O negacionismo do Holocausto está em alta, indicou uma pesquisa de 2014 conduzida pela Liga Anti-Difamação (Anti-Defamation League, ADL). A organização, sediada nos Estados Unidos e dedicada a combater o antissemitismo e a defender os direitos civis, realizou a pesquisa em mais de cem países, distribuídos pelos cinco continentes. Nela, constatou que 66% dos entrevistados acreditam que as narrativas históricas sobre o Holocausto são distorcidas, exageradas ou simplesmente falsas. Chocante!
A historiadora que ajudou a organizar o Museu do Holocausto dos Estados Unidos, Deborah Lipstadt, pergunta como é possível que alguém possa negar um dos mais documentados processos históricos contemporâneos. E mais: como alguém pode dizer que mentiram, juntos, milhares de sobreviventes e testemunhas oculares, historiadores, pesquisadores e autoridades judiciais e militares?
O que a pesquisa da ADL mostra, todavia, é que diante da enormidade do horror representado pelo Holocausto, um número significativo de pessoas prefere recusar a verdade e, o que é pior, acusar as vítimas de mentirem para tirarem proveito. Esse movimento, chamado negacionismo, tem ganhado vulto nos últimos tempos. O negacionismo do Holocausto e de outros fatos históricos já estabelecidos foi o jardim de infância das atuais fake news.
A fuga para o passado, ato tipicamente romântico e escapista, deseja tirar o ultranacionalismo do ostracismo, restaurando seu orgulho e legitimidade no mercado das ideias políticas. A imagem final da Segunda Guerra Mundial produz associações entre o ultranacionalismo e o nazismo, especialmente quando os nacionalistas recorrem a argumentos supremacistas de fundo racial. Por isso, a negação dos crimes contra a humanidade praticados pelo nazismo tem óbvias intenções políticas. Daí que os auto-intitulados revisionistas não merecem esse título: não há o que revisar, não existe o tipo de equívoco que eles sugerem e, pelo contrário, são os negacionistas que exibem falsificações grosseiras como provas.
Nessa terceira e última parte do dossiê sobre o Holocausto, analisamos o negacionismo enquanto fato político com dupla motivação: de um lado, como expressão da ordem política europeia do pós-guerra; de outro lado, como reação de governos árabes e muçulmanos à criação do Estado de Israel.
O final dos anos 1970 assistiu, na Europa e América do Norte, ao surgimento de publicações dedicadas à Segunda Guerra Mundial cuja característica principal estava na contestação das explicações referendadas pela academia em relação ao Holocausto. A princípio, pareceram apenas trabalhos que, como tantos outros, mais ou menos certos, propõem o que se convencionou chamar de revisionismo – isto é, a revisão de informações e interpretações que ajudam a tecer a narrativa histórica, permanentemente reelaborada.
O problema é que as contestações de outros pesquisadores e a demonstração de que as provas utilizadas estavam erradas ou não permitiam chegar às conclusões dos chamados revisionistas não bastaram para fazerem mudar de ideia os autores dos trabalhos contestados. Pelo contrário, eles voltavam a repetir e insistir… e o fazem ainda agora. De onde se conclui que já não podem ser desculpados por difundirem uma narrativa incorreta.
Nesse caso, a insistência em contestar fatos estabelecidos revela intentos de destruição. De um lado, o projeto de relativizar o crime de genocídio destina-se a legitimar no presente discursos xenófobos e racistas. De outro, fenômeno mais recente, destina-se a fazer da intolerância religiosa uma arma de combate político.
Os que minimizam, justificam ou põem em dúvida o Holocausto não podem ser chamados de revisionistas. Eles são negacionistas, pois sua atitude de falsificação histórica é deliberada. Os negacionistas contestam os fatos para criar uma zona de confusão de informações que os favorece. Eles almejam o estatuto de “corrente alternativa”, com tanta legitimidade para o debate acadêmico quanto qualquer outra. Pretendem colocar em pé de igualdade a historiografia estabelecida (a “corrente exterminista”, na linguagem que utilizam) com o negacionismo (a “corrente revisionista”). Mas a história do Holocausto é uma só, assentada sobre pilhas de provas indiscutíveis. Negar os fatos é sinal de concordância com o ocorrido. Talvez, desejo de repetição.
O vocábulo negacionismo (negationism; négationnisme) apareceu pela primeira vez em 1987, no livro do historiador francês Henry Rousso, A síndrome de Vichy. Ali, ele adotava a palavra para distinguir com clareza o revisionismo por motivos históricos efetivos, como a atuação da Resistência antinazista na França de Vichy, da negação politicamente motivada do Holocausto, feita por nacionalistas e esquerdistas da velha cepa.
Profissionais respeitáveis, explicou o historiador inglês Richard Evans, especialista em nazismo e Segunda Guerra Mundial, não costumam apresentar documentos falsos como genuínos; não inventam razões implausíveis para desacreditar as fontes; não atribuem falsamente ideias a outros pesquisadores para assim confirmarem seu próprios pontos de vista; não manipulam séries estatísticas ou traduzem textos erradamente. Historiadores profissionais não subtraem partes de documentos quando eles contradizem seus pontos de vista; pelo contrário, levarão em conta essa divergência. Eles não apresentam como verdadeiros documentos sabidamente falsos, nem inventam explicações mirabolantes para desqualificar provas e argumentos contrários.
O negacionismo converteu-se de elemento pitoresco da subcultura para fenômeno sociológico. Porque a negação de uma história estabelecida e a pretensão de possuir argumentos para mudar os fatos não está mais restrita a meia dúzia de outsiders, mas transforma-se em fenômeno de massa. A trajetória é propiciada pelo surgimento das redes sociais, um universo no qual os critérios de admissibilidade de informação não são checados e a verdade é um cardápio à la carte.
O negacionismo mais antigo, conduzido pelo Estado turco, refere-se ao genocídio armênio. Hoje, o negacionismo do Holocausto judeu abre caminho para outras tentativas de apagar a História, cujos alvos são o Holodomor, na Ucrânia, a limpeza étnica dos Rohingya e a tortura estatal promovida pelas ditaduras militares latino-americanas.
O negacionismo se estabeleceu como estratégia do discurso político usado com frequência cada vez maior por grupos de extrema-direita. A crítica ao discurso antiacadêmico e anticientífico é mais necessária do que nunca. A ideia de que tudo nas Ciências Humanas está sujeito à subjetividade do autor favorece a existência de fenômenos como o negacionismo, muito apropriado a regimes políticos autoritários, que desprezam a memória social e ambicionam controlá-la e moldá-la à sua imagem e semelhança. Os negacionistas são, como bem os nomeou o historiador Pierre Vidal-Naquet, assassinos da memória.
O antissemitismo é um elemento comum à tradição dos partidos nacionalistas europeus, mas também está presente nos movimentos de esquerda, para os quais os judeus encarnavam o capital internacional e o liberalismo desenfreado, e agora destacam-se como opressores do palestinos. A predisposição para acreditar na existência de um complô judaico, mitologia política profundamente enraizada na Europa Contemporânea desde os “Protocolos dos Sábios de Sião”, preparou o terreno para a contestação do genocídio promovido pelos nazistas.
Os negacionistas acusam os judeus de exagerarem e distorcerem o que lhes ocorreu na época da Segunda Guerra para explorar a consciência culpada dos ocidentais e seu antissemitismo longamente cultivado. O objetivo seria conquistarem generosas indenizações em nome do Holocausto, bem como obter o silêncio cúmplice do mundo mediante os abusos cometidos pelo Estado de Israel na Palestina e adjacências. Reconhecemos aqui a velha caricatura do judeu dissimulado e ávido por dinheiro.
Os aspectos apontados pelos negacionistas como equivocados e sujeitos à “revisão” na história do Holocausto são o número de pessoas assassinadas (exagerado); as técnicas usadas no extermínio (as câmaras de gás incineravam corpos de pessoas mortas por tifo); documentos e figuras históricas que foram apresentados (os judeus como testemunha exageram); os locais dos campos de morte. Cada uma dessas questões já foi amplamente respondida por historiadores qualificados, mas é inútil, eles repetem.
No extremo, existem aqueles para quem o Holocausto não passa de uma invenção disseminada pelo “judaísmo internacional” (hoje sediado em Nova York e Hollywood para controlar “a mídia”). E outros que afirmam que os judeus declararam guerra à Alemanha (!!) e, portanto, os nazistas não teriam feito nada errado do ponto de vista do direito internacional ao internar inimigos declarados em campos de prisioneiros, tratando-os como guerrilheiros e espiões. Tal afirmação é sustentada por duas supostas declarações de guerra de entidades sionistas, uma de março de 1933 e a outra de agosto de 1939.
Já o negacionismo de esquerda é uma patologia do antissionismo, pois sua contestação à própria existência política do Estado de Israel acaba servindo de fio condutor para antissemitismos explícitos. Por exemplo, Mahmoud Abbas, atual presidente da Autoridade Palestina, fez seu PhD em Moscou nos anos setenta e apresentou como trabalho a seguinte pesquisa: A conexão secreta entre os nazistas e os líderes do movimento sionista, no qual demonstrava que nazistas e sionistas trabalharam juntos para que a Palestina fosse tomada aos árabes – tudo dentro dos cânones do materialismo histórico. A tese de Abbas foi logo publicada na Jordânia e se tornou um best-seller citado por acadêmicos e não acadêmicos ainda hoje.
O historiador Raoul Girardet, em Mitos e Mitologias Políticas, analisa o pensamento político contemporâneo e identifica três temas conspiracionistas clássicos e um deles é a conspiração judaica. A pergunta é, em que momento aparecem? O que a difusão da ideia diz, não sobre a veracidade da ideia ela mesma, mas sobre a disposição das pessoas em acreditarem? “Como não constatar objetivamente que quaisquer que sejam, a natureza ou as motivações ideológicas da conspiração denunciada, essa denúncia jamais deixa de inscrever-se em um clima psicológico e social de incerteza, de temor ou de angústia? (…) Não há nenhuma dessas construções que não possa ser interpretada como uma resposta a uma ameaça, ou pelo menos uma reação quase instintiva ao sentimento de uma ameaça.” (Girardet, p. 54)
A nação francesa nunca encarou no espelho a história do regime colaboracionista de Vichy. Bastante conhecida e pesquisada hoje, essa história era quase um tabu no pós-guerra. Não se falava do entusiástico apoio de parte da população aos ocupantes nazistas e da deportação dos judeus franceses para os campos da morte no leste. Enquanto o Estado fazia o ufanismo da Resistência, deixava de lado a discussão sobre o significado daquele apoio aos alemães e suas ideias de superioridade racial e, por extensão ao próprio antissemitismo, que apenas se retraia.
Pelo contrário, o ambiente social o favorecia, pois coincidiu com o crescimento da presença de imigrantes árabes no país, entre os quais o antissionismo era intenso. E mais, no ambiente da Guerra Fria, aos olhos das esquerdas, com seu pan-arabismo e terceiromundismo, Israel era um Estado aliado dos Estados Unidos. Logo, o discurso contra Israel e contra os judeus deu frutos conspiratórios.
Paul Rassinier (1906-1967) participou da Resistência Francesa. Socialista e pacifista, figura entre as primeiras vozes do revisionismo do Holocausto
Foram militantes políticos de esquerda que introduziram o tema da “narrativa” do Holocausto. Muitos consideram Paul Rassinier, ativista político e ex-prisioneiro do campo de Buchenwald, o responsável pelo surgimento do discurso negacionista. Desde a década de 1950, Rassinier escrevia livros que, no fundo, já sugeriam um nacionalismo antissemita. Em O drama dos judeus europeus, de 1964, afirmou, supostamente apoiado em sua própria experiência, que os sobreviventes dos campos de concentração exageravam nos relatos de suas vivências, negando que houvesse uma política de extermínio organizada pelas forças alemãs. Escreveu, também, que a violência que reinava nos campos era praticada pelos sonderkommand (os prisioneiros responsáveis pela administração dos campos e pela vida dos demais prisioneiros). Da contestação da narrativa factual, Rassinier saltou à teoria conspiratória. Citando como prova um livro sionista de 1930, argumentou que as organizações sionistas conspiravam para usar os crimes nazistas em seu benefício, extorquindo dinheiro para si mesmos e para financiar o Estado de Israel.
Mas foi com Robert Faurisson, um professor universitário de literatura francesa, que o negacionismo entrou definitivamente no radar dos historiadores. Uma entrevista de Faurisson ao jornal Le Monde, em 29 de dezembro de 1978, Le Problème des chambres à gaz, ou la rumeur d’Auschwitz (O problema das câmaras de gás, ou o rumor de Auschwitz), repercutiu intensamente. Ele declarou: “Até 1960, acreditei na realidade desses massacres gigantescos nas câmaras de gás. Então, depois de ler Paul Rassinier, um velho exilado e autor de Le mensonge d’Ulysse (A mentira de Ulisses), comecei a ter dúvidas. Depois de 14 anos de reflexões pessoais, depois de quatro anos de intensa investigação, convenci-me, como 20 outros autores revisionistas, que me encontrava diante de uma mentira histórica. (…) Hitler nunca ordenou (nem permitiu) que alguém fosse morto por causa de sua raça ou religião”.
O livro Le mensonge d’Ulysse, publicado em 1950, manifesto negacionista original, só teve impacto após sua republicação, em 1979, pela La Vieille Taupe, uma pequena casa editorial de inspiração marxista que passara ao controle do militante ultra-esquerdista Pierre Guillaume e engajava-se inteiramente na disseminação das teses dos auto-proclamados “revisionistas”. A intenção era abalar o apoio a Israel.
Faurisson falava em “pretensas câmaras de gás” e no “pretenso genocídio” como falsificações destinadas a facilitar “uma gigantesca trapaça político-financeira do Estado de Israel”. Imediatamente, historiadores e sobreviventes de guerra passaram a contestar suas afirmações. A polêmica foi parar nos tribunais e Faurisson foi condenado pela Lei Gayssot, que reprime a contestação de crimes contra a humanidade. A mesma lei produziu condenações de outros revisionistas famosos, como Roger Garaudy, ex-católico, ex-comunista, muçulmano convertido e crítico feroz do Estado de Israel.
Robert Faurisson (1929-2018)
O filósofo Jacques Ellul – anarquista, cristão, um dos líderes da Resistência – escreveu: “somos obrigados a constatar o renascimento da França xenófoba; do racismo contra estrangeiros e também de um antissemitismo específico. E não é um fenômeno exclusivo da ‘direita’. A esquerda também participa. Penso particularmente nos ataques e acusações incessantes contra Israel. (…) Acredito que, na cabeça do francês mediano, Israel e os judeus são par, apesar das distinções sutis dos intelectuais antissionistas (…): ser violentamente antissionista é preparar uma opinião antissemita”.
Recorrendo novamente a Raoul Girardet, que considera a popularidade do mito da conspiração judaico-maçônica na França do final do século XIX como uma reação dos católicos contra a “ameaça” liberal e laica da Terceira República, podemos estabelecer um paralelo para explicar o negacionismo. Desde os anos 1970, a França sente a perda de seu prestígio mundial. Enquanto muitos franceses carregavam a culpa de um mal discutido colaboracionismo com o regime nazista, a esquerda antissionista fornecia uma nova narrativa para a conspiração, que a direita incorporou e adaptou. O declínio França decorreria dos judeus que visam às indenizações e, portanto, mentem sobre o que lhes ocorreu durante a guerra, denegrindo a imagem da nação. E novamente o judeu era o bode expiatório.
“Paradoxalmente, o mito do Complô tende, assim, a preencher uma função social de importância não negligenciável, e que é da ordem da explicação. (…) Por isso mesmo o desconhecido infinitamente temível das questões sem resposta cede diante de um sistema organizado de evidências novas. O destino volta a ficar inteligível; uma certa forma de racionalidade, ou pelo menos de coerência, tende a restabelecer-se no curso desconcertante das coisas…” (Girardet, p. 55).
O sentimento de perda, insegurança, instabilidade, desperta o desejo pela ordem e pelo familiar. Frequentemente, é nesse contexto que aparecem as “utopias regressivas” e as “teorias da conspiração”. O negacionismo na França, nasceu entre intelectuais de extrema-esquerda que se desprendiam da social-democracia e do comunismo, mas difundiu-se nas décadas seguintes, como ferramenta política da direita nacionalista.
O negacionismo ganhou força no final da década de 1970, quando o Estado de Bem Estar Social erigido no pós-guerra esgotou seu ciclo. Na Europa Ocidental, os anos de abundância e tranquilidade das décadas anteriores foram substituídos pela estagflação e pelo aumento no desemprego; pior, a assistência social começou a ser reduzida devido aos cortes de gastos públicos. O que estava acontecendo? Ninguém sabia explicar.
Nos anos 1980, como resposta à crise, o liberalismo econômico foi retomado com seu receituário de Estado mínimo. Começava a revolução tecnológica e, com ela, novas ondas de desemprego, sobretudo em setores tradicionais que declinavam rumo à obsolescência. O toyotismo substituía o fordismo. Simultaneamente, o comunismo soviético chegava ao fim e, com ele, a Guerra Fria, que havia organizado as relações internacionais nas décadas anteriores. Nesse movimento rápido de mudanças, os partidos tradicionais, de centro-esquerda e centro-direita, foram perdendo protagonismo. A crise ideológica resultante abriu espaço para a difusão dos discursos extremistas.
Foi nessa época, também, que a Europa Ocidental experimentou uma nova onda imigratória. Contudo, o antigo sentimento de responsabilidade sobre os recém-chegados, decorrente do passado colonial, declinou com o aprofundamento da crise. Culpava-se os imigrantes pelo desemprego – mas, ao mesmo tempo, a Europa conhecia inédita retração demográfica e a mão de obra imigrante tornava-se indispensável. Nos setores mais xenófobos, ganhava força a ideia de “invasão dos bárbaros”.
As tensões sociais encontram a clássica válvula de escape na xenofobia e no racismo – e, trabalhando sobre esses elementos, a extrema-direita vai reocupando espaços. A favor de sua pregação, mobiliza as redes sociais, veículos privilegiados dos discursos antissemitas e neofascistas de toda ordem. No vazio criado pela regressão dos partidos tradicionais, a extrema-direita recicla temas antigos, que servem a novos objetivos. É nesse contexto que o negacionismo ganha impulso, como instrumento de restauração da imagem do nazismo e dos fascismos.
Simplificando temas complexos: eis uma imagem que traduz o pensamento de certos setores da esquerda antissionista
O primeiro país a criar leis criminalizando o negacionismo foi Israel, em 1986.
Em seguida, sob o impacto das afirmações de Faurisson e da tentativa de processá-lo, bem como a outros negacionistas que invocavam a liberdade de expressão para contestar a realidade do Holocausto, a Assembleia Nacional da França instituiu a Lei Gayssot, publicada no Diário Oficial dia 14 de julho de 1990, numa simbólica afirmação dos princípios iluministas sobre os quais se ergue a França Contemporânea. O detalhe tragicômico é que Jean-Claude Gayssot, o político que propôs a lei, era membro do Partido Comunista. Logo, os negacionistas trataram de denunciar a lei como parte do complô “judeu-bolchevique” que ameaçava a nação.
Em 1993 e 1994, tribunais alemães das mais elevadas instâncias, entre eles o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal, também criminalizaram a negação do Holocausto e de outros crimes contra a humanidade. Desde então, um número crescente de países criou leis com semelhante teor. No Brasil, o Caso Ellwanger concluiu-se por uma sentença do Supremo Tribunal Federal de condenação de Siegfried Ellwanger e sua Editora Revisão, dedicada a publicar livros negacionistas. O julgamento interpretou o negacionismo do Holocausto como manifestação de antissemitismo, formando jurisprudência que o qualifica como crime de racismo.
A ONU, microcosmo da política mundial, tem uma história de polêmicas sobre o tema. Antissionismo já foi uma forma de racismo mas deixou de ser assim considerado por pressão países árabes. Desde 2005, acuados pelo avanço da extrema-direita antissemita na Europa e Estados Unidos, a Resolução 60/7 a ONU condena o negacionismo e declara que o Holocausto será sempre um “aviso a todas as pessoas dos perigos do ódio, da intolerância, do racismo e do preconceito” e “rejeita qualquer negativa do Holocausto como evento histórico, seja no todo ou em parte”.
O mais famoso caso judicial relacionado ao negacionismo do Holocausto foi aquele movido pelo britânico David Irving contra a historiadora americana Deborah Lipstadt e sua editora, a Penguim Books, em 1996. Irving, que fez carreira como pesquisador autodidata em história da Segunda Guerra Mundial, com vários livros publicados e certa respeitabilidade entre os historiadores do período, acusou Lipstadt de levá-lo a ruína financeira por conta de suas afirmações falsas.
Isso porque, em 1993, ela, PhD em história judaica e consultora do United States Holocaust Memorial Museum, escreveu o livro Denying the Holocaust: the growing assault on truth and memory (Negando o Holocausto: o crescente ataque à verdade e à memória), no qual analisava o fenômeno do revisionismo/negacionismo e concluía tratar-se de pseudo-história, antissemitismos velados. E citou nomes: Robert Faurisson e Roger Garaudy, o americano e antigo grão-mestre da Ku Klux Klan, David Duke, o inglês David Irving e outros.
Mas Irving não era inocente. Se, a princípio, a insistência em equiparar os crimes de guerra cometidos pelos Aliados aos crimes do Eixo em suas obras não despertara muita atenção, em 1977 ele publicou Hitler’s war (A guerra de Hitler) para defender a ignorância do Führer sobre a Solução Final e afirmar que se o ditador soubesse tentaria impedir. A coisa ainda estava no campo do revisionismo, quando, no final dos anos oitenta, Irving relançou Hitler’s war com modificações, sob o impacto do Relatório Leuchter.
Aqui, um parênteses, pois se imbricam dois processos:
No Canadá, um imigrantes alemão de nome Ernst Zündel possuía uma uma pequena editora que publicava material neo-nazista, como The Hitler we loved and why (O Hitler que amamos e porque) de sua autoria, chegou a ter quase 30 mil pessoas listadas para correspondência. Até que em 1983, Sabine Citron, uma sobrevivente dos campos de concentração que vivia no Canadá e militava pela memória do Holocausto, decidiu processá-lo. Reunindo provas para sua defesa, Zündel contratou Fred Leuchter, um técnico americano entusiasta de métodos de execução, para fazer uma análise forense nas câmaras de gás de Auschwitz (para o que, efetivamente, Leuchter não era gabaritado).
O réu desejava provar que as câmaras não haviam sido usadas para matar pessoas. O que ficou conhecido como Relatório Leuchter constatava que a concentração de ácido cianídrico remanescente nas paredes das câmaras não seria suficiente para matar seres humanos. Mas o relatório ocultava que parte das instalações de Auschwitz haviam sido destruídas quando Himmler ordenou a “queima de arquivo” e as câmaras ficaram expostas à chuva, sendo o gás Ziklon B extremamente solúvel em água. O veredicto do germano-canadense demorou alguns anos, pois algumas instâncias entenderam tratar-se de uma questão de liberdade de expressão, antes que a decisão final fosse pelo crime de ofensa à memória das vítimas e incitação ao ódio.
Ao entrar em contato com o Relatório Leuchter, David Irving declarou: “[Até] recentemente, eu acreditava na história, mas quero ser o primeiro a dizer que fui enganado e que chegou a hora de contermos essa peça de propaganda”. O inglês claramente entrara no campo do negacionismo. E tão convicto estava, que decidiu processar quem lhe apontara o dedo acusador. A professora teria que provar que os argumentos de Irving estavam errados. A defesa de Lipstadt montou uma banca com outros historiadores, como Richard J. Evans, o especialistas em Alemanha nazista, para quem “Irving caiu tanto em seu nível de acuidade acadêmica que não merece mais ser chamado de historiador”. (Evans, General Conclusion Paragraphs 6.20,6.21) Toda a obra de Irving foi escrutinada e foram apontados inúmeras erros e problemas, mas uma coisa logo se destacou, Irving sempre errava a favor de Hitler.
O processo se estendeu até o ano 2000 e no final Irving foi condenado a pagar 2 milhões de libras em honorários e reparações à Deborah Lipstadt e à Penguin Books. O juiz considerou que o inglês manipulara suas fontes de acordo com seus desejos políticos e ideológicos, primeiro para absolver Hitler, depois para negar o Holocausto.
Matéria publicada no jornal britânico The Telegraph em abril de 2000
A fundação de Israel, em 1948, despertou imediata reação dos países árabes. Coube ao presidente egípcio Gamal Abdel Nasser capitaneá-la, lançando o movimento pan-arabista, que pregava a unidade dos países árabes a partir da oposição ao inimigo comum, Israel. A disputa territorial e geopolítica com Israel serviu-se dos estereótipos pré-existentes e o suposto complô judaico mundial serviu de moldura para explicar os avanços israelenses e recuos árabes. Já em maio de 1964, em um depoimento ao jornal alemão National Zeitung, Nasser declarou, em artigo intitulado A representação do Holocausto no Mundo Árabe, que “ninguém, nem mesmo os mais simples, levam a sério a mentira de que 6 milhões de judeus foram mortos” (Satloff, p. 334).
Os acordos de Camp David, em 1979, entre Egito e Israel, enfraqueceram o pan-arabismo, mas não o antissemitismo, uma chave importante de mobilização social. Em 2002, sob o governo militar de Hosni Mubarak, o jornal estatal egípcio Al-Akhbar, segundo maior do país, publicou as sentenças seguintes: “No que diz respeito à fraude do Holocausto (…) muitos estudos franceses provaram que isso não foi mais do que uma fabricação, uma mentira, e uma fraude!! Isto é, é um ‘cenário’ onde o complô foi cuidadosamente montado, usando diversas fotos falsas completamente desconectadas com a verdade. Sim, é um filme, nada mais e nada menos. Ele (Hitler) é completamente inocente da acusação de queimarem os judeus no inferno de seu falso Holocausto.” (Fatma Mahmoud IN: Satloff).
O negacionismo do Holocausto ocorre generalizadamente no mundo muçulmano, tanto em nações seculares quanto teocráticas, e se expressa basicamente com os mesmos argumentos negacionistas usados pelo Ocidente. O antissionismo – a negação do direito à existência do Estado de Israel – e o antissemitismo se transformaram em elemento crucial ao discurso político de certos grupos.
O Hamas, organização fundamentalista palestina que governa a Faixa de Gaza, articula seu discurso a partir da radical oposição à existência de Israel. Em sua carta programa, no artigo 32, está escrito: “O sionismo mundial, junto com os poderes do imperialismo, almeja, por meio de um plano cuidadoso e uma estratégia inteligente, excluir os países árabes, um após o outro, da aliança antissionista, isolando o povo palestino. O Egito foi, em grande medida, retirado dessa aliança pelo traiçoeiro Acordo de Camp David. (…) Hoje é a Palestina, amanhã será um outro país. O plano sionista não tem limites. Depois da Palestina os sionistas aspiram se expandir do Nilo ao Eufrates. Quando eles tiverem digerido as regiões que invadiram, quererão mais, e assim por diante. O plano deles está descrito nos Protocolos dos Sábios do Sião, e a sua conduta presente é a melhor prova do que estamos dizendo.” (HAMAS. Covenant 1988).
Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã entre 2005 e 2013
No Irã, outro inimigo declarado de Israel a adesão ao negacionismo é política oficial. Em 2002, o chefe de Estado, aiatolá Ali Khamenei referiu-se às câmaras de gás em campos de concentração como “uma narrativa pouco clara”, utilizada como “propaganda sionista” para ganhar simpatia do mundo. Mas foi com a eleição de Mahmoud Ahmadinejad à presidência, em 2005, que o discurso contra Israel incorporou abertamente o negacionismo.
No aniversário de libertação de Auschwitz, o Tehran Times, jornal vinculado ao Ministério das Relações Exteriores, publicou um artigo intitulado Mentiras da indústria do Holocausto. Em dezembro, o próprio Ahmadinejad afirmou que o Holocausto era uma mentira sionista. Mehdi Khalaji, analista do Washington Institute for Near East Policy, avaliou: “Foi Ahmadinejad que trouxe esses termos [revisionismo do Holocausto] para a literatura política do Irã e o transformou em um dos elementos de sua política externa. Na época, o Irã queria amedrontar Israel e esse pareceu-lhe o método mais seguro.” (Wicken, Aff. 103).
Cansados de serem vistos pelos olhos ocidentais e ouvir notícias com o viés ocidental (geralmente acusado de ser pró-Israel), os árabes criaram suas próprias mídias, algumas delas abertamente antissemitas. Abundam materiais negacionistas em jornais, livros, programas de televisão, redes sociais nos diferentes países e, de modo geral, compartilham a teses das mentiras inventadas pelos judeus sionistas em seu complô para roubar a Palestina.
E mesmo redes de comunicação que ambicionam uma postura mais profissional e isenta, como a Al-Jazeera, manifestam certa ambiguidade ao falarem de Israel e dos judeus, especialmente para o seu público interno. No último 18 de maio de 2019, por exemplo, a emissora postou em sua rede de mídia AJ+ Arabic o vídeo As câmaras de gás mataram milhões de judeus. Qual a verdade sobre o Holocausto e como o Movimento Sionista se beneficiou dele? E a narradora relata: “A narrativa de que seis milhões de judeus foram mortos pelo regime nazista foi adotada pelo Movimento Sionista e é reiterada nos chamados ‘Dias de Lembrança do Holocausto.” Entretanto “o número de vítimas do Holocausto continua a ser um debate histórico. As pessoas estão divididas entre as que negam que a aniquilação aconteceu, as que acreditam que há exageros na repercussão do evento, e as que acusam o Movimento Sionista de exagerar muito o evento a fim de favorecer a criação do Estado de Israel”. (grifos nossos)
Mais uma vez, é a tentativa de equiparar historiadores e negacionistas. E mais uma vez, devemos recusar essa falácia.
Assista
Δ
Quem Somos
Declaração Universal
Temas
Contato
Envie um e-mail para contato@declaracao1948.com.br ou através do formulário de contato.
1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos © Todos os direitos reservados 2018
Desenvolvido por Jumps