NA ARÁBIA SAUDITA, A MINORIDADE CIVIL DAS MULHERES

 

Elaine Senise Barbosa

13 de agosto de 2018

 

Há duas semanas o governo da Arábia Saudita chamou o embaixador do Canadá para consulta e, após declará-lo persona non grata, deu-lhe 24 horas para se retirar. O ato – considerado extremo no manual de boas maneiras da diplomacia – foi a resposta ao pedido de esclarecimento feito pela ministra de relações exteriores canadense, sobre a prisão dos Badawi, um casal de irmãos que militam pelos direitos civis e pelos direitos das mulheres. A cobrança foi tratada como “intolerável” pelo governo saudita e, além da expulsão do embaixador, há promessa de congelamento nas relações comerciais entre os dois países, que gira na casa dos US$ 4 bilhões.

Samar Badawi, a Mulher Coragem do Ano de 2012 (foto), presa há pouco tempo, enquanto seu irmão, Raif, já está preso e duramente apenado

Samar Badawi, a Mulher Coragem do Ano de 2012 (foto), presa há pouco tempo, enquanto seu irmão, Raif, já está preso e duramente apenado

Acontece que desde maio o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos fala da prisão de pelo menos 15 ativistas políticos, incluindo defensoras do direito das mulheres dirigirem. As acusações envolvem “perturbação da ordem social” e, pior, “ligações com grupos externos”; as penas envolvem anos na prisão, chibatadas, ou proibição perpétua de se manifestar em público.

Após as comemorações provocadas pelo fim da proibição das mulheres dirigirem, a partir de junho de 2018, o Estado saudita parece ter decidido calar as vozes e ideias que pretendam questionar o status quo. Talvez a atual força dos movimentos feministas pelo mundo tenha feito o governo agir prontamente contra excessivas veleidades de “empoderamento”. Às vésperas da entrada em vigor das novas regras para mulheres ao volante, alguns ativistas disseram ter recebido ligações de agentes do Estado sugerindo evitar comentários e comemorações caso fossem procurados…

Em 2017, quando a campanha pelo direito de dirigir ganhou força, sinais vindos do palácio real fizeram crer em uma possibilidade de mudança. Na época, muitos atribuíram tais gestos ao príncipe Mohammed bin Salman – o herdeiro e novo governante de 32 anos que precisa se afirmar no poder. Supostamente o príncipe apoiaria a modernização do rígido código de leis do país, baseado no Islã wahabita, demasiadamente teocrático. Mas não é bem assim, e a monarquia saudita segue dando claras demonstrações de não estar aberta a qualquer dissidência ou crítica.

Aparentemente o príncipe Mohammed quer construir uma nova legitimidade política apoiado em um discurso tipicamente nacionalista, no qual a a família Saud é a dinastia  guardiã da segurança e da estabilidade – que faltam em quase todos os países árabes –, e que são fundamentais para o desenvolvimento econômico. Mas não se deve confundir a liberalização econômica e social com liberalização política. Muito pelo contrário: vários clérigos e escritores influentes foram presos nas últimas semanas.

Cedendo à pressão pelo direito das mulheres dirigirem e estarem sós nos carros (ou seja, sem uma companhia masculina “responsável”), o príncipe Mohammed acomoda uma questão prática em um país cuja estrutura social vai se transformando, mesmo que lentamente. As mulheres que lutaram pelo direito de dirigir são em grande parte aquelas beneficiadas pelas políticas educacionais patrocinadas pelos reis da casa Saud, incluindo programas de bolsa de estudo no exterior, que as tornaram uma parcela importante da força de trabalho qualificada e parte constitutiva da nova classe média. E, como em todo o mundo, cada vez mais a renda da família classe média depende que pai e mãe trabalhem. Se, ainda por cima, o sistema de transporte público inexiste, a solução seria a contratação de motoristas particulares, cujos custos são inviáveis para a maioria das famílias.

No fim das contas, a mudança da lei não foi algo super-radical, quando se leva em conta que a proibição de dirigir era recente, de uma fatwa emitida pelo Conselho dos Ulemás, em outubro de 1990. Mais uma vez o que temos é a religião como pretexto, porque a Arábia Saudita era o único país muçulmano do mundo com uma lei explícita contra mulheres motoristas.

Se existe motivação específica para o governo saudita reprimir os militantes de direitos humanos e direitos civis, impedindo que os grupos cresçam e ganhem força na esteira da “conquista do volante” pelas mulheres, é porque existe toda uma prática social relacionada à questão de gênero. É o chamado “sistema de guardião legal”, que subordina legalmente todas as mulheres a homens, mesmo em idade adulta, como também ocorre no Irã. Na prática é “minoridade civil”.

Existe uma lista de coisas que as mulheres sauditas não podem decidir por si sós, como cursar a universidade; tirar passaporte; abrir conta em banco; fazer uma cirurgia estética. Novamente, argumentos supostamente religiosos servem de pretexto para negar às mulheres a liberdade de escolha, tanto na vida civil quanto política. Não por acaso, o slogan da campanha pelo direito de dirigir (#Women2Drive) surgiu devidamente reconfigurado para #Women2Drivedone #IamMyOwnGuardian in progress.

 

 

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