PALESTINA, LIMPEZA ÉTNICA E GENOCÍDIO (22/9/2025)

 

Demétrio Magnoli

 

No 7 de outubro de 2023, o Hamas assassinou quase 1,2 mil israelenses, no mais bárbaro ataque terrorista da história do Estado judeu. Em 16 de setembro de 2025, às vésperas do segundo aniversário da guerra deflagrada por aquele massacre, uma comissão de inquérito da ONU concluiu que Israel pratica genocídio contra o povo palestino.

O Hamas, na sua carta de fundação, declara o objetivo de destruir o Estado judeu e conclama os muçulmanos a exterminar os judeus israelenses. Trata-se de uma proclamação de intenções genocidas: a inspiração do ato terrorista de 7 de outubro. O Estado de Israel, que nasceu da reação internacional diante do genocídio praticado pela Alemanha nazista contra os judeus, colocou-se no banco dos réus: a Corte Internacional de Justiça analisa as evidências incriminatórias sobre o maior dos crimes.

O crime de genocídio foi formulado por um judeu polonês, Raphael Lemkin, em 1941. O conceito originou a Convenção contra o Genocídio, adotada pela ONU em dezembro de 1948, um dia antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os dois documentos têm como pano de fundo o choque produzido pela descoberta dos campos da morte do nazismo.

Uma “cidade de tendas” de deslocados palestinos na faixa costeira da Cidade de Gaza, em 2025

A eventual condenação de Israel por genocídio representaria um tiro de morte na legitimidade histórica do Estado judeu. O Hamas teria vencido, em meio a pilhas de cadáveres palestinos.

 

Da palavra frívola à realidade

Há décadas, a acusação de genocídio é lançada contra Israel. O antissemitismo de esquerda, que se disfarça como antissionismo, opera com o objetivo de traçar um sinal de equivalência entre o nazismo e o sionismo.

Nos textos e discursos de seus porta-vozes, Israel cometeria um genocídio permanente, iniciado ainda antes da fundação do Estado judeu, na guerra de 1948. A comunidade internacional virou as costas à operação ideológica. Hoje, porém, pela primeira vez, os tribunais internacionais e os países democráticos levantam as vozes para denunciar os crimes assustadores cometidos em Gaza – e escutam atentamente a acusação de genocídio.

A guerra retaliatória contra o Hamas começou como guerra justa. Contudo, o governo israelense dirigido por Netanyahu transformou-a numa guerra contra o povo palestino, definindo explicitamente o objetivo de limpeza étnica. Os triunfos militares contra o Hezbollah libanês e o Irã ofereceram ao governo extremista a oportunidade de avançar rumo a tal meta. O amparo político, diplomático e militar dos EUA, de Biden a Trump, funcionou como passaporte para os extremistas israelenses.

Palestina com seus filhos no norte da Faixa de Gaza

Os países democráticos, aliados tradicionais de Israel, recuam horrorizados diante da barbárie. Depois de imporem embargos na exportação de armas a Israel, França, Reino Unido, Espanha e Canadá anunciam na Assembleia Geral da ONU o reconhecimento do Estado Palestino. É uma tentativa desesperada, talvez derradeira, de barrar o caminho à limpeza étnica.

Netanyahu reage dobrando sua aposta. Redefine o Estado judeu como uma “super-Esparta”, um Estado militarizado, isolado internacionalmente, em guerra perene de sobrevivência. A “super-Esparta”, porém, conserva o apoio dos EUA, de longe o principal fornecedor de armas a Israel. 

Trump ofertou o presente mais valioso aos supremacistas que, embora minoritários no governo, definem o programa criminoso seguido por Israel. O presidente dos EUA apresentou a “visão” de Gaza como um resort litorâneo internacional: a “Riviera do Oriente Médio”. A nação que impulsionou a Declaração de 1948 converte-se em cúmplice do pior dos crimes contra a humanidade.

 

Genocídio, um crime com intenção

O programa da limpeza étnica descortina o palco do genocídio. O governo de Israel estabeleceu um órgão oficial destinado a negociar diplomaticamente a “emigração voluntária” dos palestinos. O Sudão do Sul parece figurar entre os interlocutores, uma especulação negada por seu governo. Ao mesmo tempo, a ofensiva militar devastadora sobre a Cidade de Gaza e os ataques desenfreados de colonos contra os palestinos da Cisjordânia tentam “persuadir” os civis palestinos a abandonar “voluntariamente” sua pátria natal.

Guerras, bombardeios, massacres não são, em si mesmos, atos genocidas. O genocídio é um crime singular, pois sua caracterização exige gestos e palavras: a intenção de exterminar um grupo populacional inteiro.

O Brasil somou-se a outros onze países na ação deflagrada pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça. No documento em que sintetiza sua argumentação, a chancelaria brasileira solicita uma clara decisão sobre intenção:

“A Corte deve dizer de maneira categórica se há intenção genocida ou não. Isto é, deve demonstrar, com base em todas as provas, que a única conclusão razoável é que há intenção genocida, ou, ao contrário, que a única conclusão razoável é que não há intenção genocida nos ataques sistemáticos contra a população palestina na Faixa de Gaza.”

Palácio da Paz, sede da Corte Internacional de Justiça em Haia (Holanda)

O documento brasileiro não assume diretamente a conclusão de genocídio, mas vai ao ponto, reivindicando uma decisão despida de ambiguidade. Em 2007, a Corte Internacional de Justiça reconheceu genocídio no Massacre de Srebrenica, durante a Guerra da Bósnia, em 1995, sem declarar a Sérvia culpada, pela falta de provas conclusivas sobre intenção.

No caso de Gaza, contudo, gestos e palavras emanados do governo extremista israelense podem ser lidos como confissões do maior dos crimes. A sorte dos palestinos não está nas mãos dos juízes, mas das forças de Israel e nas ações da Casa Branca. Os juízes só chegarão a um veredito no horizonte de meses ou anos. O veredito dirá se, no fim de tudo, graças a Netanyahu e Trump, o Hamas triunfou. 

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail