MANIPUR: A ÍNDIA DO ÓDIO ÉTNICO

 

Víctor Daltoé dos Anjos

(Geógrafo-UFSC; doutorando em Geografia-USP; professor e autor de materiais didáticos)

11 de agosto de 2025

 

Na Índia, o nacionalismo hindu do primeiro-ministro Narendra Modi tem deflagrado conflitos étnicos nos confins do país. No estado de Manipur houve cerca de 260 mortes desde maio de 2023, por conta dos choques entre grupos armados da etnia meitei, em sua maioria hindu, e a minoria kuki-zo, formada por cristãos. É uma espécie de mini-guerra civil que gerou 60 mil deslocados à força. E tem se destacado pelos inúmeros casos de violência sexual, uma das violações aos direitos humanos mais graves e comuns contra as mulheres em todo o mundo, e para as indianas em particular.

Era julho de 2023 quando um vídeo viralizou nas redes sociais da Índia e causou indignação na opinião pública. A gravação mostra duas mulheres seminuas da etnia kuki-zo, com suas roupas arrancadas por uma multidão de homens meiteis, obrigadas a caminhar em meio ao assédio da turba. A divulgação tardia das imagens, três meses após o episódio, se deu por conta do bloqueio da internet pelo governo de Manipur, controlado pelo Partido do Povo Indiano (BJP), de Modi. Foram 212 dias de apagão digital no estado em 2023, tudo em nome da lei e da ordem.

Manipur: a Índia do ódio étnico

Manipur é peça-chave na expansão da influência indiana no Sudeste Asiático, onde o país mais populoso do mundo rivaliza com a China.

A Índia é o país que mais bloqueia o sinal de internet no mundo, segundo a organização Software Freedom Law Center (SFLC), e mostra que a ação se tornou mais frequente desde que Modi chegou ao poder, em 2014. Em Manipur, o blackout digital escondeu a gravidade do que ocorria no pequeno estado de 3,3 milhões de habitantes, mas as imagens da infâmia contra as mulheres kuki-zo chegaram ao restante do país e obrigaram o primeiro-ministro a romper o silêncio sobre a crise, 77 dias após as primeiras mortes no conflito.

A repercussão internacional levou o parlamento europeu a emitir uma resolução que denunciou as “políticas divisivas que promovem o supremacismo hindu” como causa da crise em Manipur. Em resposta à crítica do bloco europeu, o chanceler indiano Subrahmanyam Jaishankar afirmou que “essa interferência nos negócios internos da Índia” refletia uma “mentalidade colonial”. 

É na mescla de nativismo e ultranacionalismo hindu que o BJP cria raízes na política dos estados e mira a hegemonia sobre toda a Índia, rompendo com o princípio de laicidade idealizado por Gandhi e Nehru. 

 

Manipur: na fronteira de civilizações

A Índia é um mosaico de línguas, culturas e religiões, com inúmeras identidades à disposição para quem busca pertencimento e/ou rivalidade sectária. Em Manipur, quase metade da população se considera hindu e etnicamente meitei. Eles ocupam o vale de Imphal, que está cercado por um arco montanhoso onde vivem os cristãos das minorias kuki-zo e naga. Encravada na cordilheira indo-birmanesa, Manipur é a porta da Índia para Mianmar, outra miscelânea de povos e graves conflitos étnicos, como a perseguição aos Rohingya.

Os meiteis projetam sua “comunidade imaginada” no tempo de glórias do rei Gharib Niwaz (1709-1748), que converteu seu pequeno reino animista ao hinduísmo e o chamou Manipur, país mítico citado no Mahabharata, poema épico hindu. Em meio às guerras contra os impérios budistas da Birmânia (atual Mianmar), no século XIX o reino foi capturado pela órbita imperial de Londres e transformado em protetorado. Em 1891, o palácio do rajá se tornou um alojamento militar britânico.

Manipur: a Índia do ódio étnico

Tropas britânicas e gurkhas do Nepal expulsam japoneses na Batalha de Imphal, entre março e julho de 1944, quando Manipur foi utilizada pelo Japão Imperial em sua tentativa fracassada de penetrar na Índia a partir da Birmânia.

A identidade kuki-zo emergiu no período colonial. Entre os domínios britânicos de Índia e Mianmar, se estendia um cinturão montanhoso de povos animistas do grupo Zo. Para o império europeu essas densas florestas tropicais e de altitude exalavam o aroma do desgoverno. A solução foi isolar as backward tribes (“tribos atrasadas”) e retalhar sua rede de vilarejos com classificações étnicas. A escolha britânica em acentuar o que separa, e não o que une, subdividiu os Zo em vários grupos, como kuki-zo, chins e mizos.

Em Manipur, os britânicos cavaram um fosso político-administrativo entre o vale de Imphal, uma espécie de “ilha” hindu dos meiteis, e as montanhas onde viviam os kuki-zo, animistas, segregados e convertidos pela ação de missionários cristãos. A união do vale e da montanha na rebelião anti-britânica de 1891 deu lugar a uma rivalidade étnico-religiosa esculpida no relevo pelos colonizadores.

 

A Índia laica e multiétnica

Na cordilheira indo-birmanesa, insurgências separatistas de base étnica eclodiram após a sangrenta partilha da Índia Britânica, em 1947, que deu origem à Índia e ao Paquistão. Meiteis hindus sonhavam com uma Manipur independente e os kuki-zo cristãos se armaram pela autodefesa. Com o temor de guerrilhas nas portas da China comunista, a Índia laica fundada por Jawarhalal Nehru e Mahatma Gandhi se dobrou à barganha étnico-religiosa, com a criação de microestados como Manipur. 

No início do século XXI, Manipur se tornou central nos projetos de integração da Índia com o Sudeste Asiático, necessário para contornar o avanço chinês na região, enquanto seus antigos grupos armados se tornavam dormentes. Porém o projeto geopolítico tem se chocado com a desordem provocada pela rivalidade sectária fomentada pelos ultranacionalistas hindus do BJP, que conquistaram o governo de Manipur pela primeira vez em 2017.

Manipur: a Índia do ódio étnico

Manipur foi um dos mais de 500 principados incorporados à Índia após a independência. O único declarado território federal, pela sua estratégica posição na fronteira oriental.

Biren Singh, novo líder do pequeno estado, adotou a retórica da “substituição” demográfica para semear o medo entre os meiteis hindus, cuja maioria numérica havia se reduzido de acordo com o censo de 2011, o último realizado na Índia. A teoria conspiratória denuncia um suposto complô kuki-zo para diluir o povoamento meitei por meio da chegada de refugiados da etnia chin, cristãos e parte do povo Zo, fugitivos da guerra civil que se desenrola em Mianmar desde 2021 encabeçada pelos budistas. 

A presença transfronteiriça dos kuki-zo, que vivem entre a Índia e Mianmar, também é distorcida pelos supremacistas hindus, que acusam o povo de ser  estrangeiro à Índia do Hindutva. Desde 2022, no início do segundo mandato, N. Biren Singh culpou os kuki-zo pela acolhida a “imigrantes ilegais” de Mianmar e lançou uma espécie de “guerra às drogas” bem seletiva, que mirou nos cultivos de papoula em seus territórios, mas ignorou que o narcotráfico tem ramificações por toda Manipur. 

 

Ações afirmativas e ódio étnico

A violência eclodiu em Manipur no dia 3 de maio de 2023, quando a corte estadual defendeu a inclusão dos meiteis na categoria de Scheduled Tribes (“tribos registradas”), o que concede reserva de vagas em empregos públicos e permite a aquisição de propriedades nas montanhas “tribais” de Manipur. Antes, o rótulo de “tribo” estava restrito aos kuki-zo e nagas, excluindo os meiteis da compra de terras na zona de relevo acidentado que recobre 90% do estado. Para os kuki-zo, a alteração no status dos meiteis é vista como uma violação de seus direitos históricos.

A política de “tribos” e “castas registradas” foi instituída na Índia por programas de ações afirmativas em nome da superação dos imensos abismos sociais. Contudo, o benefício ossifica identidades que o próprio Estado buscava superar através de uma Constituição laica e do incentivo à modernização. No campo dos direitos houve retrocesso pois a lógica passou a ser: a tribo/casta é tudo, o indivíduo é nada.

Manipur: a Índia do ódio étnico

Vista aérea do vale de Imphal, esquadrinhado pela rizicultura e atravessado por conflitos étnicos

Os protestos dos kuki-zo contra a decisão da corte estadual foram seguidos por manifestações meiteis, numa espiral de violência. Em poucos dias, multidões hindus destruíram 200 igrejas e centenas de casas dos kuki-zo. Em retaliação, militantes arruinaram o bicentenário templo hindu de Koubru Leikha, dedicado ao deus Shiva. Execuções e linchamentos se espalharam pelo vale de Imphal e a violência sexual logo alvejou as mulheres de Manipur. 

Os responsáveis pela violência possuíam conexões com o governo estadual do BJP, pois estavam unidos pelos laços do supremacismo meitei e hindu. Em abril de 2023, um mês antes da onda de ataques, três igrejas (católica, luterana e batista) foram destruídas pelo governo estadual em Imphal Leste como “construções ilegais”. No conflito, a associação cultural Arambai Tenggol transformou-se em milícia após saquear  4 mil armamentos do depósito policial.

 

Manipur na Índia dos deslocados

“Usar mulheres como instrumento para perpetrar a violência em um ambiente hostil é simplesmente inaceitável em uma democracia constitucional”, disse o ministro-chefe da Suprema Corte da Índia, Dhananjaya Chandrachud, em julho de 2023, quando exigiu ações do governo indiano. Era tarde demais, pois boa parte das 260 mortes em Manipur ocorreram na primeira semana de maio, ⅔ entre a etnia kuki-zo.

Manipur: a Índia do ódio étnico

N. Biren Singh, chefe de governo de Manipur entre 2017 e 2025 e aliado de Narendra Modi, é acusado de conluio com a violência dos supremacistas hindus

Acusado de inércia pela oposição parlamentar, o governo Modi enquadrou Manipur no Ato de Poderes Especiais das Forças Armadas, dispositivo renovado em 2025 e visto com suspeita pelos cidadãos. O modelo de intervenção militar foi criado em 1958 para reprimir o separatismo da etnia naga, ao norte de Manipur e acobertou graves violações aos direitos humanos, segundo a organização Human Rights Watch, principalmente no Punjab, na Caxemira e nos microestados do nordeste indiano. 

Em Manipur, os 40 mil soldados envolvidos na operação militar separaram o vale de Imphal das montanhas circundantes com a criação de uma zona-tampão circular, o que favorece o enraizamento das milícias étnicas meitei e kuki-zo e completa a cisão territorial entre as duas comunidades. Parlamentares kuki-zo pregam que a solução do conflito passa pela criação de um território federal próprio de sua etnia, mas os líderes meiteis rejeitam a proposta de divisão de Manipur.

Em fevereiro de 2025, N. Biren Singh renunciou ao governo de Manipur em meio às acusações de conluio com os supremacistas. A administração do estado foi subordinada ao governo federal, o que amplia a responsabilidade de Modi sobre a situação de Manipur. Cerca de 50 mil pessoas estavam espalhadas por 281 campos de deslocados internos, de acordo com dados da Anistia Internacional, enquanto outros fogem para estados de maioria cristã, como Mizoram e Meghalaya. Em março, irromperam novos confrontos entre meiteis e kuki-zo.

Ora, se a política de Narendra Modi é inflar a retórica populista do nativismo hinduísta, de qual córrego irá desviar as águas para sanear o ressentimento étnico em Manipur?

 

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