de licença que os governantes concedem para que os governados tenham lá uma chancezinha de participar, como plateia, do teatro do poder – isso, de vez em quando. Logo, muita gente acha que, quando a situação é de emergência, as liberdades democráticas não apenas podem ser suspensas como, mais ainda, muito ajudarão se forem efetivamente suspensas.

Sendo assim, e é assim, não surpreende que, a pretexto do agravamento da pandemia da Covid-19, tenham surgido, estejam surgindo e ainda surgirão empecilhos e barreiras contra a liberdade, mesmo em países democráticos. Pipocam, aqui e ali, os tiranetes de subúrbio, os ditadores de província, os autocratas de paróquia. Uns querem dar multas destrambelhadas, outros ameaçam fechar aeroportos sobre os quais não têm competência e muitos começam a namorar com a fantasia de censurar a imprensa. Sempre que o autoritarismo se exacerba, os primeiros impactos vão explodir contra a imprensa.

 

Liberdade de imprensa contra o vírus do autoritarismo

O pretexto da moda para essas investidas é a alegação de que as fake news sobre a doença precisam ser estancadas. Assim, sob a desculpa de combate às fake news, o autoritarismo, declarado ou disfarçado, aproveita para enfraquecer a imprensa livre, que é a única instituição capaz de desbaratar as fraudes informativas. É uma desfaçatez. O objetivo do autoritarismo não é combater fake news. Ao contrário, é ferir de morte o único serviço público (a imprensa) que é capaz de expender críticas ao poder.  

É triste que seja assim, mas é o que vem acontecendo. No dia 31 de março, Carlos Eduardo Lins da Silva, outro desses raros jornalistas a quem a imprensa deve mais do que será capaz de pagar, enviou para mim um informe do site Axios. O Axios é um serviço de informações jornalísticas criado em 2017 com o propósito de editar textos concisos. Naquele informe, publicado em um fatídico 31 de março, estavam apontadas as principais ameaças contra a liberdade de imprensa dentro da pandemia. Logo no título, o recado era claro: “Coronavírus é usado para suprimir liberdades da imprensa global”.

O corpo da notícia – baseada em outros veículos, como o britânico The Guardian e a NPR (a National Public Radio dos Estados Unidos) e CNN, devidamente creditadas – não poderia ser mais preciso e conciso (o Axios realmente cumpre seu propósito):

O coronavírus está dando cobertura a autocratas, ditadores e até alguns líderes eleitos democraticamente que já estavam procurando razões para minar a imprensa independente. [O adjetivo “independente”, aqui, merece um esclarecimento sumário. No inglês, “independent media” ou “independent press” designam não as “redações alternativas”, como é comum que se entenda no Brasil. O termo “independente” nomeia a imprensa que não depende do Estado ou do governo. Assim, o New York Times ou o Washington Post são jornais independentes. É a esse tipo de imprensa que o informe do Axios se refere].

Exemplos recentes mostram que a imprensa está sendo cerceada pelo governo sob o pretexto de impedir que as informações erradas se espalhem sobre a pandemia.

  • Na Hungria, o governo aprovou, em 30 de março, uma lei que concede amplos poderes de emergência ao primeiro-ministro, Viktor Orban. Orban afirma que esses poderes o ajudarão a combater o coronavírus. A lei inclui o poder de punir aqueles que espalham “informações falsas” sobre a pandemia com até cinco anos de prisão;
  • No Egito, as autoridades forçaram uma jornalista do The Guardian a deixar o país depois que ela relatou um estudo científico de especialistas em doenças infecciosas da Universidade de Toronto segundo o qual era provável que o país tivesse muito mais casos de coronavírus do que os que foram oficialmente confirmados;
  • Nas Filipinas, os jornalistas podem enfrentar sentenças de prisão de até dois meses por “espalhar informações falsas” sobre o vírus e uma multa de até US$ 20 mil;
  • No Irã, onde os casos de coronavírus dispararam, as autoridades passaram a conter agressivamente relatórios independentes sobre o vírus, perseguindo e detendo jornalistas. As autoridades também ordenaram que a mídia use apenas estatísticas oficiais ao cobrir o COVID-19;
  • No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro subestimou o vírus como um truque da mídia. Seus esforços para culpar a imprensa por exagerar a pandemia, alguns temem, podem ser um manual para outros líderes mundiais usarem para minimizar a crise;
Manifestação de Repórteres sem Fronteira

Manifestação promovida pela organização Repórteres sem Fronteira para denunciar a repressão dirigida a jornalistas por parte dos agentes de segurança pública em diversos países do mundo

Num quadro geral, em todo o mundo, as liberdades de imprensa já começaram a se deteriorar, à medida que os líderes tentam reprimir a imprensa independente como forma de consolidar o poder. Tais intervenções tornaram-se mais prevalentes em todo o mundo, mesmo nas democracias.

No mesmo dia desse post do Axios, o tenebroso 31 de março, o sociólogo Alain Touraine, aos 95 anos, veio a público, numa entrevista a Marc Bassets, do jornal espanhol El País, para no avisar a todos: “O choque econômico do coronavírus pode produzir reações fascistas”. Embora Touraine seja ponderado, em nada catastrofista, fez questão de deixar anotada a possibilidade mais preocupante.

Três dias depois da entrevista de Touraine, a cientista política alemã Anna Lührmann, vice-diretora do V-Dem (Instituto de Variações da Democracia), entidade ligada à Universidade de Gotemburgo (Suécia) e responsável por um dos principais rankings que medem o nível de democracia no mundo, expressou os mesmos temores a Bruno Benevides, da Folha de S. Paulo. Ela observou que, pela primeira vez neste século, a maior parte dos países do mundo não vivem regimes propriamente democráticos e avaliou que a situação pode piorar ainda mais com a pandemia de coronavírus. “Nós já vimos isso acontecer na Hungria e na Polônia”, declarou Anna Lührmann. “A crise do coronavírus vai acelerar essa onda de autoritarismo.”

 

Não é ficção futurista  

Já está acontecendo. Na Turquia, o autocrata Recep Erdogan banca centenas de prisões, de médicos inclusive, sob a acusação de postar “provocações” sobre a Covid-19. A Tailândia já vem se valendo da censura à imprensa. O colunista Roberto Simon, do jornal Folha de S. Paulo, destacou a mesma tendência em sua coluna de 11 de abril:

“Mesmo regimes democráticos considerados fortes adotaram, nas últimas semanas, medidas de cerceamento de liberdades que antes seriam impensáveis. O Parlamento britânico deu ao governo o direito de prender e isolar pessoas indefinidamente — dispositivo batizado de “Poderes de Henrique 8º”, em referência ao monarca Tudor que tutelava o legislativo. Israel legalizou a vigilância online de todos os seus cidadãos pelo serviço de inteligência interna. E, em um domingo à noite, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou o fechamento dos tribunais. Incrível coincidência: o chefe de governo estava prestes a ir a julgamento por corrupção.”

No dia 14 de abril, conforme noticiado pelo site do jornal Folha de S. Paulo, com base na Agência Reuters, os brasileiros ficaram sabendo que “o Iraque suspendeu a licença da Reuters por três meses, após a agência de notícias publicar uma reportagem afirmando que o número de casos confirmados do novo coronavírus no país era maior do que o relatado oficialmente. Além de revogar a licença, a Comissão de Comunicações e Mídia do país também multou o veículo em US$ 21 mil (R$ 108 mil).”

Controle de temperatura, China

No mesmo dia 14, em entrevista a Renato Grandelle, no jornal O Globo, o epidemiologista americano Jon Zelner atestou: “Teremos, em todo o mundo, uma situação de perdas e ganhos. Os governos ficarão obcecados atrás de soluções contra novas pandemias. Mas algumas políticas podem ser implementadas junto com uma questionável intromissão à sociedade. A China, por exemplo, recorreu a softwares para monitorar seus cidadãos e impedi-los de violar a quarentena. Outros países usaram câmeras para esta mesma finalidade. Essa vigilância, que foi um bem valioso, continuará sendo usada de algum modo benéfico à população? Nós, americanos, abrimos mão de uma quantidade significativa de direitos e privacidade após atentados como o de 11 de setembro de 2001. O governo alegou que leis e políticas criadas a partir dali seriam usadas para nos prevenir do terrorismo, mas, na verdade, sua aplicação não se restringiu a isso. Temo que coisas semelhantes aconteçam agora. Os cidadãos podem perder direitos após o coronavírus.”

Enquanto isso, na Índia, de Narendra Modi, o cerco contra a imprensa recrudesce. Na Bolívia, com a suspensão das eleições presidenciais que estavam marcadas para o dia 3 de maio, o tempo se fecha para a democracia. Tropas do Exército patrulham as ruas. O ambiente é de medo.

E no Brasil? Bem, quanto ao Brasil, você, improvável leitor, saberá responder melhor do que eu. Só recomendo atenção e prudência, como costumo recomendar a toda hora. O presidente da República age como um biruta, como um estúpido, mas existe uma lógica – autoritária – nos movimentos erráticos que ele gosta de estrelar.

Essa lógica não precisa estar dentro da cabeça dele – onde coisa alguma parece subsistir –, mas isso não significa que não haja um curso definido e lógico em andamento no Brasil, que aponta na direção de fortalecer uma mentalidade irracionalista, preconceituosa, anticientífica, anti-intelectual e antidemocrática que, por sua vez, demandará a imposição de um poder mais violento e menos ancorado nos direitos humanos.

O risco de fascismo no Brasil pode ainda ser um azarão, uma esquisitice longínqua – eu mesmo acho que é – mas o risco é real. Se o líder autoritário que aí está, instalado na cadeira presidencial, lograr uma aliança com setores da ciência que aceitem a dobrar os joelhos à sua insolência ignara, os elementos para o passo antidemocrático estarão adensados. Com o agravamento da crise sanitária e da crise econômica, não é de todo impossível que parcelas expressivas da sociedade se apressem em querer, com Bolsonaro ou sem ele, trocar a liberdade (que consideram inútil) pela segurança (que consideram certa) de uma gestão truculenta dos assuntos públicos.

 

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