Atualidade da Declaração de 1948

O reconhecimento do valor da dignidade humana, consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, é “um consenso internacional frágil”, nas palavras de Celso Lafer. Sete décadas depois da Declaração de 1948, a proteção dos direitos individuais e dos direitos políticos e sociais continua a ser, globalmente, mais um horizonte almejado que uma realidade palpável.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, assinalou uma retração mundial dos regimes ditatoriais, mas a perversão autoritária persistiu, sob as mais diversas formas. Na China, o regime comunista combina globalismo com tirania, desafiando a crença de que a abertura econômica propiciaria, mais cedo do que tarde, um degelo político. Na Rússia, mas também na Turquia e em países latino-americanos e africanos, configuraram-se autoritarismos eletivos nos quais os adornos exteriores da democracia mal ocultam a supressão da pluralidade política.

“Não importa se vai me machucar ou não; é preciso fazer o que se está convicto de que é o certo”, insiste o artista e dissidente chinês Ai Weiwei, conclamando o Ocidente a confrontar a China no campo dos direitos humanos. A China ilustra, mais que qualquer outro país, o “consenso frágil”. Face ao poderio econômico e geopolítico da nova potência mundial, os governos democráticos raramente seguem o preceito de Weiwei. Ao contrário, quase sempre escolhem o caminho da realpolitik, circundando o dever de condenar as violações brutais, e perenes, dos direitos dos cidadãos chineses.

A substituição de Barack Obama por Donald Trump na Casa Branca praticamente suprimiu a política de direitos humanos dos EUA. Na Rússia, sem ser incomodado por protestos estrangeiros, o Judiciário controlado pelo Kremlin eliminou a possibilidade de um desafio eleitoral relevante ao proibir a inscrição da candidatura de Alexei Navalny, o único líder oposicionista com alguma visibilidade. Assim, Vladimir Putin marchou rumo a um novo mandato, estendendo seu controle sobre todas as instituições políticas do país. Já na Turquia, como fruto da repressão à tentativa de golpe de Estado de 2016, Recep Erdogan estabeleceu um poder incontrastável, perseguindo as correntes oposicionistas, intimidando os críticos e calando a imprensa independente.

Ai Weiwei, “Estudo sobre perspectiva”

Seria, entretanto, um equívoco fatal circunscrever as violações dos direitos humanos às nações submetidas a ditaduras abertas ou disfarçadas. O nacionalismo étnico ganhou novo impulso no século XXI, e não apenas sob regimes autoritários. A Europa democrática, na moldura da recessão econômica iniciada em 2009/2010 e diante da crise dos refugiados deflagrada pela guerra síria, conheceu a ascensão de partidos nativistas que organizaram seus discursos à base da xenofobia. “De jeito nenhum: vocês não farão da Europa a sua pátria”, lia-se no cartaz de um partido xenófobo britânico, abaixo da imagem de uma embarcação de refugiados, durante a campanha do plebiscito do Brexit. Da França à Alemanha, passando pela Holanda, pela Suíça e pela Áustria, as formações nativistas obtiveram resultados eleitorais recordistas, inclinando toda a política europeia para o lado da xenofobia.

O fruto envenenado deitou raízes na Polônia e na Hungria, duas das novas democracias da Europa central, assumindo a forma discursiva do “choque de civilizações”. O primeiro-ministro húngaro Viktor Orban prega, desde 2015, a defesa da “cultura cristã europeia” contra a “invasão muçulmana”. O governo nacionalista polonês engaja-se em operação destinada a subordinar o Judiciário e a imprensa à sua vontade, enquanto seu líder de facto, Jaroslaw Kaczynski, atribui-se a missão de “mostrar à Europa doente de hoje o caminho da saúde, dos valores fundamentais e de uma civilização mais forte baseada no cristianismo” . Durante seu discurso, no Dia da Independência, 11 de novembro de 2017, 60 mil pessoas marcharam juntas com dois grupos ultranacionalistas aos gritos de “sangue puro” e “a Europa será branca ou será abandonada” .

Na base da Estátua da Liberdade, o célebre poema de Emma Lazarus conclama os pobres do mundo a imigrarem para os EUA, onde “respirarão livres”. Desde sempre, a ideia de que a república da América do Norte é uma nação de imigrantes sofre a contestação dos nativistas, que a descrevem como uma nação de colonos. Mas a tensão atingiu um ponto de ruptura com a ascensão de Donald Trump.

Na campanha eleitoral, exercitando o discurso do nacionalismo nativista, Trump qualificou os imigrantes mexicanos como “estupradores” , identificou o Islã ao terror, prometeu erguer um muro na fronteira sul e banir o ingresso de muçulmanos. Na Casa Branca, adotou iniciativas destinadas a fechar as portas do país aos imigrantes latinos e obteve o aval da Corte Suprema para um decreto que proibiu, genericamente, a entrada de cidadãos de seis países de maioria muçulmana. Num gesto sem precedentes, compartilhou vídeos falsos, islamofóbicos, de um grupo britânico de inclinações nazistas . A origem, a etnia, a religião tornaram-se critérios oficiais de discriminação nas fronteiras americanas.

O genocídio armênio completou seu centenário em 2015 – mas a Turquia persiste sem reconhecê-lo. A Declaração Universal de 1948 foi a resposta de um mundo horrorizado diante da Shoa, holocausto judeu sob o nazismo, entre 1941 e 1945. Mesmo assim, a maldição do genocídio e dos massacres de massas continuou a pairar sobre a humanidade. No Camboja, entre 1975 e 1979, sob o regime totalitário de Pol Pot, pereceram mais de 1,5 milhão. O genocídio dos tutsis de Ruanda, em 1994, convenceu 120 países a aprovarem, quatro anos depois, o estatuto do Tribunal Penal Internacional. O massacre de Srebrenica, em 1995, no qual 8 mil muçulmanos bósnios foram assassinados num ato de “limpeza étnica”, levou à criação do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, que processou 111 indivíduos, condenando 90 deles e encerrando seus trabalhos no final de 2017. A perseguição e os massacres dos Rohingya, em Mianmar, evidenciam, porém, que não se dissolveu a pulsão genocida.

A força propulsora de genocídios e massacres é, quase sempre, o nacionalismo. Os armênios pereceram sob a acusação de traição da causa turca na guerra. O nazismo definiu a Alemanha em termos étnicos e raciais, marcando os judeus como “quinta-colunas”. O regime de Pol Pot substituiu o nome “Camboja” por “Kampuchea” e redefiniu a nação em termos ideológicos, identificando-a ao partido único. Os tutsis de Ruanda deveriam desaparecer em nome da “pureza racial” do país. Os muçulmanos bósnios seriam um elemento contaminante na “pureza cristã” da Sérvia. De acordo com uma lógica similar, os Rohingya, muçulmanos ou hindus, ameaçariam a coesão nacional budista de Mianmar. Os artigos da Declaração Universal contra a discriminação étnica, religiosa ou de orientação política continuam tão atuais quanto em 1948.

Na Turquia, no final de 2017, a Direção de Assuntos Religiosos, órgão estatal que gestiona a vida religiosa, circulou a proposta de abolir o limite de idade legal para matrimônios, permitindo que meninas se casem a partir dos 9 anos. A república turca nasceu afirmando a laicidade oficial e instaurando a igualdade de direitos entre homens e mulheres. O retrocesso aventado representaria um golpe fatal nesses princípios, inscrevendo a Turquia entre os países que discriminam legalmente as mulheres.

A discriminação legal das mulheres manifesta-se de modos múltiplos nas nações muçulmanas que subordinam a legislação civil a preceitos religiosos, como a Arábia Saudita, o Irã e as monarquias do Golfo Pérsico. A Declaração do Cairo sobre os Direitos Humanos no Islã, de 1990, adotada pelos países da Organização da Conferência Islâmica, uma resposta de governos muçulmanos à Declaração de 1948, consagra a desigualdade entre homens e mulheres.
A Declaração de 1948, no seu artigo 16º, diz que “durante o casamento e na altura de sua dissolução”, homem e mulher “têm direitos iguais”. Já a Declaração do Cairo, no seu artigo 6, estabelece que “a mulher é igual ao homem em dignidade humana e beneficia-se de seus próprios direitos, assim como deve realizar suas próprias obrigações”, separando papéis sociais e conferindo estatuto legal às tradições religiosas . Não é, porém, o Islã que discrimina as mulheres, mas os regimes ou governos que o tomam como fundamento de sua legitimidade secular. Uma prova disso, entre tantas, encontra-se na situação das mulheres na Índia, país onde autoridades políticas e judiciais notoriamente resistem em punir crimes de estupro.

“Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada”, diz o Artigo 12º da Declaração Universal, um princípio do qual decorre a liberdade de orientação sexual. Contudo, 70 anos depois, na segunda década do século XXI, diversos países conservam ou inscrevem na lei a criminalização da homossexualidade. Os gays estão sujeitos à pena de morte na Arábia Saudita, no Iraque, no Irã, no Afeganistão, no Paquistão e no Sudão, entre outros países. A legislação prevê penas de prisão na Índia e em inúmeros países da Ásia, da África e do Caribe. No Egito, a perseguição generalizada aos gays se dá sob a cobertura de leis contra a “devassidão”.

O campo da morte de Auschwitz foi liberado em 26 e 27 de janeiro de 1945, por uma divisão do Exército Vermelho. Os soldados encontraram 7,5 mil prisioneiros vivos, 600 cadáveres e quase oito toneladas de cabelo humano acondicionadas em sacos de papel. As notícias da liberação tiveram escasso impacto na época, pois competiam com as novidades sobre a próxima instalação da Conferência de Yalta, entre os Três Grandes. Mas Auschwitz fez seu caminho até a consciência humana e suas lições sedimentaram-se, menos de quatro anos depois, na Declaração Universal. A agenda de 1948 não é uma garantia de direitos ou liberdades, mas uma bússola: as balizas que delimitam a estrada. A mensagem da Declaração Universal inspira milhares de organizações e milhões de indivíduos, no mundo inteiro. O site 1948 inscreve-se nesse terreno, como uma contribuição, modesta que seja, para a difusão em língua portuguesa de informações, notícias e documentos sobre o “ideal comum” proclamado pela Assembleia Geral da ONU.

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