IGNORADOS EM BURKINA FASO

 

17 de junho de 2024

 

Burkina Faso é um país pouco conhecido da África Ocidental, apesar de ser, na atualidade, a principal frente de expansão do jihadismo no Sahel. Desde 2015, milícias de radicais islâmicos se infiltraram pela tríplice-fronteira com o Mali e o Níger levando milhares de pessoas a deixarem suas casas. Para o Conselho Norueguês sobre Refugiados, a crise de deslocamento forçado em Burkina Faso é a mais negligenciada do planeta, e ocorre no mesmo país que sofreu, apenas em 2022, dois golpes de Estado encabeçados pelos militares.

Ignorados em Burkina FasoEm março de 2023, Burkina Faso abrigava 2 milhões de deslocados internos, segundo o Acnur (Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). É um salto em comparação aos 135 mil de 2019, e muito mais que os atuais 407 mil do Níger e 354 mil do Mali, onde a tendência tem sido de retorno de deslocados. Mas nem todos os refugiados de Burkina Faso são deslocados internos. Existem 39 mil acolhidos no país e quase todos são oriundos do Mali, por sua vez o principal destino de refugiados burquinenses, hoje na casa de 54 mil pessoas.

Burkina Faso tem 22 milhões de habitantes, um território de clima tropical com extensão semelhante ao Equador, e um relevo suave, coberto por savanas. O Norte – atravessado pelo Sahel, extensa faixa de estepes ao sul do Saara – é mais ameaçado pelo jihadismo. Na fronteira meridional, tem limites com nações banhadas pelo Golfo da Guiné, como Costa do Marfim, destino principal de imigrantes burquinenses fugindo da pobreza. Burkina Faso apresenta o oitavo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta.

O povo de Burkina Faso sofre com a pior onda de violência desde a independência, em 1960. O país é mais um nome na lista de prolongados e ignorados conflitos africanos, como em Darfur, no Sudão, e nos Kivus, na República Democrática do Congo.

 

O Alto Volta e o “país mossi”

Ignorados em Burkina Faso

Burkina Faso está encravada na África Ocidental, e serve como via de expansão jihadista para o Golfo da Guiné

Nos mapas antigos, Burkina Faso é o Alto Volta, nome derivado do rio Volta, que drena principalmente as terras de Gana. A palavra “alto” refere-se ao alto curso dos formadores do rio Volta (Volta Branco, Volta Vermelho e Volta Negro) e foi dado pelos colonizadores franceses. A troca do nome ocorreu durante o regime militar do revolucionário Thomas Sankara (1983-1987), uma mescla tardia entre marxismo-leninismo e nacionalismo pan-africano. Burkina Faso significa “País dos homens íntegros”. 

O alto curso da bacia do rio Volta foi conquistado pela França na década de 1890 e centrado no domínio sobre o povo mossi. Herdeiros de reinos instituídos no século XV, como o de Uagadugu, os mossi formaram um bastião de resistência religiosa animista à expansão islâmica no Sahel. A aristocracia equestre dos mossi, comandada por nabas (“reis”), submeteu povos da região voltaica por meio de ataques destinados à captura de cativos.

A França constituiu a colônia do Alto Volta apenas em 1919, encravada na África Ocidental Francesa como uma espécie de pays mossi expandido, usando da autoridade dos reinos mossi em nome dos interesses da metrópole. Contudo, em 1932, Paris retalhou o Alto Volta entre os domínios coloniais vizinhos, transformando-o em reserva de mão de obra para a mais desenvolvida Costa do Marfim, onde o trabalho forçado dos voltaicos foi comum até a década de 1940.

O Alto Volta foi restabelecido em 1947, em reconhecimento ao apoio da aristocracia mossi à França Livre de Charles De Gaulle, na Segunda Guerra Mundial. A mesma aristocracia queria se dissociar do “radical” líder marfinense Félix Houphouët-Boigny. Em 1960, na aurora da descolonização africana, a República do Alto Volta nasceu sob o regime de partido único de Maurice Yaméogo, que recusou projetos de integração geopolítica de inspiração pan-africana com o Mali e o Senegal. Os golpes militares, mal da época, não tardaram.

 

Golpes e mais golpes

Ignorados em Burkina Faso

Da esquerda para a direita, os ex-líderes de Burkina Faso, e militares, Thomas Sankara (1983-1987) e Blaise Compaoré (1987-2014)

Na República do Alto Volta, as cinco trocas de presidente entre 1966 e 1987 ocorreram via golpes de Estado. Isso inclui a ascensão e queda de Thomas Sankara, assassinado em 1987 por ordem do seu “braço direito”, Blaise Compaoré. Governando um dos países mais pobres da África por 27 anos, Compaoré equilibrou-se entre os favores do Ocidente e o amparo do ditador líbio Muammar Khadafi. Em 2011, no contexto da chamada Primavera Árabe, quando protestos de rua se espalharam por diversos países do norte da África e Oriente Médio, Kadhafi foi derrubado, facilitando o surgimento de manifestações contra Compaoré.

Em outubro de 2014, contra a possibilidade de um quinto mandato de Compaoré, uma revolta tomou as ruas da capital, Uagadugu. O parlamento foi incendiado pelos manifestantes e o líder renunciou, mas os militares logo assumiram o controle da transição política.

Roch Kaboré, oex-aliado de Compaoré que ajudou a impulsionar a rebelião de 2014, foi eleito presidente em 2015 e 2020, mas não conseguiu repelir o perigo jihadista, enquanto dependia cada vez mais da lealdade das Forças Armadas, tornando-se alvo de conspirações militares. 

Burkina Faso teve um ano de golpes em 2022. O de janeiro derrubou Kaboré e o de setembro instalou o capitão Ibrahim Traoré no poder. É um exemplo emblemático da onda de golpes de Estado que varre o Sahel desde 2020, em nome do combate ao terrorismo, forjando “governos de transição” sem fim. Em maio de 2024, Traoré anunciou que novas eleições só irão ocorrer em 2029, tudo se houver um cenário de “segurança” no país e com a possibilidade de sua candidatura a qualquer cargo.

 

Mobilização anti-Ocidente

Ignorados em Burkina Faso

Capitão Ibrahim Traoré, líder de Burkina Faso desde o golpe de setembro de 2022

O discurso anti imperialista segue como um elemento com alta capacidade de mobilização popular, sobretudo nas ex-colônias francesas na África. Isso porque a França nunca se afastou de fato de suas ex-colônias, sobre as quais mantém influências econômicas, políticas e militares. Hoje, países como Níger, Mali e Burkina Faso – todos vitimados por golpes militares nos últimos anos – estão unidos contra a França na “Aliança dos Estados do Sahel”.

Enquanto isso, se aproximam da Rússia de Vladimir Putin a fim de contrabalançar as possíveis reações do “Ocidente”. Em setembro de 2023, o burquinense Ibrahim Traoré, recebeu o general russo Andrey Averyanov, que herdou as operações do Grupo Wagner, força mercenária multinacional. Na mesma viagem, Averyanov aterrissou na Líbia, no Mali e na República Centro-Africana, países onde o Wagner opera há anos.

De fato, a presença de mercenários russos, que atuam nas sombras e garantem, pela violência extrema, os interesses dos grupos políticos aos quais estão aliados, não apenas dificulta a normalização política desses países – ou seja, a organização de sociedades democráticas – , como aumenta significativamente a violência interna contra grupos jihadistas e qualquer um que seja suspeito de apoiá-los. 

Em Burkina Faso o ano de 2023 foi o mais violento desde o início do conflito, desmentindo o argumento dos militares golpistas de que seriam mais eficientes contra o jihadismo do que um governo civil.

 

Exército, milícias e jihadistas

Ignorados em Burkina FasoEm Burkina Faso, os jihadistas têm se alastrado pelo Norte, de maioria islâmica, para o Leste e Oeste do país, cercando o centro ocupado pela capital, Uagadugu, e sua hinterlândia, o antigo platô mossi, dominado pelos animistas e cristãos. Os ciclos de ataque e retaliação com base étnica se tornaram mais comuns. No início de 2019, dezenas morreram em choques intercomunitários envolvendo mossis e fulas, muçulmanos que também sofrem com o jihadismo

A região do Sahel, no Norte de Burkina Faso, fronteira com Mali e Níger, concentra ¼ dos deslocados internos do país. Em outubro de 2023, mês de início do ano letivo, 86% das escolas do Sahel burquinense estavam fechadas, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA). A cidade de Dori, o centro principal dessa região, recebe ajuda humanitária por comboios que são alvo dos jihadistas, atrasando as entregas em até 45 dias.

A violência toma conta do país, onde o Estado Islâmico Grande Saara (Província do Sahel) e, principalmente, a Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), filial regional da Al Qaeda, controlam entre metade e 1/3 do território. A brutalidade das ações do Exército burquinense e das milícias autodeclaradas de autodefesa, como os Voluntários pela Defesa da Pátria (VDP) contribui para o alto número de mortes. Em 2023, 8 mil pessoas morreram no conflito de Burkina Faso, segundo dados do ACLED (Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados).

 

Sob fogo cruzado

Ignorados em Burkina Faso

Escola para crianças deslocadas em Kaya, ao norte da capital burquinense, Uagadugu

As mortes por episódios de violência têm se multiplicado nos últimos anos. Segundo a organização humanitária Human Rights Watch, o exército burquinense executou sumariamente 223 civis nos vilarejos de Soro e Thiou, província de Yatenga, em fevereiro de 2023, acusando-os de serem complacentes com os radicais islâmicos. Na mesma província, em março de 2024, foram cerca de 170 mortos em ataques jihadistas nos vilarejos de Komsilga, Nodin e Soroe

A liberdade de expressão também está sob ataque no país. Em 29/5, o advogado Guy Hervé Kam, cofundador do movimento Le Balai Citoyen (“A Vassoura Cidadã”), central na revolta de 2014 e inspirado em Sankara, foi preso, acusado de “complô contra a segurança do Estado. Em 11/6, Mousbila Sankara (74), tio do antigo líder, foi detido pelos serviços de inteligência por expressar “sérias inquietudes” em relação ao regime militar atual, o mesmo que alçou Sankara, espírito em disputa, ao rol dos “heróis nacionais”.

Na Burkina Faso em conflito, ainda paira a sombra da era Compaoré (1987-2014), com sua negligência em garantir desenvolvimento socioeconômico e autoridade do Estado nas fronteiras. Em vez disso, Campaoré apoiou movimentos armados nas guerras civis de Libéria e Serra Leoa, nos anos 1990, e tornou seu próprio país um covil de tráfico de armas e diamantes. Agora, é Burkina Faso que implode sob a desestabilização vinda de outros países, com o custo de vidas perdidas e deslocadas.

 

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